2025-04-21
Por Tiago Rosa Gaspar
No seu novo livro, "Decifrar a Corrupção", publicado este ano pela editora Dom Quixote, o investigador português Tiago Rosa Gaspar, em colaboração com um conjunto de distintos especialistas, apresenta um enquadramento conceptual para a compreensão do fenómeno da corrupção, analisando o seu impacto na sociedade, identificando os desafios e oportunidades na sua prevenção e combate, e destacando o papel, tantas vezes subestimado, que qualquer um de nós pode e deve desempenhar nesta luta.
O Instituto Mais Liberdade associa-se também a essa luta, divulgando mais um capítulo desta obra, subordinado ao papel dos cidadãos, da sociedade civil e dos média no combate à corrupção. Agradecemos ao autor e à editora Dom Quixote a sua gentil permissão para esta publicação.
O conceito de «sociedade civil» expandiu-se significativamente ao longo das últimas décadas, refletindo a diversidade de atores que a compõem. Tradicionalmente, referia-se a um conjunto de organizações, movimentos sociais e associações que não se enquadram nem no setor público nem no empresarial. Hoje, novas formas de organização, tanto digitais quanto presenciais, tornaram essas fronteiras mais flexíveis. Na atualidade, no âmbito dos debates sobre governação, anticorrupção e participação política, a sociedade civil engloba cada vez mais cidadãos que agem individualmente, Organizações da Sociedade Civil (OSC) de cariz formal e informal, meios de comunicação tradicionais e digitais, bem como várias entidades académicas e grupos não institucionais que se organizam em torno de interesses e valores comuns.
Neste contexto, o cidadão desempenha um papel fulcral. A sua condição de membro de um Estado, associada a um conjunto de direitos e deveres jurídicos e sociais, converte-o num ator político capaz de intervir de modo ativo nos assuntos coletivos. A própria cidadania não é apenas um estatuto jurídico de pertença a uma determinada comunidade política. Ela implica igualmente uma dimensão de participação cívica, permitindo aos indivíduos fiscalizarem as práticas governamentais, denunciarem abusos de poder ou atos de corrupção e, deste modo, contribuírem para a construção de uma cultura de integridade.[1] Por vezes, esta participação ocorre a título pessoal – por exemplo, mediante denúncias anónimas ou pelo simples facto de se recusar a pagar subornos. Noutras ocasiões, verifica-se de modo mais estruturado, por meio de organizações da sociedade civil ou pela ação mediática de jornalistas de investigação.
O cidadão e a luta contra a corrupção
A presença de cidadãos ativos e empenhados é essencial para a prevenção e o combate à corrupção. Quando estes exercem uma vigilância permanente sobre os titulares de cargos públicos, tornam mais difícil o florescimento de redes clientelares, pagamentos de vantagens indevidas e outros atos ilícitos. Com efeito, a luta eficaz contra práticas corruptivas depende, em larga medida, da capacidade que os cidadãos têm para responsabilizar os agentes políticos e denunciar os casos de suspeita de corrupção. Este mecanismo de responsabilização social – também designado «responsabilização vertical» – assenta na possibilidade de os cidadãos responsabilizarem os seus governantes, utilizando, para tal, diferentes canais institucionais ou informais (por exemplo, o voto, a participação em audiências públicas, a ação coletiva ou os fóruns digitais).
Além da denúncia e da pressão política, espera-se que os cidadãos participem na sensibilização de outros membros da sociedade quanto às consequências sociais, económicas e políticas da corrupção. Nos contextos em que a corrupção se revela endémica, a expectativa de que o suborno ou a troca de favores seja necessária para aceder a serviços públicos gera um círculo vicioso de abuso de poder e desconfiança generalizada. Os cidadãos que repudiam tais práticas e que se recusam a participar em esquemas corruptos contribuem para quebrar esta cadeia de cumplicidades, ainda que, nalguns casos, enfrentem riscos pessoais – pois poderão sofrer retaliações ou marginalização.
Contudo, a intervenção dos cidadãos está sujeita a múltiplos desafios. Em muitos países, subsistem barreiras ao acesso à informação, falta de proteção jurídica para denunciantes ou mesmo perseguição política e censura a quem ouse denunciar práticas ilícitas. Noutras situações, o contexto socioeconómico desfavorecido e a falta de recursos financeiros impedem a formação de uma consciência cívica mais ativa. Por estas razões, organismos internacionais, como a ONU, defendem a necessidade de remover barreiras institucionais e legais que dificultem a participação do cidadão na vida pública. O artigo 13.° da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (UNCAC) é exemplo disso, ao exigir que os Estados adotem medidas que facilitem e encorajem a intervenção da sociedade civil na luta contra a corrupção, assegurando simultaneamente a liberdade de expressão, a independência dos média e a criação de condições propícias para o registo e funcionamento de organizações cívicas.
O papel e os desafios das organizações da sociedade civil
As OSC têm assumido uma relevância crescente na promoção da transparência e na exigência de responsabilização dos atores públicos e privados. Estas caracterizam-se por serem entidades sem fins lucrativos, autónomas em relação ao Estado, embora muitas vezes desenvolvam ações complementares às iniciativas governamentais, especialmente onde o poder público não consegue chegar ou falha em satisfazer necessidades básicas da comunidade. Entre as OSC podem encontrar-se associações religiosas, fundações, sindicatos, grupos profissionais, movimentos comunitários, ONG de âmbito local ou internacional, entre outras.
No que respeita ao combate à corrupção, as OSC desempenham funções centrais, tais como:
Apesar do seu valor inegável, as OSC enfrentam riscos consideráveis. Em muitos países, os seus membros sofrem intimidação, perseguição judicial ou ameaças violentas, em particular quando denunciam casos de corrupção envolvendo altos funcionários. Mais, existem situações em que as OSC se podem tornar elas próprias alvo de práticas corruptivas – seja por capturas do Estado (quando os governantes controlam formalmente algumas OSC para legitimar interesses particulares) seja por desvios de fundos de cooperação internacional atribuídos a projetos-fantasma. Noutros casos, a dependência excessiva de doações estrangeiras pode desvirtuar a agenda local e levar à adoção de projetos padronizados, pouco adaptados às especificidades do contexto social.
Por este motivo, para que as OSC consigam desempenhar um papel consistente, urge reforçar a proteção jurídica dos ativistas e garantir a sua independência financeira e política. Além disso, torna-se indispensável uma constante prestação de contas e uma cultura de transparência interna que evite eventuais abusos ou manipulações.
Os média como vigilantes e promotores da transparência
Um dos pilares fundamentais da democracia e do combate à corrupção é a existência de uma comunicação social livre, plural e independente. Tal inclui não apenas os meios tradicionais – imprensa escrita, rádio, televisão –, mas também as plataformas digitais e redes sociais que dão voz direta aos cidadãos. De acordo com diversos estudos empíricos, há uma correlação clara entre liberdade de imprensa e menores índices de corrupção.[2] Quando os jornalistas têm acesso a informação relevante e podem investigar sem constrangimentos, conseguem denunciar publicamente casos de desvio de verbas, tráfico de influências e outros abusos de poder, estimulando as autoridades competentes a agir.
Nesse sentido, o jornalismo de investigação desempenha um papel vital: ao expor processos obscuros e lançar luz sobre a opacidade dos negócios públicos e privados, ativa a pressão social e reforça os mecanismos de responsabilização. Exemplos como os «Panama Papers», investigação levada a cabo por um consórcio internacional de jornalistas, ilustram a capacidade dos média em articular esforços globais para expor esquemas financeiros ilícitos que podem envolver altas figuras políticas e económicas.
A capacidade dos média para desempenhar esta função depende, contudo, de duas condições principais: 1) a existência de garantias de liberdade de expressão e de proteção legal dos jornalistas, incluindo proteção das suas fontes, e 2) a inexistência de interferências excessivas por parte do Estado ou de atores económicos poderosos na linha editorial dos órgãos de comunicação. Nalguns contextos, os repórteres sofrem intimidações, censura e, em casos extremos, chegam mesmo a ser assassinados devido às suas investigações. Em tais circunstâncias, torna-se impossível manter uma imprensa livre e independente.
As plataformas digitais e as redes sociais representam, por seu turno, um fenómeno renovador. Se, por um lado, se tornam em espaços acessíveis, permitindo uma participação cidadã mais alargada e descentralizada, por outro, abrem porta à difusão rápida de desinformação. Esta circulação de conteúdos falaciosos pode destruir reputações, criando acusações infundadas sobre corrupção, ou desacreditar jornalistas sérios que investigam casos reais. O combate a estes abusos requer maior literacia digital, mecanismos de verificação de factos e um compromisso ético por parte dos fornecedores de serviços online.
O equilíbrio entre participação cívica e instrumentalização política
É inegável que o envolvimento ativo dos cidadãos, das OSC e dos média fortalece os alicerces democráticos e constitui uma linha de defesa crucial contra a corrupção. No entanto, importa ressalvar que esta mobilização pode igualmente ser instrumentalizada por líderes populistas ou atores políticos que se apropriam do discurso anticorrupção para atingir fins particulares, usando-o como arma de arremesso contra adversários, sem instaurar reformas estruturais que efetivamente combatam o fenómeno da corrupção.
Assim, a participação da sociedade civil requer uma análise contínua do contexto político e social, de modo a evitar a cooptação de causas legítimas em estratégias de poder. A atuação ética e transparente tanto das OSC quanto dos meios de comunicação social reforça-lhes a credibilidade e a legitimidade, reduzindo a possibilidade de serem manipulados por interesses partidários.
Uma ideia de sociedade civil
A articulação entre cidadãos, organizações da sociedade civil e os média mostra-se essencial para se alcançar uma cultura de integridade e de tolerância zero perante a corrupção. Se, por um lado, os cidadãos são os primeiros interessados num Estado que sirva o bem comum e não interesses obscuros, por outro, as OSC oferecem capacidade de organização, conhecimento e influência política, enquanto os média, pelo seu poder de difusão, tornam visíveis abusos e pressionam para que haja responsabilização.
Todavia, a mera existência destes atores não garante por si só o sucesso no combate à corrupção. É necessária uma conjugação de fatores, desde quadros jurídicos robustos – que assegurem o direito de acesso à informação, a proteção de denunciantes e a liberdade de expressão – até à disponibilidade de recursos e apoios institucionais que possibilitem a participação efetiva da sociedade civil. Em simultâneo, a consciencialização cívica e a literacia mediática revelam-se determinantes para que cada cidadão reconheça o seu papel de vigilante e agente de mudança.
Em síntese, quando cidadãos informados exercem uma participação ativa, quando as organizações da sociedade civil estabelecem pontes entre a comunidade e o Estado, e quando os média se pautam pela independência e pela investigação séria, criam-se as condições para a consolidação de uma governação mais transparente e responsável. Esse é, em última instância, o desiderato maior das sociedades democráticas que aspiram ao desenvolvimento justo e sustentável, livre de práticas corruptivas que corroem a confiança e minam o bem-estar coletivo. Desta, mas também de qualquer outra perspetiva, a luta contra a corrupção nunca será atribuição exclusiva dos poderes, mas sim um compromisso partilhado por toda a sociedade.
O livro "Decifrar a Corrupção" está disponível nas livrarias e na LeYa Online.
Tiago Rosa Gaspar é mestre em Desenvolvimento Internacional e Políticas Públicas pela Nova School of Business and Economics. Investigador na área da prevenção e combate à corrupção, passou pela embaixada de Portugal em Washington e pelo gabinete do subsecretário-geral das Nações Unidas para os Assuntos Económicos e Sociais. Foi diretor do Prémio Tágides, o qual distingue os portugueses que se destacam no combate à corrupção e que conta com o alto patrocínio do presidente da República. É membro fundador da All4Integrity, uma associação apartidária da sociedade civil dedicada à prevenção e combate à corrupção, e escreve regularmente na imprensa nacional e internacional.
Notas:
[1] Uma cultura de integridade refere-se a um conjunto de valores, princípios e práticas que promovem a ética, a transparência e a responsabilidade em todos os aspetos de governação e da sociedade. Essa cultura busca criar um ambiente em que normas de comportamento ético sejam amplamente aceites, incentivadas e praticadas por indivíduos, organizações e governos.
[2] A. Brunetti, e B. Weder, «A free press is bad news for corruption», Journal of Public Economics, 87 (2003), pp. 1801-1824.
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