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A Economia da Abundância (Crítica a Keynes)

Friedrich A. Hayek

Economia, Excertos e Ensaios, Escola Austríaca, Moeda, Banca e Mercados Financeiros

Português

 

 

Uma situação em existem reservas abundantes e não utilizadas de todos os tipos de recursos (incluindo de todos os bens intermédios) pode ocasionalmente verificar-se num momento de depressão. Mas tal situação não é, certamente, um referencial adequado para servir de base a uma teoria que reivindica aplicabilidade geral.

Todavia, é de um mundo deste género que trata a Teoria Geral do Emprego, do Juro e do Dinheiro do Sr. Keynes, que nos últimos anos tanta agitação e confusão motivou entre os economistas e até entre o público em geral. Embora os tecnocratas, e os restantes crentes na capacidade produtiva ilimitada do nosso sistema económico, pareçam ainda não estar conscientes disso, o que ele nos ofereceu é, na verdade, a tal economia da abundância pela qual eles há tanto tempo clamavam.

Ou melhor, ele ofereceu-nos uma sistematização da economia que se baseia no pressuposto de que não existe qualquer escassez em termos reais, e que a única escassez com a qual precisamos de nos preocupar é a escassez artificial criada pela determinação das pessoas em não vender os seus produtos e serviços abaixo de determinados preços arbitrariamente fixados. Não é dada qualquer explicação para a determinação destes preços, assumindo-se simplesmente que permanecem num nível historicamente preestabelecido, exceto nas raras ocasiões em que a economia se aproxima do "pleno emprego" e os diferentes bens começam sucessivamente a tornar-se escassos e a subir de preço.

Ora, se há ponto assente que domina a vida económica, esse é a variação incessante - em alguns casos, hora-a-hora - dos preços da maioria das mais importantes matérias-primas e dos preços por atacado de quase todos os bens alimentares. Contudo, ao leitor da teoria do Sr. Keynes é deixada a impressão de que estas flutuações de preço são inteiramente aleatórias e irrelevantes, salvo na reta final de uma expansão, em que a existência de escassez é readmitida na análise, aparentemente como exceção e sob a designação de "bottleneck" ou “engarrafamento” [“gargalo”, em tradução literal].[1]

E não se trata apenas de se desconsiderarem sistematicamente os fatores que determinam os preços relativos das várias mercadorias;[2] chega mesmo defender-se, de forma explícita, que, se não fossem os fatores pura e exclusivamente monetários que supostamente determinam a taxa de juro, o preço da maioria dos bens seria simplesmente indeterminado. Ainda que tal só seja afirmado expressamente a respeito dos bens de capital – no sentido especial e restrito em que o Sr. Keynes usa esse termo, isto é, bens duradouros e títulos negociáveis –, o mesmo raciocínio poderia aplicar-se a todos os fatores de produção.

No que diz respeito aos "ativos" em geral, todo o argumento da Teoria Geral se baseia no pressuposto de que apenas o seu rendimento é determinado por fatores “reais” (isto é, que é determinado pelos preços já estabelecidos dos seus produtos), ao passo que o seu preço só pode ser determinado através da capitalização desse mesmo rendimento com uma dada taxa de juro, a qual é determinada exclusivamente por fatores monetários.[3]

Este argumento, se estivesse correto, teria claramente de ser estendido aos preços de todos os fatores de produção cujo preço não seja arbitrariamente fixado por monopolistas, pois os seus preços teriam de ser iguais ao valor da sua contribuição para o produto menos um juro pelo intervalo de tempo em que permanecessem investidos.[4] Ou seja, a diferença entre custos e preços não seria uma fonte de procura de capital, mas seria unilateralmente determinada por uma taxa de juro que dependia inteiramente de influências monetárias.

Não é preciso ir muito mais longe para perceber como este argumento nos leva a conclusões contraditórias. Mesmo no caso que considerámos anteriormente de um aumento da procura (investimento) motivado por uma invenção, o mecanismo que reestabelece a igualdade entre lucro e juro seria inconcebível sem um fator independente que determinasse os preços dos fatores de produção – a saber, a sua escassez. Isto porque, se os preços dos meios de produção fossem diretamente dependentes de uma determinada taxa de juro, nenhum aumento nos lucros poderia ocorrer, e nenhuma expansão do investimento seria levada a cabo, já que os preços seriam automaticamente marcados de forma a igualar a margem de lucro e a taxa de juro.

Ou, se os preços iniciais fossem considerados fixos e se presumisse que uma oferta ilimitada de fatores se encontra disponível a esses preços, nada poderia reduzir a margem de lucro, agora superior, para o nível da taxa de juro inalterada. É claro que, se quisermos entender o mecanismo que determina a relação entre custos e preços – e, consequentemente, a margem de lucro –, é para a relativa escassez dos vários tipos de bens de capital e dos demais fatores de produção que devemos dirigir a nossa atenção, pois é essa escassez que determina os seus preços.

E, embora possam existir, na maioria das situações, alguns bens para os quais um aumento da respetiva procura poderia trazer um aumento da sua oferta sem um correspondente aumento dos seus preços, será no geral mais útil e realista assumir, para os fins da presente investigação, que a maioria das mercadorias exibe escassez, no sentido de que qualquer aumento da procura, ceteris paribus, levará a um aumento dos respetivos preços. Devemos deixar a consideração da eventual existência de recursos desempregados de certos tipos para investigações mais especializadas dos problemas dinâmicos.

Esta excursão crítica tornou-se, infelizmente, necessária pela confusão que tem vindo a reinar sobre este assunto desde o aparecimento da Teoria Geral do Sr. Keynes.

O que significa a política de "pleno emprego"

A fim de compreender a situação a que fomos trazidos, será necessário debruçarmo-nos brevemente sobre as inspirações intelectuais da política de pleno emprego do tipo "keynesiano". O desenvolvimento das teorias de Lorde Keynes partiu da correta constatação de que a causa mais habitual do desemprego generalizado são salários “reais” demasiado elevados.

O passo seguinte consistiu na proposição de que uma redução direta dos salários nominais implicaria um conflito demasiado doloroso e prolongado, pelo que tal solução teria de ser abandonada. Keynes concluiu, portanto, que os salários “reais” deverão ser diminuídos por meio de uma redução do valor da moeda. E de facto este é o raciocínio subjacente a toda a política de "pleno emprego" tão amplamente aceite hoje em dia.

Se os trabalhadores insistem em manter os salários nominais num patamar que não permite o pleno emprego, a oferta de moeda deverá ser aumentada até que a resultante subida dos preços faça com que o valor “real” dos salários nominais vigentes não ultrapasse a produtividade dos trabalhadores que procuram emprego. Na prática, isto levará necessariamente a que cada sindicato, na sua tentativa de acompanhar o valor do dinheiro, continue a insistir em novos aumentos nos salários nominais, pelo que o empenho conjunto dos diversos sindicatos motivará inevitavelmente uma inflação progressiva.

"Après Nous Le Déluge"

Não posso deixar de considerar o crescente foco em efeitos de curto prazo – que, neste contexto, representa um foco em fatores puramente monetários – não só um sério e perigoso erro intelectual, mas também uma traição ao principal dever do economista e uma grave ameaça à nossa civilização. Para a compreensão das forças que determinam as mudanças quotidianas dos negócios, o economista tem provavelmente pouco a acrescentar que o homem de negócios não entenda ainda melhor.

No entanto, costumava considerar-se o dever e o privilégio do economista estudar e enfatizar os efeitos prolongados que tendencialmente se escondem dos olhos menos instruídos, e deixar a preocupação sobre os efeitos mais imediatos para o homem prático, que em todo o caso veria apenas estes últimos e nada mais. O objetivo e o efeito de 200 anos de desenvolvimento contínuo do pensamento económico consistiram, essencialmente, em fazer-nos afastar e "transcender" os mecanismos monetários – mais superficiais – e destacar as forças “reais” que guiam o desenvolvimento de longo prazo.

Não quero com isto negar que a preocupação com os aspetos "reais" de um problema, em detrimento dos seus aspetos monetários, pode, por vezes, ter ido longe demais. Mas isso não pode servir de desculpa para as atuais tendências – que já conseguiram, em larga medida, levar-nos de volta a uma fase pré-científica da economia, em que todo o funcionamento do mecanismo de preços não havia ainda sido compreendido, e apenas os problemas relativos ao impacto de um fluxo monetário variável no fornecimento de bens e serviços com preços determinados despertavam interesse.

Não é de admirar que Keynes encontre uma antecipação das suas ideias nos escritos dos autores mercantilistas e de alguns amadores mais dotados: a preocupação com os fenómenos superficiais marcou sempre a primeira fase da abordagem científica à nossa disciplina. Mas é alarmante notar que, após termos já por uma vez atravessado todo o processo de desenvolvimento de uma descrição sistemática das forças que, a longo prazo, determinam os preços e a produção, somos agora chamados a desfazer-nos dela, a fim de a substituirmos pela míope filosofia do homem de negócios, elevada à dignidade de uma ciência.

Não nos dizem até que, "como, no longo prazo, estaremos todos mortos", as políticas devem ser guiadas inteiramente por considerações de curto prazo? Temo que esses crentes no princípio de que après nous le déluge [“depois de nós, o dilúvio”] possam vir a colher mais cedo do que desejam o que têm andado a semear.


[1] Estava convencido de que o abandono de uma distinção categórica entre "bens livremente reproduzíveis" e bens de escassez absoluta, e a sua substituição pelo conceito de graus variáveis de escassez (em função dos crescentes custos de reprodução), havia sido um dos principais avanços da ciência económica moderna. Mas o Sr. Keynes deseja, evidentemente, que voltemos a esse modo de pensar mais antigo. Pelo menos, parece ser isso que o seu uso do conceito de “bottleneck" implica; um conceito que a mim me parece pertencer essencialmente a um ingénuo estágio inicial do pensamento económico, e cuja introdução no seio da teoria económica dificilmente poderá ser considerada um avanço.

[2] Não deixa de ser sintomático que, quando, já perto do fim do livro, o Sr. Keynes acaba finalmente por discutir preços, a "Teoria do Preço" represente, para ele, somente "a análise da relação entre as variações da quantidade de moeda e as variações do nível dos preços." (General Theory, p. 296 [p. 289 na edição portuguesa]).

[3] Cf. General Theory, p. 137 [p. 149 na ed. portuguesa]: "Teremos de apurar a taxa de juro a partir de uma outra fonte, e só então poderemos valorizar o ativo, por meio da “capitalização” do seu rendimento prospetivo.”

[4] A razão pela qual o Sr. Keynes não retira essa conclusão, e a explicação generalizada para a sua atitude peculiar em relação ao problema da determinação dos preços relativos, é presumivelmente que, sob a influência da doutrina do "custo real", que até aos dias de hoje desempenha um papel tão relevante na tradição de Cambridge, ele assume que os preços de todos os bens, exceto os mais duradouros, são determinados pelos custos, mesmo no curto-prazo. Contudo, qualquer que seja a nossa opinião quanto à utilidade, numa análise de equilíbrio, de uma explicação dos preços relativos baseada nos respetivos custos, deve deixar-se claro que tal explicação é completamente inútil para qualquer discussão de problemas do curto-prazo.

Capítulo 7 do livro The Critics of Keynesian Economics (1960), compilado por Henry Hazlitt com excertos das obras The Pure Theory of Capital (pp. 373-376 e 409) e The Constitution of Liberty (p. 280).

Tradução e narração: Pedro Almeida Jorge.

 

 

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