

2025-10-15
Por Maria Palmeiro Ribeiro, Juliano Ventura
Debater políticas públicas olhando apenas para dentro e para os problemas específicos de Portugal conduz frequentemente a discussões reféns de agendas ideológicas ou detalhes secundários, resultando em debates pouco consequentes e sem ímpeto reformista e ambicioso.
Nesta série de artigos "Políticas Liberais em Ação", propomos olhar além-fronteiras, através de artigos curtos, identificando casos concretos e bem-sucedidos de inspiração liberal implementados por outros países europeus. De forma sucinta, explicamos e analisamos cada caso. O objetivo? Trazer inspiração prática para transformar positivamente a realidade portuguesa.
Portugal enfrenta desafios persistentes no sistema judicial, que se traduzem em longos tempos de espera para a resolução de processos, sobrecarga dos tribunais e uma perceção pública de ineficácia e distanciamento das necessidades reais dos cidadãos. A morosidade processual compromete não apenas a eficácia do sistema, mas também a confiança dos cidadãos na justiça — um pilar essencial de qualquer democracia liberal moderna. Muitos cidadãos veem o sistema como inacessível, demasiado formal e pouco orientado para a resolução prática dos conflitos.
O exemplo norueguês, com a implementação dos Conselhos Locais de Mediação Penal e Comunitária (Konfliktråd), oferece uma abordagem liberal e inovadora. Criados para promover a resolução de conflitos fora dos tribunais, estes conselhos combinam princípios de liberdade individual, responsabilidade cívica e eficiência administrativa. Através de mediadores imparciais e de um enquadramento jurídico flexível, o sistema norueguês permite que as partes encontrem soluções, reduzindo significativamente a litigiosidade e aliviando o sistema judicial formal. Inspirar-se neste modelo significaria, para Portugal, apostar numa justiça descentralizada e participativa, que valorize o diálogo, a reparação e a autonomia dos cidadãos — uma justiça mais próxima, mais rápida e mais humana, que concretize na prática os ideais de uma política liberal moderna.
O Modelo Norueguês: Mediação Penal e Comunitária Integrada no Sistema de Justiça
Desde 1991, a Noruega tem sido um caso exemplar de como a mediação pode ser integrada de forma orgânica e eficaz no sistema judicial. A criação dos Conselhos de Conflito (Konfliktråd), integrados no Serviço Nacional de Mediação (NMS), representou uma mudança estrutural na forma de encarar a justiça — de um modelo centrado na punição e na autoridade do Estado para um modelo baseado na reparação, no diálogo e na responsabilidade individual [1].
Estes Conselhos funcionam como uma rede descentralizada, presente em todas as regiões do país, oferecendo um espaço neutro onde vítimas e infratores podem encontrar soluções mutuamente acordadas, com o apoio de um mediador imparcial. O objetivo não é apenas resolver o conflito jurídico, mas restaurar relações sociais, promover empatia e reduzir a reincidência. A mediação é vista como um instrumento de reintegração e responsabilização, especialmente eficaz em crimes de menor gravidade e em casos envolvendo jovens, nos quais a abordagem punitiva tradicional tende a falhar na reabilitação.
O acesso ao NMS é universal, gratuito e voluntário, estando aberto a todos os residentes noruegueses. As partes só participam mediante consentimento mútuo, o que reforça o princípio liberal da autonomia individual. Esta liberdade de escolha, aliada a um ambiente de confiança e diálogo, confere legitimidade e eficácia ao processo. Cerca de 72% dos casos são encaminhados pelas autoridades policiais ou pelo Ministério Público, revelando uma forte articulação institucional entre a mediação e o sistema judicial formal — sem, contudo, comprometer a independência dos Conselhos [2].
Os mediadores são recrutados localmente, garantindo representatividade social e proximidade cultural. Todos passam por um rigoroso processo de seleção, formação e avaliação contínua, assegurando padrões elevados de qualidade e ética profissional. Atualmente, existem cerca de 550 mediadores em atividade, permitindo que o serviço mantenha presença física em todo o território nacional, incluindo regiões remotas [3].
A eficácia deste modelo é amplamente reconhecida: redução de custos judiciais, descongestionamento dos tribunais, maior satisfação das partes e menor taxa de reincidência entre os participantes. Mais do que um mecanismo alternativo, o sistema norueguês tornou-se parte integrante da justiça moderna, demonstrando que a mediação, quando institucionalmente apoiada e socialmente valorizada, pode ser um pilar central de uma justiça liberal, humana e eficiente [4].
O que torna esta política liberal?
O modelo norueguês de mediação é considerado uma política liberal porque coloca o indivíduo no centro do processo de justiça, devolvendo-lhe poder de decisão e autonomia na resolução de conflitos. Em vez de um Estado omnipresente que monopoliza o julgamento e a punição, o sistema aposta na liberdade de escolha e na responsabilidade pessoal das partes envolvidas.
A mediação é voluntária, o que significa que ninguém é forçado a participar nem a aceitar uma solução imposta por uma autoridade. Vítima e infrator decidem livremente se querem dialogar, se desejam alcançar um acordo e quais os termos que consideram justos. Esta lógica de consentimento mútuo reflete um princípio fundamental do liberalismo: a confiança na capacidade dos cidadãos para agir racionalmente, negociar e assumir compromissos sem depender de uma tutela estatal permanente.
Além disso, o modelo reduz a dependência do Estado e a burocracia judicial, deslocando o foco da punição para a autogestão de conflitos. O Estado não desaparece — garante o enquadramento legal, a formação dos mediadores e a homologação dos acordos — mas atua como facilitador, não como controlador. Essa função limitada e subsidiária é coerente com o ideal liberal de um Estado moderador, eficiente e descentralizado, que apoia a liberdade individual sem sufocá-la.
Outro aspeto que reforça o caráter liberal do sistema é o seu caráter descentralizado e comunitário. Os mediadores são recrutados localmente e representam a diversidade social, o que promove uma justiça mais próxima das pessoas e sensível aos contextos locais. Em vez de um aparelho judicial distante, abstrato e impessoal, a mediação cria um ecossistema de justiça participativa, onde o diálogo e a cooperação substituem o confronto e a burocracia.
Por fim, o modelo traduz-se numa justiça mais eficiente e restaurativa, em que o resultado não é apenas uma sentença, mas uma solução personalizada que satisfaz ambas as partes e contribui para a coesão social. Trata-se, portanto, de uma política liberal não apenas porque maximiza a liberdade e a responsabilidade individual, mas também porque reforça a confiança social e o papel ativo dos cidadãos na resolução dos seus próprios problemas.
Em síntese, a mediação norueguesa é liberal porque demonstra que o Estado pode garantir justiça sem monopolizá-la — criando um equilíbrio virtuoso entre liberdade e enquadramento jurídico, autonomia e segurança, eficiência e humanidade.
Resultados Comprovados: Confiança, Eficiência e Justiça Restaurativa
Anualmente, o Serviço Nacional de Mediação trata mais de 7 mil novos casos, mostrando a sua relevância crescente no sistema de justiça norueguês [5]. Os casos remetidos para o NMS evoluíram de crimes principalmente menores para delitos mais graves (21% são crimes violentos), indicando uma confiança crescente no sistema de mediação [6].
Em termos comparativos, a Noruega apresenta índices elevados de confiança na justiça (77% da população com confiança alta ou moderada alta em 2023, a maior percentagem da OCDE), em contraste com Portugal, onde esta confiança ronda apenas os 45% [7]. Para além disso, em 2024, o Índice de Liberdade da Justiça Cível face a Interferências Indevidas do Governo na Noruega era 0,94, o mais alto da OCDE, e em Portugal era apenas 0,68 (abaixo da média da OCDE) [8]. No mesmo ano, a Noruega ficou em 2.º lugar no Índice de Estado de Direito, indicador que mede a qualidade das instituições e o respeito pela lei, enquanto Portugal ficou-se pela 28.ª posição. A Noruega foi classificada em 2.º lugar na Justiça Civil e em 3.º em Justiça Criminal, enquanto Portugal ocupou a 32.ª e a 39.ª posições, respetivamente [9].
O país nórdico destaca-se também pela rapidez na resolução de processos em tribunais de 1.ª instância: enquanto em Portugal os processos criminais demoram em média 211 dias a ser resolvidos, na Noruega o prazo é de apenas 61 dias; nos casos civis, são necessários 176 dias na Noruega e 238 em Portugal [10]. Nos processos administrativos, a espera em Portugal atinge os 747 dias, o segundo número mais elevado na UE (não existem dados para a Noruega).

Adaptação ao Contexto Português
Em Portugal, embora já existam mecanismos formais de mediação penal e civil, o seu alcance e impacto permanecem limitados e fragmentados. A mediação é prevista legalmente mas o seu uso continua residual, frequentemente restrito à fase inicial dos processos e a casos de menor complexidade. Isto contrasta com o modelo norueguês, que conseguiu institucionalizar a mediação como parte integrante e complementar do sistema judicial, oferecendo uma alternativa credível e acessível à via tradicional.
A criação de Conselhos Locais de Mediação Penal e Comunitária, com presença física em todos os distritos e coordenação central pelo Ministério da Justiça, representaria um passo decisivo para democratizar o acesso à justiça restaurativa. Estes conselhos poderiam funcionar como plataformas descentralizadas de resolução de conflitos, promovendo a proximidade entre os cidadãos e os mediadores, e reduzindo a dependência dos tribunais. A descentralização permitiria também aliviar a sobrecarga do sistema judicial, encurtando prazos e libertando recursos para os casos mais complexos.
Portugal possui experiências valiosas que poderiam servir de base a este modelo. Os Julgados de Paz, por exemplo, demonstram que é possível oferecer um serviço de justiça simples, célere e centrado no diálogo, através de mediação, conciliação ou decisão por juiz de paz. No entanto, estes julgados abrangem apenas questões cíveis de menor valor e têm distribuição territorial desigual, deixando vastas áreas do país sem acesso a este tipo de serviço [11].
A ampliação da mediação penal e comunitária deveria, por isso, incluir diferentes fases do processo criminal — tanto pré-acusação, permitindo evitar a judicialização de conflitos de pequena escala, como pós-acusação, favorecendo a reparação do dano e a reintegração social. Do mesmo modo, seria pertinente alargar o âmbito da mediação a contextos familiares, escolares, laborais e comunitários, criando uma cultura de resolução pacífica de conflitos sustentada na responsabilidade individual e no diálogo social.
Para garantir a qualidade e a credibilidade do sistema, seria essencial instituir um modelo rigoroso de recrutamento, formação e avaliação de mediadores comunitários, de preferência voluntários, mas com formação certificada e acompanhamento permanente. A diversidade geográfica e sociocultural dos mediadores reforçaria o caráter local e participativo da justiça, tornando-a mais próxima e sensível às realidades de cada comunidade.
Por fim, a diversificação das entidades com capacidade de encaminhar casos para mediação — incluindo escolas, autarquias, forças de segurança, serviços sociais e organizações cívicas — garantiria um acesso mais amplo e equitativo. Em vez de depender exclusivamente do Ministério Público, o sistema passaria a ser colaborativo e interinstitucional, promovendo uma justiça mais aberta, preventiva e integrada.
Em suma, a adaptação do modelo norueguês ao contexto português permitiria reconciliar a justiça com os cidadãos, substituindo uma lógica burocrática e punitiva por uma justiça liberal, participativa e restaurativa, mais eficaz na resolução de conflitos e mais alinhada com os valores de autonomia, responsabilidade e proximidade social.
O essencial
O modelo norueguês de mediação penal e comunitária representa uma abordagem liberal e inovadora para a justiça, que alia eficiência, proximidade social e respeito pela autonomia das partes. Ao promover soluções restaurativas e reduzir a sobrecarga dos tribunais, esta política contribui para uma justiça mais humana, ágil e confiável.
Para Portugal, adaptar esta experiência poderia significar uma transformação profunda no funcionamento do sistema judicial, com ganhos em rapidez, qualidade e confiança pública, aproximando a justiça dos cidadãos e fortalecendo o Estado de Direito de uma forma moderna e liberal.
Maria Palmeiro Ribeiro é estudante de Política e Relações Internacionais na University College London (UCL) e realizou este trabalho no âmbito de um estágio no Instituto +Liberdade.
Juliano Ventura é economista e analista do Instituto +Liberdade e do projeto +Factos desde 2022. É co-autor de dois livros da Coleção +Liberdade e de vários estudos.
Referências
[1] About The National Mediation Service (NMS) / Konfliktrådene. (link).
[2] PAUS, KAREN KRISTIN. 2018. “The National Mediation Service? A Topdown Grassroots Movement?” Federal Sentencing Reporter 31 (1): 37–47. (link).
[3] The National Mediation Service (NMS) / Konfliktrådene. (link).
[4] "Restorative justice and victim-offender mediation in Norway", Anna Nylund. (link).
[5] “The Mediator´S Handbook Basic Principles and Practice Advice for Facilitators of Restorative Justice in the Norwegian National Mediation Service.” 2021. (link).
[6] PAUS, KAREN KRISTIN. 2018. “The National Mediation Service? A Topdown Grassroots Movement?” Federal Sentencing Reporter 31 (1): 37–47. (link).
[7] “Government at a Glance 2025: Trust, Accessibility, Responsiveness, and Quality of Justice Services.” 2025. OECD. 2025. (link).
[8] “Government at a Glance 2025: Trust, Accessibility, Responsiveness, and Quality of Justice Services.” 2025b. OECD. 2025. (link).
[9] WJP Rule of Law Index 2024. 2024. World Justice Project. (link).
[10] "European judicial systems CEPEJ Evaluation Report". 2024. (link).
[11] “Como Funcionam Os Julgados de Paz? | Justiça.gov.pt.” n.d. DGPJ. (link).
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