

2025-10-08
Por Maria Palmeiro Ribeiro, Juliano Ventura
Debater políticas públicas olhando apenas para dentro e para os problemas específicos de Portugal conduz frequentemente a discussões reféns de agendas ideológicas ou detalhes secundários, resultando em debates pouco consequentes e sem ímpeto reformista e ambicioso.
Nesta série de artigos "Políticas Liberais em Ação", propomos olhar além-fronteiras, através de artigos curtos, identificando casos concretos e bem-sucedidos de inspiração liberal implementados por outros países europeus. De forma sucinta, explicamos e analisamos cada caso. O objetivo? Trazer inspiração prática para transformar positivamente a realidade portuguesa.
Em Portugal, o setor cultural continua fortemente dependente de subsídios públicos, sendo os donativos privados e empresariais responsáveis apenas por uma parcela marginal das receitas das organizações culturais. Esta realidade limita a sustentabilidade financeira das instituições e condiciona a sua capacidade de investir em projetos inovadores ou de maior risco artístico. A dependência quase exclusiva do apoio estatal gera vulnerabilidade face a ciclos políticos e orçamentais, restringindo a autonomia e a diversidade cultural.
Mais do que uma questão de financiamento, este modelo reflete uma visão centralizada da política cultural, na qual o Estado assume o papel predominante de financiador e orientador das prioridades artísticas. Embora o papel do Estado possa ser relevante para garantir o acesso universal à cultura e apoiar áreas menos rentáveis, pode tornar-se um entrave ao florescimento de iniciativas independentes e à participação mais ativa da sociedade civil no apoio às artes. Em consequência, muitas instituições culturais portuguesas enfrentam dificuldades em diversificar as suas fontes de receita e em desenvolver estratégias de longo prazo, ficando limitadas por constrangimentos orçamentais e pela instabilidade das verbas públicas.
Em contrapartida, o exemplo do Reino Unido demonstra como a implementação de mecanismos fiscais bem estruturados pode estimular o mecenato individual e empresarial, criando um setor cultural mais vibrante, diversificado e economicamente sustentável. Ao transferir parte da responsabilidade do financiamento cultural para cidadãos e empresas, e ao criar incentivos claros para essa participação, o Estado britânico conseguiu desenvolver um ecossistema em que a cultura se sustenta não apenas pela proteção pública, mas também pelo investimento privado e pela corresponsabilização da sociedade civil.
O Exemplo Britânico: Alívio Fiscal e Incentivos ao Mecenato
O Reino Unido implementou um conjunto abrangente de mecanismos fiscais conhecidos como Creative Industry Tax Reliefs, que permitem às organizações culturais deduzir uma parte significativa dos custos elegíveis das suas produções. Estes instrumentos têm como objetivo não apenas aliviar o peso financeiro das instituições culturais, mas sobretudo incentivar a criação artística em setores que exigem elevados níveis de investimento inicial e que muitas vezes enfrentam riscos de retorno económico incerto.
Entre os mecanismos mais relevantes, destacam-se o Theatre Tax Relief, que oferece até 45% de alívio fiscal para produções itinerantes e 40% para produções fixas, tornando mais viáveis os projetos de teatro de média e pequena escala, frequentemente mais vulneráveis a restrições de financiamento. O Orchestra Tax Relief, por sua vez, cobre até 45% dos custos de concertos ao vivo, permitindo às orquestras diversificar a sua programação e chegar a novos públicos. Já o Museums and Galleries Exhibition Tax Relief oferece até 45% de reembolso sobre os custos de exposições temporárias, garantindo que museus regionais e nacionais possam apostar em conteúdos inovadores e atrativos, reforçando a sua capacidade de atrair visitantes e aumentar receitas próprias [1].
Complementando este quadro, o mecanismo Gift Aid constitui uma das ferramentas mais eficazes de estímulo ao mecenato individual. Através dele, instituições culturais e de caridade podem reaver 25% de imposto sobre doações feitas por contribuintes britânicos, tornando cada contribuição mais valiosa e apelativa [2]. Além disso, os contribuintes em escalões superiores de imposto beneficiam de deduções adicionais, criando um duplo incentivo: maior retorno para as instituições e vantagem fiscal clara para os doadores. Este modelo tem tido particular sucesso em mobilizar pequenas e médias doações, democratizando o acesso ao mecenato e envolvendo a sociedade civil no financiamento da cultura.
No campo empresarial, os incentivos não são menos significativos. O regime fiscal britânico permite que empresas deduzam integralmente do lucro tributável os donativos a produções culturais, museus e projetos de preservação do património [3]. Este enquadramento transforma o apoio à cultura numa prática de responsabilidade social corporativa não apenas simbólica, mas também economicamente vantajosa. Muitas empresas passam, assim, a associar a sua marca à valorização cultural, ao mesmo tempo que beneficiam de contrapartidas fiscais substanciais.
Este conjunto articulado de incentivos mostra como o Reino Unido conseguiu criar um ecossistema em que a intervenção do Estado não se traduz em financiamento direto e centralizado, mas antes na criação de condições para que a sociedade civil e o setor privado assumam um papel ativo no apoio à cultura. Trata-se de um modelo que conjuga pragmatismo económico com liberdade de escolha, incentivando tanto grandes investimentos como pequenos contributos individuais, o que garante diversidade e sustentabilidade no panorama cultural britânico [4].
O que torna esta política liberal?
A natureza liberal destas políticas decorre do princípio de que o Estado não deve assumir o papel de financiador exclusivo ou controlador direto das escolhas culturais, mas sim criar um enquadramento que permita à sociedade civil e às empresas participarem de forma ativa no financiamento e no desenvolvimento do setor. Ao invés de impor centralmente critérios de apoio, o governo britânico limita-se a disponibilizar incentivos fiscais que tornam atrativo o investimento privado. Deste modo, cidadãos e empresas exercem livremente a sua vontade de apoiar projetos culturais de acordo com as suas preferências, valores ou estratégias de responsabilidade social.
Este modelo traduz-se em três dimensões fundamentais: iniciativa privada, autonomia institucional e responsabilização social. Em primeiro lugar, estimula-se a iniciativa privada ao oferecer benefícios concretos a quem decide investir, reforçando a noção de que a cultura pode e deve ser apoiada não apenas por razões altruístas, mas também por racionalidade económica. Em segundo lugar, as instituições culturais ganham maior autonomia, já que não dependem exclusivamente de subsídios estatais e podem definir as suas prioridades artísticas de acordo com a procura, a inovação ou a sua missão própria. Por fim, promove-se a responsabilização social ao envolver empresas e cidadãos no financiamento cultural, transformando o apoio à cultura num ato de escolha voluntária que reforça a ligação entre criadores, públicos e mecenas.
Ao articular estes elementos, o modelo britânico ilustra uma visão liberal da política cultural: menos centralização estatal, mais liberdade de decisão, maior diversificação de fontes de receita e uma partilha de responsabilidades entre Estado, sociedade civil e setor privado. Trata-se, assim, de um quadro que valoriza a liberdade individual, a eficiência económica e a sustentabilidade a longo prazo, sem comprometer a pluralidade cultural.
Resultados Visíveis: Investimento e Sustentabilidade
Entre 2021 e 2022, os Creative Industry Tax Reliefs possibilitaram £163 milhões de investimento em produções culturais, com apenas £38 milhões em deduções fiscais, gerando um retorno económico superior a quatro vezes o valor do incentivo [5]. Este apoio contribuiu para o aumento do número de produções teatrais, com 2023 a registar um recorde de bilheteira no West End, com mais de 17,1 milhões de bilhetes vendidos [6]. O efeito destes incentivos estendeu-se também a outras regiões, como Plymouth e Leeds, promovendo dinamização cultural fora da capital. Segundo a Private Investment in Culture Survey (2025), em 2023/24, nas organizações culturais britânicas excluindo as maiores, 58% da receita provinha de vendas e serviços próprios, 25% de fundos públicos e 17% de investimento privado, demonstrando a capacidade do setor de gerar receitas próprias quando incentivado [7].
Em contraste, o setor cultural português continua a depender fortemente de subsídios públicos. Os donativos privados são responsáveis apenas por uma pequena fração das receitas das organizações culturais, embora não existam números concretos sobre o seu peso no financiamento do setor cultural português.
A diferença entre os dois países reflete-se também no acesso e na participação cultural da população. No Reino Unido, em 2024/25, cerca de 90% dos adultos na Inglaterra diziam ter contactado com o setor cultural no último ano, sendo que 59% o fizeram semanalmente. Aproximadamente 54% foram ao cinema, 39% assistiram a uma peça de teatro, 43% visitaram museus ou galerias fisicamente e 31% utilizaram bibliotecas nos últimos 12 meses [8]. Em Portugal, em 2020, apenas 31% da população acima dos 16 anos foi ao cinema, 13% assistiram a peças de teatro e 28% visitaram museus no ano anterior (dados referentes aos últimos 12 meses antes da pandemia) [9].
A comparação entre os dois países evidencia diferenças significativas na sustentabilidade do setor cultural e na acessibilidade para a população, embora questões culturais também possam ajudar a explicar esta realidade. O modelo britânico, apoiado por incentivos fiscais robustos, tem promovido maior autonomia financeira das instituições culturais e maior envolvimento da população e das empresas no financiamento e na decisão cultural. Em Portugal, a dependência de subsídios públicos e a limitada participação privada restringem tanto a sustentabilidade financeira das organizações quanto a frequência de participação cultural dos cidadãos.

Adaptação ao Contexto Português
Portugal poderia beneficiar significativamente da implementação de um sistema de alívio fiscal semelhante ao modelo britânico, reduzindo a dependência quase exclusiva de subsídios públicos e estimulando o mecenato tanto individual como empresarial. Um regime fiscal bem estruturado permitiria que cidadãos e empresas deduzissem parte dos donativos ou investimentos realizados em instituições culturais registadas no país, tornando o apoio à cultura mais atrativo e economicamente vantajoso. Isto não só incentivaria a participação privada, como também aumentaria a autonomia financeira das organizações culturais, permitindo-lhes planear projetos de maior dimensão e de maior risco artístico sem depender exclusivamente da aprovação do Estado.
Atualmente, o Estatuto dos Benefícios Fiscais prevê incentivos ao mecenato, mas a sua eficácia é limitada. Os incentivos são inferiores aos aplicados no Reino Unido e enfrentam entraves burocráticos que desmotivam os potenciais doadores. Além disso, os limites de dedução e a complexidade do processo de reporte reduzem a atratividade do mecenato privado, especialmente para pequenas e médias empresas e para cidadãos com rendimentos médios, que poderiam desempenhar um papel relevante na diversificação do financiamento cultural.
A criação de um regime fiscal específico, inspirado nos mecanismos britânicos, poderia incluir medidas adicionais, como deduções mais elevadas para investimentos em projetos inovadores ou de relevância nacional, benefícios fiscais escalonados em função do valor do donativo e simplificação dos processos de certificação e reporte. Complementarmente, poderiam ser implementadas campanhas de divulgação junto de empresas e cidadãos para aumentar a consciencialização sobre os benefícios fiscais e sociais de investir na cultura.
Esta abordagem permitiria não apenas aumentar os recursos disponíveis para instituições culturais, mas também promover uma cultura de responsabilidade social e de participação cívica, onde o financiamento da cultura se tornaria uma escolha voluntária e estratégica de indivíduos e empresas. A longo prazo, a adaptação de mecanismos fiscais similares ao Reino Unido contribuiria para um setor cultural mais diversificado, inovador e economicamente sustentável, capaz de gerar impacto social e económico de forma mais ampla, fortalecendo o ecossistema cultural português e incentivando uma maior frequência de participação da população nas atividades culturais.
O essencial
O modelo utilizado no Reino Unido mostra que políticas liberais bem desenhadas podem transformar o setor cultural, promovendo autonomia, investimento privado e sustentabilidade. A adaptação de mecanismos fiscais semelhantes em Portugal poderia fortalecer o mecenato, diversificar fontes de financiamento e assegurar um crescimento cultural mais robusto e resiliente, beneficiando cidadãos, empresas e instituições culturais.
Maria Palmeiro Ribeiro é estudante de Política e Relações Internacionais na University College London (UCL) e realizou este trabalho no âmbito de um estágio no Instituto +Liberdade.
Juliano Ventura é economista e analista do Instituto +Liberdade e do projeto +Factos desde 2022. É co-autor de dois livros da Coleção +Liberdade e de vários estudos.
Referências
[1] "Permanent 40% and 45% rates for theatre, orchestra, museum and galleries tax reliefs". 2024. Gov.uk. (link).
[2] "Claiming Gift Aid as a charity or CASC". Gov.uk. (link).
[3] “Tax when your limited company gives to charity” Gov.uk. (link).
[4] “Spring Budget: Higher culture tax reliefs made permanent in ‘game-changing’ move". 2024. Arts Professional. (link).
[5] “Theatre Tax Relief.” 2023. UK Theatre. 2023. (link).
[6] “Lewis, Barbara, and Muvija M. 2025. “West End Beats Broadway in Theatre Revival. What’s the Secret?”. Reuters. 2025. (link).
[7] ThomasAFP. 2025. “What Does the Private Investment in Culture Survey Reveal? | Arts Fundraising & Philanthropy.” Arts Fundraising & Philanthropy. 2025. (link).
[8] "Main report for the Participation Survey (April 2024 to March 2025)”. 2025. Gov.uk. (link).
[9] "Inquérito às Práticas Culturais dos Portugueses - 2020 Síntese dos Resultados”. 2020. ICS. (link).
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