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2025-05-05

Por Juliano Ventura

Vamos falar (a sério) sobre criminalidade? Parte I: Números e factos

O tema da criminalidade tem vindo a ocupar cada vez mais espaço no debate público em Portugal. Mas esse debate é, muitas vezes, dominado por perceções, emoções e agendas políticas, raramente sustentado por dados completos ou análises rigorosas. Cada lado escolhe os números que melhor servem a sua narrativa, alimentando uma nuvem de fumo em torno de uma realidade complexa – e longe de consensos fáceis.

Este artigo propõe-se a ir além dos soundbites e das caixas de comentários das redes sociais. Na primeira parte deste artigo, apresentamos os dados mais recentes sobre criminalidade em Portugal, explorando tendências ao longo do tempo, diferenças por tipo de crime e localização geográfica, e comparando a realidade portuguesa com a de outros países. A segunda parte do artigo será publicada na próxima quinta-feira, 8 de maio.

1. Introdução

A criminalidade é um tema que ocupa um lugar central nas preocupações das sociedades contemporâneas. Embora Portugal seja frequentemente classificado entre os países mais seguros do mundo, a análise detalhada dos dados de criminalidade revela um panorama mais complexo. As variações nos números da criminalidade ao longo do tempo, as diferentes tipologias de crime, as diferenças geográficas e as possíveis discrepâncias entre os números reais e as perceções individuais reforçam a necessidade de uma abordagem equilibrada e informada sobre este tema.

Este relatório tem precisamente como objetivo explorar as tendências da criminalidade em Portugal, as diferenças entre tipos de crime para diferentes horizontes temporais, a comparação do nosso país em termos internacionais e a evolução do sentimento de insegurança da população. Adicionalmente, procura examinar os fatores que contribuem para o aumento da perceção de insegurança e a forma como a perceção pública é moldada por variáveis psicológicas, culturais, sociais e mediáticas, frequentemente desconectadas dos dados objetivos. Apesar dessa possível desconexão, apresentamos também as razões pelas quais não devemos ignorar as sensações de insegurança.

Este documento procura contribuir para uma compreensão mais profunda da criminalidade em Portugal, promovendo uma discussão fundamentada sobre estratégias de prevenção e resposta.

 

2. Portugal é um dos países mais seguros do mundo?

Todos os anos, assim que é publicado o Global Peace Index, um relatório produzido pela ONG australiana Institute for Economics & Peace (IEP), somos inundados com notícias a referir que Portugal é um dos países mais seguros do mundo. Também vários dirigentes políticos se congratulam pelo facto de Portugal estar habitualmente no top 10 deste índice.

Mas será que o Global Peace Index é mesmo uma medida de segurança? Não é bem assim. O índice tem uma subcomponente que se foca no tema da segurança, analisando indicadores como o número de homicidios por mil habitantes, o número de presos por mil habitantes, o número de efetivos policiais, indicadores de criminalidade percebida, indicadores relacionados com o terrorismo, métricas sobre instabilidade política, entre outros, mas o índice geral engloba mais duas subcomponnetes relacionadas com conflitos armados e militarização. Ou seja, o índice global é sobretudo uma avaliação ao nível de pacifismo do país, tal como o próprio nome do índice indica, do que propriamente uma medida de segurança.

No subíndice “Segurança”, Portugal também está bem classificado, mas várias posições abaixo do que se verifica no índice geral. Em 2024, éramos o 19.º classificados nesse subíndice, ao passo que no índice geral ocupávamos a 7.ª posição. A conclusão que podemos retirar é a de que Portugal é, de facto, um país muito seguro, mas, ao contrário do que costuma ser veiculado, não estamos no topo dos países mais seguros a nível mundial.

3. A criminalidade está a aumentar?

As análises à evolução da criminalidade total em Portugal dependem sempre do horizonte temporal da análise. Essa é uma das razões que torna fácil instrumentalizar os dados para fins partidários e narrativas políticas. Quem quer transmitir a ideia de que a criminalidade se tem mantido estável ou em decréscimo, compara os números atuais com os do final da primeira década deste século, uma vez que o número total de crimes baixou de 432 mil em 2008 para 355 mil em 2024 (-18%). Quem quer transmitir a ideia de que a criminalidade está a aumentar, compara os números atuais com os da última década ou os números de há três décadas atrás. Em 1993, o número total de crimes fixou-se em 307 mil (-17% face a 2024), sendo que em 2024 foi o segundo ano com o maior número de crimes desde 2015.

Uma análise séria deve transmitir as várias tendências, de acordo com os diferentes horizontes temporais. O número total de crimes no nosso país reduziu-se ao longo da segunda década deste século e o facto dessa década ter terminado com uma pandemia, que baixou naturalmente a criminalidade em 2020 e 2021, acentuou essa tendência. Os números atuais não devem ser comparados com os números desses anos, mas sim com os dos anos anteriores. Analisando dessa forma, o crescimento da criminalidade não é tão significativo e alarmante, embora não seja boa prática ignorar o facto de termos registado em 2023 o maior número de crimes desde 2013. Apesar de ainda ser cedo para afirmar, podemos estar no início de uma tendência de aumento da criminalidade.

Uma análise séria também não se deve cingir a analisar a criminalidade como um todo, deve desagregar os dados por tipologia dos crimes. Nesse sentido, uma primeira desagregação mostra-nos que os crimes contra as pessoas registaram uma evolução parecida com a evolução global da criminalidade em Portugal. Houve um aumento desse tipo de crimes até 2008, sendo que a partir daí houve uma redução. No entanto, em 2024 registou-se o maior número de crimes desta tipologia (92 mil) desde 2010. A evolução dos crimes contra o património também não difere muito da evolução geral.

Refinando mais os dados para os crimes contra as pessoas, já percebemos algumas evoluções muito diferentes da evolução da criminalidade geral. Os crimes contra a vida, onde se incluem por exemplo os homicídios, sofreram uma enorme queda nos últimos anos. Em 2009 foram 1.688, em 2018 passou para 1.401 e em 2024 foram 896, uma quebra para quase metade em pouco mais de dez anos. Por outro lado, os crimes contra a liberdade pessoal, incluindo raptos, sequestros, ameaças e coações ou tráfico de pessoas, estão quase ao mesmo nível do que se verificava em 2009 e os crimes contra a liberdade/autodeterminação sexual, incluíndo violações e abuso sexual de crianças, cresceram 41% face a 2009.

Refinamos ainda mais os dados e analisamos alguns crimes individualmente. Relativamente aos crimes relacionados com furtos e roubos, a evolução desde 2008 tem sido muito positiva. Em 2024 registaram-se 102 mil crimes dessa tipologia, cerca de metade do que se verificou em 2008 (202 mil).

No caso dos crimes de ofensa à integridade física simples, a evolução foi também positiva. O número anual deste tipo de crime tem vindo a baixar desde 2003 (43,4 mil) e em 2024 (24,4 mil) mantém-se em valores próximos dos registados antes da pandemia. Entre 2003 e 2024 a variação foi de -44%.

Os crimes de ameaça e coação registaram um grande crescimento entre 1993 e 2007, de 6,5 mil para 19,7 mil por ano, mas a partir daí e até 2016 foram decrescendo (14,2 mil em 2016). Os últimos anos mostram novamente um crescimento deste tipo de crime, subindo para 17,0 mil em 2024 (+20%).

No caso dos crimes de ofensa à integridade física grave, houve uma enorme redução entre 1993 e 2016 (de 1.261 para 469).No entanto, desde então a tendência tem sido de rápido crescimento, apesar de em 2024 até ter havido uma ligeira redução, com o registo de 714 crimes desta tipologia (+52% face a 2016).

Os crimes de violação registaram uma evolução mais inconstante ao longo das últimas décadas. Houve uma redução do número de violações por volta da viragem de século e o número de casos anuais variou entre os 300 e os 450 até 2021 (média anual de 370 violações entre 2000 e 2021). Nos últimos três anos, houve um rápido crescimento, tendo-se registado 519 violações em 2022, 494 em 2023 e 543 em 2024. A média destes três anos fica 40% acima da média registada entre 2000 e 2021. Este é um crime para o qual é preciso estar especialmente atento nos próximos anos.  

No caso dos homicídios voluntários consumados, a evolução é bastante positiva. Em 1993, registaram-se 427 homicídios, tendo havido a partir daí e até 2016, uma enorme redução deste tipo de crimes (76). Desde então, o número de homicídios tem-se mantido estável em valores abaixo dos 100 por ano (89 em 2024).

Se agregarmos os crimes classificados como violentos ou graves, de acordo com a metodologia que é aplicada pelo Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) e que inclui crimes como os homicídios voluntários consumados, ofensa à integridade física grave, raptos, sequestros, violações, vários tipos de roubos, etc., a evolução é positiva. Em 2010 registaram-se 24,5 mil crimes com esta classificação, ao passo que em 2024 foram 14,4 mil (-41%). No entanto, é importante alertar que estes números são muito influenciados pelos roubos, que em número absoluto são muito mais representativos que os outros tipos de crime e que, por esse motivo, influenciam bastante a análise. Como analisámos anteriormente, há vários tipos de crime grave que têm evoluído de forma menos positiva nos últimos anos.

4. Há áreas geográficas onde a criminalidade está a aumentar mais?

Se analisarmos a evolução da criminalidade geral distrito a distrito, há três que se destacam pela negativa, seja a comparação do número de crimes em 2024 se faça com a média de 2005-09 (pico da criminalidade geral em Portugal) ou com a média de 2015-19 (período mais recente, não incluindo os anos da pandemia que não servem de referência). São eles: Beja, Castelo Branco e Portalegre. Em 2024, em Beja registou-se um número de crimes mais de 30% acima do que na média dos períodos 2005-09 e 2015-19 e nos outros dois distritos a percentagem é superior a 11% na comparação com o período 2005-09 e superior a 19% na comparação com o período 2015-19. Em Faro, a criminalidade em 2024 ficou abaixo da média no período 2005-09, mas 21% acima da média no período 2015-19.

Por outro lado, onde o desempenho é mais positivo é em Vila Real, Bragança, Lisboa, Coimbra, Porto, Braga e Viana do Castelo. Nestes distritos, a criminalidade geral está abaixo do registado em 2005-09 e em 2015-19.

É comum ouvir-se que a criminalidade está a aumentar sobretudo em Lisboa e Porto e nos seus arredores. Será que é mesmo assim? Esta primeira análise, aos distritos, mostra-nos que não. No distrito de Lisboa a criminalidade geral está 24% abaixo da média do período 2005-09 e 7% abaixo da média do período 2015-19, e no Porto há menos 15% de crimes face a 2005-09 e menos 6% face a 2015-19.

E se analisarmos as Áreas Metropolitanas? Analisando a criminalidade geral nas Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto obtemos conclusões semelhantes: o desempenho é bastante melhor do que a média nacional. No entanto, se analisarmos dois dos crimes mais violentos, os homicídios e as violações, a realidade é diferente. No caso dos homicídios, o número total deste tipo de crime na Área Metropolitana de Lisboa está 22% abaixo do registado entre 2005 e 2009, mas no país como um todo esta variação foi de -44%. Desde o período 2015-19, o número de homicídios cresceu 26% na Área Metropolitana de Lisboa, enquanto que no país baixou 3%. Ou seja, o número de homicídios não tem crescido, nos anos mais recentes, no país, mas na Área Metropolitana de Lisboa o aumento é muito relevante. Por sua vez, na Área Metropolitana do Porto, o desempenho tem sido melhor do que a média nacional.

Relativamente às violações, como já analisamos anteriormente, a evolução a curto e médio prazo no país é negativa, mas o comportamento na Área Metropolitana de Lisboa consegue ser pior, ao contrário da Área Metropolitana do Porto, onde o número de violações aumentou significativamente menos. Na região da capital registaram-se, em 2024, mais 61% deste tipo de crimes face a 2005-09, acima do crescimento registado a nível nacional (+60%). Na região do Porto, o aumento foi de +18%. Desde 2015-19, as violações cresceram +44% na Área Metropolitana de Lisboa, também acima da média nacional (+38%) e da Área Metropolitana do Porto (+21%).

E nos municípios de Lisboa e Porto, que estão no top 3 dos municípios portugueses com mais crimes per capita (mais de 50 crimes anuais por cada mil habitantes)? A evolução da criminalidade geral nos municípios de Lisboa e Porto também não difere muito do que se verificou nos respetivos distritos e Áreas Metropolitanas: o desempenho é bastante melhor do que a média nacional. No entanto, se nos homicídios a realidade também não é muito diferente – embora o número de homicídios em Lisboa e no Porto tenha caído 33% face a 2005-09, ao passo que a média nacional foi de -44% –, nas violações já não podemos dizer o mesmo. Em Lisboa e no Porto registaram-se, em 2024, mais 117% deste tipo de crimes face a 2005-09, muito acima do crescimento registado a nível nacional (+60%). Desde 2015-19, cresceram 50%, também muito acima da média nacional (+38%).

Podemos concluir que a criminalidade geral tem tido uma evolução mais positiva nas regiões de Lisboa e do Porto do que no país como um todo, mas há casos particulares, sobretudo entre os crimes mais violentos, em que a evolução é bem mais preocupante e merece atenção.

5. Como comparam os índices de criminalidade com outros países?

Na comparação com outros países europeus (países da União Europeia e a Suíça, Noruega e Islândia), Portugal está bem classificado em alguns tipos de criminalidade, noutros nem tanto. Em 2022, apresentava o 23.º número de homicídios por 100 mil habitantes mais reduzido entre os 30 países analisados, sendo o 24.º (em 29 países) no que toca aos crimes de ofensa à integridade física grave. Relativamente aos crimes de violência sexual, Portugal encontra-se a meio da tabela (15.º em 30 países). O nosso país compara pior nos crimes de roubo, onde se posiciona no top 5 dos países com maior número de crimes por 100 mil habitantes.

Uma análise à variação do número de crimes em 2022, face à média do período 2008-19, permite-nos perceber se há uma tendência de aumento da criminalidade na Europa, se Portugal segue a tendência europeia e as possíveis diferenças entre países.

Tendo em conta os crimes analisados, não parece haver uma clara tendência de aumento da criminalidade na Europa, uma vez que, embora haja países com um elevado crescimento do número de crimes em determinadas tipologias, a maioria dos países registou uma diminuição da criminalidade em três dos quatro tipos de crime analisados. A exceção verifica-se nos crimes de violência sexual, onde se verifica um crescimento em 24 dos 30 países analisados.

Portugal segue a tendência europeia em três das quatro tipologias de crime: aumento da violência sexual, diminuição dos roubos e diminuição dos homicídios. A exceção regista-se nas ofensas à integridade física grave, onde Portugal é um dos nove países (em 29) a registar um aumento desse tipo de criminalidade.

Os países do Norte e Centro da Europa, especialmente os escandinavos, estão a sofrer um maior aumento da criminalidade, em comparação com os restantes países, embora não seja uma tendência que se observe em todas as tipologias de crime para o mesmo país.

Continua... na segunda parte do artigo.

Este artigo terá uma segunda parte, que incidirá sobre os fatores que contribuem para o aumento da criminalidade, se os números da criminalidade se refletem na perceção de insegurança e sobre o porquê da perceção de insegurança ser relevante, mesmo que não seja acompanhada por um aumento da criminalidade.

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