Mais Liberdade
  • Instagram
  • Facebook
  • X / Twitter
  • Linkedin
  • Youtube

2025-10-15

Por Maria Palmeiro Ribeiro, Juliano Ventura

Políticas Liberais em Ação: O Modelo Norueguês de Mediação como Caminho para uma Justiça Mais Eficaz

Debater políticas públicas olhando apenas para dentro e para os problemas específicos de Portugal conduz frequentemente a discussões reféns de agendas ideológicas ou detalhes secundários, resultando em debates pouco consequentes e sem ímpeto reformista e ambicioso.

Nesta série de artigos "Políticas Liberais em Ação", propomos olhar além-fronteiras, através de artigos curtos, identificando casos concretos e bem-sucedidos de inspiração liberal implementados por outros países europeus. De forma sucinta, explicamos e analisamos cada caso. O objetivo? Trazer inspiração prática para transformar positivamente a realidade portuguesa.

Portugal enfrenta desafios persistentes no sistema judicial, que se traduzem em longos tempos de espera para a resolução de processos, sobrecarga dos tribunais e uma perceção pública de ineficácia e distanciamento das necessidades reais dos cidadãos. A morosidade processual compromete não apenas a eficácia do sistema, mas também a confiança dos cidadãos na justiça — um pilar essencial de qualquer democracia liberal moderna. Muitos cidadãos veem o sistema como inacessível, demasiado formal e pouco orientado para a resolução prática dos conflitos.

O exemplo norueguês, com a implementação dos Conselhos Locais de Mediação Penal e Comunitária (Konfliktråd), oferece uma abordagem liberal e inovadora. Criados para promover a resolução de conflitos fora dos tribunais, estes conselhos combinam princípios de liberdade individual, responsabilidade cívica e eficiência administrativa. Através de mediadores imparciais e de um enquadramento jurídico flexível, o sistema norueguês permite que as partes encontrem soluções, reduzindo significativamente a litigiosidade e aliviando o sistema judicial formal. Inspirar-se neste modelo significaria, para Portugal, apostar numa justiça descentralizada e participativa, que valorize o diálogo, a reparação e a autonomia dos cidadãos — uma justiça mais próxima, mais rápida e mais humana, que concretize na prática os ideais de uma política liberal moderna.

 

O Modelo Norueguês: Mediação Penal e Comunitária Integrada no Sistema de Justiça

Desde 1991, a Noruega tem sido um caso exemplar de como a mediação pode ser integrada de forma orgânica e eficaz no sistema judicial. A criação dos Conselhos de Conflito (Konfliktråd), integrados no Serviço Nacional de Mediação (NMS), representou uma mudança estrutural na forma de encarar a justiça — de um modelo centrado na punição e na autoridade do Estado para um modelo baseado na reparação, no diálogo e na responsabilidade individual [1].

Estes Conselhos funcionam como uma rede descentralizada, presente em todas as regiões do país, oferecendo um espaço neutro onde vítimas e infratores podem encontrar soluções mutuamente acordadas, com o apoio de um mediador imparcial. O objetivo não é apenas resolver o conflito jurídico, mas restaurar relações sociais, promover empatia e reduzir a reincidência. A mediação é vista como um instrumento de reintegração e responsabilização, especialmente eficaz em crimes de menor gravidade e em casos envolvendo jovens, nos quais a abordagem punitiva tradicional tende a falhar na reabilitação.

O acesso ao NMS é universal, gratuito e voluntário, estando aberto a todos os residentes noruegueses. As partes só participam mediante consentimento mútuo, o que reforça o princípio liberal da autonomia individual. Esta liberdade de escolha, aliada a um ambiente de confiança e diálogo, confere legitimidade e eficácia ao processo. Cerca de 72% dos casos são encaminhados pelas autoridades policiais ou pelo Ministério Público, revelando uma forte articulação institucional entre a mediação e o sistema judicial formal — sem, contudo, comprometer a independência dos Conselhos [2].

Os mediadores são recrutados localmente, garantindo representatividade social e proximidade cultural. Todos passam por um rigoroso processo de seleção, formação e avaliação contínua, assegurando padrões elevados de qualidade e ética profissional. Atualmente, existem cerca de 550 mediadores em atividade, permitindo que o serviço mantenha presença física em todo o território nacional, incluindo regiões remotas [3].

A eficácia deste modelo é amplamente reconhecida: redução de custos judiciais, descongestionamento dos tribunais, maior satisfação das partes e menor taxa de reincidência entre os participantes. Mais do que um mecanismo alternativo, o sistema norueguês tornou-se parte integrante da justiça moderna, demonstrando que a mediação, quando institucionalmente apoiada e socialmente valorizada, pode ser um pilar central de uma justiça liberal, humana e eficiente [4].

 

O que torna esta política liberal?

O modelo norueguês de mediação é considerado uma política liberal porque coloca o indivíduo no centro do processo de justiça, devolvendo-lhe poder de decisão e autonomia na resolução de conflitos. Em vez de um Estado omnipresente que monopoliza o julgamento e a punição, o sistema aposta na liberdade de escolha e na responsabilidade pessoal das partes envolvidas.

A mediação é voluntária, o que significa que ninguém é forçado a participar nem a aceitar uma solução imposta por uma autoridade. Vítima e infrator decidem livremente se querem dialogar, se desejam alcançar um acordo e quais os termos que consideram justos. Esta lógica de consentimento mútuo reflete um princípio fundamental do liberalismo: a confiança na capacidade dos cidadãos para agir racionalmente, negociar e assumir compromissos sem depender de uma tutela estatal permanente.

Além disso, o modelo reduz a dependência do Estado e a burocracia judicial, deslocando o foco da punição para a autogestão de conflitos. O Estado não desaparece — garante o enquadramento legal, a formação dos mediadores e a homologação dos acordos — mas atua como facilitador, não como controlador. Essa função limitada e subsidiária é coerente com o ideal liberal de um Estado moderador, eficiente e descentralizado, que apoia a liberdade individual sem sufocá-la.

Outro aspeto que reforça o caráter liberal do sistema é o seu caráter descentralizado e comunitário. Os mediadores são recrutados localmente e representam a diversidade social, o que promove uma justiça mais próxima das pessoas e sensível aos contextos locais. Em vez de um aparelho judicial distante, abstrato e impessoal, a mediação cria um ecossistema de justiça participativa, onde o diálogo e a cooperação substituem o confronto e a burocracia.

Por fim, o modelo traduz-se numa justiça mais eficiente e restaurativa, em que o resultado não é apenas uma sentença, mas uma solução personalizada que satisfaz ambas as partes e contribui para a coesão social. Trata-se, portanto, de uma política liberal não apenas porque maximiza a liberdade e a responsabilidade individual, mas também porque reforça a confiança social e o papel ativo dos cidadãos na resolução dos seus próprios problemas.

Em síntese, a mediação norueguesa é liberal porque demonstra que o Estado pode garantir justiça sem monopolizá-la — criando um equilíbrio virtuoso entre liberdade e enquadramento jurídico, autonomia e segurança, eficiência e humanidade.

 

Resultados Comprovados: Confiança, Eficiência e Justiça Restaurativa 

Anualmente, o Serviço Nacional de Mediação trata mais de 7 mil novos casos, mostrando a sua relevância crescente no sistema de justiça norueguês [5]. Os casos remetidos para o NMS evoluíram de crimes principalmente menores para delitos mais graves (21% são crimes violentos), indicando uma confiança crescente no sistema de mediação [6].

Em termos comparativos, a Noruega apresenta índices elevados de confiança na justiça (77% da população com confiança alta ou moderada alta em 2023, a maior percentagem da OCDE), em contraste com Portugal, onde esta confiança ronda apenas os 45% [7]. Para além disso, em 2024, o Índice de Liberdade da Justiça Cível face a Interferências Indevidas do Governo na Noruega era 0,94, o mais alto da OCDE, e em Portugal era apenas 0,68 (abaixo da média da OCDE) [8]. No mesmo ano, a Noruega ficou em 2.º lugar no Índice de Estado de Direito, indicador que mede a qualidade das instituições e o respeito pela lei, enquanto Portugal ficou-se pela 28.ª posição. A Noruega foi classificada em 2.º lugar na Justiça Civil e em 3.º em Justiça Criminal, enquanto Portugal ocupou a 32.ª e a 39.ª posições, respetivamente [9].

O país nórdico destaca-se também pela rapidez na resolução de processos em tribunais de 1.ª instância: enquanto em Portugal os processos criminais demoram em média 211 dias a ser resolvidos, na Noruega o prazo é de apenas 61 dias; nos casos civis, são necessários 176 dias na Noruega e 238 em Portugal [10]. Nos processos administrativos, a espera em Portugal atinge os 747 dias, o segundo número mais elevado na UE (não existem dados para a Noruega).

Adaptação ao Contexto Português

Em Portugal, embora já existam mecanismos formais de mediação penal e civil, o seu alcance e impacto permanecem limitados e fragmentados. A mediação é prevista legalmente mas o seu uso continua residual, frequentemente restrito à fase inicial dos processos e a casos de menor complexidade. Isto contrasta com o modelo norueguês, que conseguiu institucionalizar a mediação como parte integrante e complementar do sistema judicial, oferecendo uma alternativa credível e acessível à via tradicional.

A criação de Conselhos Locais de Mediação Penal e Comunitária, com presença física em todos os distritos e coordenação central pelo Ministério da Justiça, representaria um passo decisivo para democratizar o acesso à justiça restaurativa. Estes conselhos poderiam funcionar como plataformas descentralizadas de resolução de conflitos, promovendo a proximidade entre os cidadãos e os mediadores, e reduzindo a dependência dos tribunais. A descentralização permitiria também aliviar a sobrecarga do sistema judicial, encurtando prazos e libertando recursos para os casos mais complexos.

Portugal possui experiências valiosas que poderiam servir de base a este modelo. Os Julgados de Paz, por exemplo, demonstram que é possível oferecer um serviço de justiça simples, célere e centrado no diálogo, através de mediação, conciliação ou decisão por juiz de paz. No entanto, estes julgados abrangem apenas questões cíveis de menor valor e têm distribuição territorial desigual, deixando vastas áreas do país sem acesso a este tipo de serviço [11].

A ampliação da mediação penal e comunitária deveria, por isso, incluir diferentes fases do processo criminal — tanto pré-acusação, permitindo evitar a judicialização de conflitos de pequena escala, como pós-acusação, favorecendo a reparação do dano e a reintegração social. Do mesmo modo, seria pertinente alargar o âmbito da mediação a contextos familiares, escolares, laborais e comunitários, criando uma cultura de resolução pacífica de conflitos sustentada na responsabilidade individual e no diálogo social.

Para garantir a qualidade e a credibilidade do sistema, seria essencial instituir um modelo rigoroso de recrutamento, formação e avaliação de mediadores comunitários, de preferência voluntários, mas com formação certificada e acompanhamento permanente. A diversidade geográfica e sociocultural dos mediadores reforçaria o caráter local e participativo da justiça, tornando-a mais próxima e sensível às realidades de cada comunidade.

Por fim, a diversificação das entidades com capacidade de encaminhar casos para mediação — incluindo escolas, autarquias, forças de segurança, serviços sociais e organizações cívicas — garantiria um acesso mais amplo e equitativo. Em vez de depender exclusivamente do Ministério Público, o sistema passaria a ser colaborativo e interinstitucional, promovendo uma justiça mais aberta, preventiva e integrada.

Em suma, a adaptação do modelo norueguês ao contexto português permitiria reconciliar a justiça com os cidadãos, substituindo uma lógica burocrática e punitiva por uma justiça liberal, participativa e restaurativa, mais eficaz na resolução de conflitos e mais alinhada com os valores de autonomia, responsabilidade e proximidade social.

 

O essencial

O modelo norueguês de mediação penal e comunitária representa uma abordagem liberal e inovadora para a justiça, que alia eficiência, proximidade social e respeito pela autonomia das partes. Ao promover soluções restaurativas e reduzir a sobrecarga dos tribunais, esta política contribui para uma justiça mais humana, ágil e confiável.

Para Portugal, adaptar esta experiência poderia significar uma transformação profunda no funcionamento do sistema judicial, com ganhos em rapidez, qualidade e confiança pública, aproximando a justiça dos cidadãos e fortalecendo o Estado de Direito de uma forma moderna e liberal.

 


Maria Palmeiro Ribeiro é estudante de Política e Relações Internacionais na University College London (UCL) e realizou este trabalho no âmbito de um estágio no Instituto +Liberdade.

Juliano Ventura é economista e analista do Instituto +Liberdade e do projeto +Factos desde 2022. É co-autor de dois livros da Coleção +Liberdade e de vários estudos.


Referências

[1] About The National Mediation Service (NMS) / Konfliktrådene. (link).

[2] PAUS, KAREN KRISTIN. 2018. “The National Mediation Service? A Topdown Grassroots Movement?” Federal Sentencing Reporter 31 (1): 37–47. (link). 

[3] The National Mediation Service (NMS) / Konfliktrådene. (link). 

[4] "Restorative justice and victim-offender mediation in Norway", Anna Nylund. (link). 

[5] “The Mediator´S Handbook Basic Principles and Practice Advice for Facilitators of Restorative Justice in the Norwegian National Mediation Service.” 2021. (link).

[6] PAUS, KAREN KRISTIN. 2018. “The National Mediation Service? A Topdown Grassroots Movement?” Federal Sentencing Reporter 31 (1): 37–47. (link).

[7] “Government at a Glance 2025: Trust, Accessibility, Responsiveness, and Quality of Justice Services.” 2025. OECD. 2025. (link).

[8] “Government at a Glance 2025: Trust, Accessibility, Responsiveness, and Quality of Justice Services.” 2025b. OECD. 2025. (link).

[9] WJP Rule of Law Index 2024. 2024. World Justice Project. (link).

[10] "European judicial systems CEPEJ Evaluation Report". 2024. (link).

[11] “Como Funcionam Os Julgados de Paz? | Justiça.gov.pt.” n.d. DGPJ. (link).

Instituto +Liberdade

Em defesa da democracia-liberal.

info@maisliberdade.pt
+351 936 626 166

© Copyright 2021-2025 Instituto Mais Liberdade - Todos os direitos reservados

Este website utiliza cookies no seu funcionamento

Estas incluem cookies essenciais ao funcionamento do site, bem como outras que são usadas para finalidades estatísticas anónimas.
Pode escolher que categorias pretende permitir.

Este website utiliza cookies no seu funcionamento

Estas incluem cookies essenciais ao funcionamento do site, bem como outras que são usadas para finalidades estatísticas anónimas.
Pode escolher que categorias pretende permitir.

Your cookie preferences have been saved.