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2024-02-23

Por Aleksei Navalny, Natan Sharansky

A Correspondência de Navalny na Cela do Gulag

Em 2023, o prisioneiro político russo Alexei Navalny escreveu ao antigo dissidente soviético Natan Sharansky desde a sua cela penitenciária no Gulag.

Recentemente, após a sua trágica morte, o The Free Press divulgou essa correspondência histórica, cuja tradução para português publicamos agora pela primeira vez em Portugal.

[Nota editorial do The Free Press: Natan Sharansky, um dos grandes heróis do século XX, correspondeu-se com Alexei Navalny, um dos grandes heróis do século XXI. Navalny, através dos seus advogados, conseguiu um exemplar em russo das famosas memórias de Sharansky, Fear No Evil [“Não Temas o Mal”]. Leu-as no Gulag, onde foi morto em 16 de fevereiro de 2024. Sabemos desta leitura porque enviou duas cartas a Sharansky: uma em março e outra em abril de 2023.

Temos hoje a honra de publicar estas históricas missivas, nos manuscritos originais em russo, e em inglês (Agradecemos a Anna Lyubarskaja e Rebekah Koffler a ajuda na tradução).

Há tanta coisa impressionante nesta correspondência: a erudição; as referências Bíblicas ("Tudo conforme o Eclesiastes: o que foi, será," escreve Navalny); a clareza moral ("Descobri na prisão que, para além da lei universal da gravitação das partículas, também existe a lei universal da gravitação das almas," escreve Sharansky. "Ao manteres-te livre na prisão, tu, Aleksei, tocaste as almas de milhões de pessoas por esse mundo fora.")

Mas o mais impressionante de tudo é o humor deles. Sharansky chama à cela disciplinar a sua "alma mater". Navalny faz uma piada a dizer que não há melhor lugar para passar a Semana Santa que na cela disciplinar (conhecida por SHIZO). E assim por diante.

Sharansky termina a segunda carta com esta frase: "Com todo o tempo que já passaste na SHIZO, não tarda estás a bater todos os meus recordes. Espero que não o consigas." Ao telefone, na semana passada, depois de ter sabido que Navalny tinha sido morto, disse-me: "Nós, os dissidentes, somos dados ao humor negro. Mas esta piada é ainda mais negra do que eu previa."

Uma última nota: normalmente não recorremos a notas de rodapé nas peças que publicamos na The Free Press. Neste caso, abrimos uma exceção, para permitir ao leitor compreender melhor as cartas e algumas das referências nelas feitas.

- Bari Weiss.]

+++

 

Esta é a primeira carta escrita por Alexei Navalny a Natan Sharansky. O papel foi requisitado à prisão em 30 de março de 2023. A carta está datada de 3 de abril de 2023. A tradução surge imediatamente após a imagem.

Caríssimo Natan,

Sou o Aleksei Navalny. Estou a saudá-lo a partir de Vladimirskaya Oblast, embora não tenha a certeza de que guarde boas memórias daqui.

Encontro-me atualmente na colónia penal IK-6 "Melekhovo", mas escreveram-me da prisão Vladimirskaya a dizer que estão lá a preparar uma cela para mim. Por isso é provável que vá parar às mesmas instalações onde você também esteve. Só que agora haverá provavelmente uma placa a dizer "Natan Sharansky esteve aqui preso". Peço-lhe que me desculpe estar a maçá-lo com esta carta de um estranho, mas creio que será admissível no relacionamento autor-leitor.

Estou a escrever-lhe enquanto leitor. Acabei de ler o seu livro, "Não Temas o Mal", enquanto estive detido no PKT [1]. Agora estou a escrever-lhe da SHIZO [2] – serão 128 dias no total. Ri-me quando li a passagem onde escreve, "Fui castigado com estadas sucessivas de 15 dias na SHIZO, para depois, acusado de ter violado os regulamentos prisionais, me mandarem 6 meses para o PKT." E o que me fez rir foi o facto de nem a essência do sistema nem o padrão dos seus atos ter mudado.

Quero agradecer-lhe este livro, pelo muito que me ajudou e continua a ajudar. É verdade que agora estou na SHIZO, mas quando se lê sobre os 400 dias que passou na "cela disciplinar" com a comida racionada, fica-se a saber que há quem tenha pagado muito mais pelas suas convicções. Vejo os postais que Avital [3] lhe mandou: todo o texto foi rasurado. E depois vou a julgamento onde tentam convencer-me que queimar as cartas que me eram enviadas é legal. No fim de contas, havia um "código" contido nelas.

Sei que não sou o primeiro, mas quero mesmo ser o último, ou pelo menos um dos últimos, a terem de aguentar isto.

O seu livro é encorajador pela similitude que mostra entre os dois sistemas – a União Soviética e a Rússia de Putin – as semelhanças ideológicas, a hipocrisia que lhes está na essência, e a continuidade entre a primeira e a segunda – tudo traços que lhe garantem um também inevitável colapso. Como aquele que testemunhámos.[4]

O essencial é que sejam tiradas as conclusões certas, para que este estado de mentiras e hipocrisia não entre num novo ciclo. No prefácio da edição de 1991, escrevia que os dissidentes presos mantiveram o "vírus da liberdade" ativo e que era preciso evitar que o KGB descobrisse a vacina para o combater. Infelizmente descobriram-na. Mas agora, a culpa não é deles, mas nossa, que ingenuamente pensámos que o tempo não voltava para trás. E, pelo bem, aceitámos que eleições fossem um bocadinho manipuladas aqui, ou tribunais um bocadinho influenciados ali, e a comunicação social um bocado abafada acolá.

São estas pequenas coisas, e a crença na modernização do autoritarismo, os ingredientes da vacina.

No entanto, o "vírus da liberdade" está longe de estar erradicado. Já não são dezenas ou centenas como antes, mas dezenas e centenas de milhares que não têm medo de falar para defender a liberdade e atacar a guerra [5], mesmo que ameaçados. Há centenas nas prisões, mas confio que não se deixarão vergar nem desistirão.

E muitos deles vão buscar forças e inspiração à sua história e ao seu legado.

Eu sou, sem dúvida, um deles.

Aceite os meus agradecimentos.

Copiei aqui para mim esta expressão do livro: L’Shana Haba’ah B’Yerushalayim.[6]

Respeitosamente,

Aleksei

+++

Seguem-se as cinco páginas da resposta de Natan Sharansky a Alexei Navalny. A carta está datada de 3 de abril de 2023, em Jerusalém.

Mui estimado Aleksei,

Senti como que um choque ao receber a tua carta. A simples ideia de ela vir diretamente da SHIZO, onde já passaste 128 dias, provoca a emoção que um ancião pode sentir ao receber uma carta proveniente da sua "alma mater", a universidade onde passou muitos dos anos da sua juventude.

Respondo-te não só de "autor para leitor", mas também como teu admirador.

Enquanto "autor para leitor":

Enquanto escrevia "Não Temas o Mal", logo após a minha libertação em fevereiro de 1986, quase todos os meus amigos e camaradas-de-armas estavam ou presos em gulags ou na luta. Foi por isso que pensei o livro não apenas como um de memórias, mas também como uma espécie de compêndio ou manual sobre o comportamento a adotar num confronto com o KGB. Mas, quando foi publicado em russo, já se tinha dado a derrocada da URSS. Por isso, ao longo dos anos, o livro foi sendo cada vez mais interpretado como uma novela histórica sobre a idade das trevas. Mas agora – "o sonho do tolo tornou-se realidade!"[7]

Primeiro foi Volodya Kara-Murza[8], agora tu: escrevem-me sobre como este livro "funciona" numa prisão russa atual. O meu infortúnio trouxe esperança.

E agora – enquanto admirador:

Tu, Aleksei, não te limitas a ser um dissidente – és um dissidente "com estilo"! O horror que senti quando foste envenenado transformou-se em espanto e entusiasmo quando deste início à tua investigação independente.

Fiquei bastante irritado com a questão colocada por um correspondente europeu no dia seguinte ao teu regresso à Rússia. "Porque é que ele voltou? Toda a gente sabia que iria ser preso no aeroporto – será que não consegue perceber coisas tão simples?" A minha resposta foi bastante azeda: "Você é que não percebe certas coisas. Se acha que o que ele quer é sobreviver – tem razão. Mas o que mais o preocupa é o destino do seu povo – e está a dizer-lhes: 'Não tenho medo e vocês também não devem ter.' "

Desejo – por muito custoso que fisicamente seja – que mantenhas a tua liberdade interior.

Descobri na prisão que, para além da lei universal da gravitação das partículas, também existe a lei universal da gravitação das almas. Ao manteres-te livre na prisão, tocas as almas de milhões de pessoas por esse mundo fora.

Aleksei, é mesmo muito triste que o passado consiga regressar tão rápida e tão facilmente. Volodya Bukovsky insistiu, após a queda da URSS, para que o comunismo fosse julgado. Mas não havia muito quem apoiasse tal ideia – no fim de contas, o mundo livre tinha vencido "sem disparar um tiro" – para quê desenterrar o passado?

Espero que agora, depois de todos os tiros que foram disparados, se tenha tornado claro porque é que era necessário então, e porque é que irá ser necessário amanhã.

xxx

A propósito, estou a escrever-te na véspera da Páscoa – a celebração da libertação dos judeus da escravatura egípcia há 3500 anos. É o início da nossa libertação e da nossa história como povo. Nesta noite, judeus de todo o mundo sentam-se à mesa da celebração e leem as palavras: "Hoje somos escravos – amanhã, livres. Hoje estamos aqui – para o ano, em Jerusalém."

Hoje estou sentado à mesa do banquete com um quipá, que foi feito há 40 anos, com o tecido de umas perneiras, por um companheiro de cela – um recluso ucraniano na prisão de Chistopol. São estas as voltas que o mundo dá. Desejo-te, Aleksei, e a toda a Rússia, que alcancem um Êxodo o mais brevemente possível.

Abraços,

Natan Sharansky

+++

Esta é a segunda carta que Alexei Navalny escreveu a Natan Sharansky. O papel foi requisitado em 7 de abril de 2023. A carta está datada de 11 de abril de 2023.

Caro Natan,

Apenas uma curta nota para um enorme obrigado pela sua resposta.

Fiquei tão sensibilizado que tive de esconder as lágrimas para que os meus companheiros as não vissem. E esta não é a primeira vez que você me faz isto! Na última página de "Não Tenham o Medo", quando escreve "desculpa o pequeno atraso," é impossível não desatar a chorar.[9]

Na sua alma mater, tudo como dantes. Respeitam-se as tradições. Na sexta-feira à noite deixaram-me sair da SHIZO; hoje, segunda, apanhei mais 15 dias. Tudo conforme o "Eclesiastes": o que foi, será.

Mas continuo a acreditar que vamos emendar as coisas e que um dia a Rússia será o que não era. E não será o que foi.

E, vamos lá ver: haverá melhor sítio que a SHIZO para passar a Semana Santa?

Mais uma vez, um grande obrigado.

Abraços,

A.

+++

Carta de Natan Sharansky para Alexei Navalny, escrita em Jerusalém a 17 de abril de 2023.

Caro Aleksei,

Só uma nota para responder à tua. É importante que a conexão entre pessoas e mundos não seja interrompida. Não direi entre o mundo livre e o que o não é, pois tu és hoje mais livre que muitos (se não que a maioria) em ambas as partes do nosso mundo.

Mas sei que tens tido de pagar pela tua liberdade – com a saúde, preocupações com a sua família e, eventualmente, com a vida.

Tenho algumas vantagens em relação a ti – não passo de 1,59 m de altura e a minha ração de comida era igual à tua. Na cela disciplinar, as mangas do meu casaco ficavam-me tão grandes que me conseguia agasalhar nelas, enquanto as tuas só te devem chegar aos cotovelos.

Mas podes ao menos receber estas cartas e, sobretudo, partilhar as tuas experiências em tempo real.

Um poeta russo proclamou um dia – "Não deixes que a tua alma seja preguiçosa; para não se pôr a moer água num almofariz, a alma tem de trabalhar dia e noite, dia e noite.”[10] Na Rússia, as pessoas têm dificuldade em fazê-lo, mas não tu.

Fazendo as contas a todo o tempo que já levas de SHIZO, não tarda estás a bater os meus recordes. Espero que não o consigas.

Abraços,

Natan


1 - O PKT é um confinamento solitário. Os prisioneiros no PKT estão sempre nas celas. Pode ler mais sobre o PKT aqui.

2 - A SHIZO é o mais severo castigo aplicado aos prisioneiros russos. Na SHIZO, também chamada cela disciplinar, os prisioneiros são mantidos em confinamento solitário, o acesso a água quente é restringido, e dispõem de 35 minutos por dia para escrever cartas. Só é permitido um livro. Não há telefonemas nem visitas. Pode ler mais sobre a SHIZO aqui.

3 - A mulher de Sharansky, que durante nove anos conduziu uma campanha internacional pela libertação do marido.

4 - Ou seja, o fim da União Soviética.

5 - A guerra da Rússia contra a Ucrânia.

6 - Significa "Para o ano em Jerusalém". É a frase dita todos os anos pelos judeus nas cerimónias da sua Páscoa. Foi esta a frase invocada por Sharansky quando, em 1978, era condenado por um tribunal Soviético a 13 anos de prisão. "Ao tribunal nada tenho a dizer. À minha mulher e ao povo judeu, digo: Para o ano em Jerusalém."

7 - Expressão idiomática russa.

8 - O dissidente russo Vladimir Kara-Murza. Foi acusado de "traição" por ter denunciado a guerra da Rússia contra a Ucrânia. Está atualmente preso numa colónia penal na Sibéria a cumprir uma pena de 25 anos.

9 - Aqui Navalny refere-se à passagem das memórias de Sharansky, quando este finalmente se junta com a sua mulher, Avital, após nove anos de prisão, e lhe diz, "Desculpa o pequeno atraso".

10 - Sharansky está a citar o primeiro verso do poema de Nikolai Zabolotsky, "Ne pozvolai dushe lenitsa".


Publicado originalmente pelo site The Free Press.

Tradução para português por José Mendes Lopes. Revisão por Pedro Almeida Jorge.

Fotografia: Denis Kaminev/AP

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