Excertos e Ensaios, Sociologia, Empreendedorismo, Concorrência e Regulação, Economia, Autores Portugueses
Aqui há anos, antes da Grande Guerra, correu os meios ingleses, como exemplo demonstrativo da insinuação comercial alemã, a notícia do caso curioso das “taças para ovos” (eggcups) que se vendiam na Índia.
O inglês costuma comer os “ovos”, a que nós chamamos “quentes”, não em copos e partidos, mas em pequenas taças de louça, do feitio de meio ovo, e em que o ovo, portanto, entra até metade; partem a extremidade livre do ovo, e comem-no assim, com uma colher de chá, depois de lhe ter deitado sal e pimenta. Na Índia, colónia britânica, assim se comiam, e naturalmente ainda se comem, os ovos “quentes". Como é de supor, eram casas inglesas as que, por tradição aparentemente inquebrável, exportavam para a Índia as taças para este fim.
Sucedeu, porém, que, alguns anos antes da Guerra, as firmas inglesas exportadoras deste artigo notaram que a procura dele na Índia decrescera quase até zero. Estranharam o facto, buscaram saber a causa, e não tardou que descobrissem que estavam sendo batidas por casas exportadoras alemãs, que vendiam idêntico artigo ao mesmo preço.
Se as casas alemãs houvessem entrado no mercado índio com o artigo a preços mais baixos, sem dúvida que os agentes dos exportadores ingleses teriam advertido estes sem demora. Mas, como o preço era igual e a qualidade igual também, não era necessário o aviso; nem houve receio senão quando se verificou que havia razão para mais que receio — isto é, quando se verificou que, nestas condições de duvidosa vantagem para um novo concorrente, o artigo alemão vencera por completo.
Feita a averiguação ansiosa da causa deste mistério, não tardou que se descobrisse. Os ovos das galinhas indianas eram — e naturalmente ainda são — ligeiramente maiores que os das galinhas da Europa, ou, pelo menos, das da Grã-Bretanha. Os fabricantes ingleses exportavam as taças de tipo único que produziam para o consumo doméstico. Essas taças, evidentemente, serviam de um modo imperfeito aos ovos das galinhas da Índia. Os Alemães notaram isto, e fizeram taças ligeiramente maiores, próprias para receber esses ovos. Não tinham que alterar qualidade (podiam até baixá-la), nem que diminuir o preço; tinham certa a vitória por o que em linguagem científica se chama a adaptação ao meio. Tinham resolvido, na Índia e para si, o problema de comer o ovo de Colombo.
Esta história, em aparência tão simples, encerra um ensinamento que todo o comerciante, que o não seja simplesmente por brincar às vendas, devia tomar a peito, compreender na sua essência. Um comerciante, qualquer que seja, não é mais que um servidor do público, ou de um público; e recebe uma paga, a que chama o seu “lucro”, pela prestação desse serviço. Ora toda a gente que serve deve, parece-nos, buscar agradar a quem serve. Para isso é preciso estudar a quem se serve — mas estudá-lo sem preconceitos nem antecipações; partindo, não do princípio de que os outros pensam como nós, ou devem pensar como nós — porque em geral não pensam como nós —, mas do princípio de que, se queremos servir os outros (para lucrar com isso ou não), nós é que devemos pensar como eles: o que temos que ver é como é que eles efectivamente pensam, e não como é que nos seria agradável ou conveniente que eles pensassem.
Nada revela mais uma incapacidade fundamental para o exercício do comércio que o hábito de concluir o que os outros querem sem estudar os outros, fechando-nos no gabinete da nossa própria cabeça, e esquecendo que os olhos e os ouvidos — os sentidos, enfim — é que fornecem os elementos que o nosso cérebro há-de elaborar, para com essa elaboração formar a nossa experiência.
O estudo do público, isto é, dos mercados, é de três ordens — económico, psicológico e propriamente social. Isto é, para entrar num mercado, seja doméstico ou estranho, é preciso: 1) saber as condições de aceitação económica do artigo, e aquelas em que trabalha, e em que oferece, a concorrência; 2) conhecer a índole dos compradores, para, à parte questões de preço, saber qual a melhor forma de apresentar, de distribuir e de reclamar o artigo; 3) averiguar quais as circunstâncias especiais, se as houver, que, de ordem profunda e social ou política, ou superficial e de moda ou de momento, obrigam a determinadas correcções no resultado dos dois estudos anteriores.
É espantoso — não: é pavoroso — o número de comerciantes que cotam para um mercado, estrangeiro e até nacional, espontaneamente ou solicitados, sem averiguar se não estarão cotando um preço que seja um disparate de tal ordem que os desqualifique intelectualmente — e a desqualificação intelectual é por vezes pior que a moral — no espírito dos que recebem a oferta.
Quando um comerciante, que use a cabeça para fins mais interiores que a colocação do chapéu, verifica que lhe é impossível cotar convenientemente para certo mercado, deve responder a um pedido de cotação que, dadas estas ou aquelas circunstâncias, não pode cotar nesse momento; ou que oferece a um preço mais alto que o do mercado (mas mostre que conhece o preço do mercado), porém que o artigo, se é mais caro, é porque é melhor; ou que, por não ter nesse momento disponível senão um tipo desse artigo, não pode cotar senão em determinadas condições.
A maioria dos comerciantes — sim, infelizmente, a maioria! — não faz isto, nem nada que disto se aproxime. Cota um preço, porque esse preço lhe dará certo lucro e não olha a mais. Não lhe passa pela cabeça, sequer, que é preciso, às vezes, não cotar com lucro, sendo essa ausência de lucro uma autêntica despesa de publicidade. E porque não lhe passa isto pela cabeça? Porque vive só no presente e tem casa comercial sem amanhã. Porque não pensa que, mesmo quando se não possa cotar convenientemente, se deve atrair convenientemente; e que a demonstração de inteligência e de estudo das conveniências e necessidades alheias é uma demonstração da posição sobre os ombros de uma cabeça que contém miolos.
O estudo psicológico do mercado é também importante, mas, ao passo que o seu estudo económico é essencial e fundamental em qualquer género de comércio, é o comércio de retalho e as formas do outro comércio (de origem directamente industrial) que com ele tem semelhança, que mais têm que atender a este elemento.
A maneira de fabricar, de apresentar, de distribuir e de reclamar um artigo varia conforme a índole geral dos indivíduos que compõem o mercado onde se pretende vendê-lo. Num meio de gente educada as condições são diferentes, para todos estes casos, do que num meio de analfabetos. Um meio provinciano — educado ou não — tem uma psicologia distinta da de um meio de cidade.
O modo de encarar a vida, ou, pelo menos, certos aspectos da vida, varia de país para país, de região para região. A humanidade, sem dúvida, é a mesma em toda a parte. Sucede, porém, que em toda a parte é diferente. É a mesma nas coisas essenciais, nos sentimentos fundamentais; mas, as mais das vezes, não são as coisas realmente essenciais que ela tem por essenciais, nem os sentimentos fundamentais que a preocupam como fundamentais. Em todos os tempos, em todas as terras, é o local, o superficial, o ocasional, o que mais tem preocupado a humanidade. Ora, é ao que mais preocupa a humanidade e constitui portanto as suas necessidades, que o comércio essencialmente se dirige. E é por isso que o comerciante, que deveras o seja, tem para consigo mesmo o dever de estudar psicologicamente, e um a um, os agrupamentos humanos a que destina os seus artigos.
O estudo propriamente social do meio é aparentado com o seu estudo psicológico, mas, ao mesmo tempo, distinto dele.
O estudo psicológico tem por objecto a mentalidade típica dos componentes de um determinado meio comerciável; o estudo propriamente social tem por objecto os hábitos puramente exteriores, as convenções, permanentes ou de acaso (e a estas últimas chama-se modas), e os caprichos incaracterísticos desses mesmos indivíduos. É claro que esses hábitos e essas convenções formam parte da índole dessa gente; mas é uma parte “externa”, que não pode ser adivinhada através de um estudo cuidadoso dos indivíduos, mas tem que ser conhecida, mais propriamente, através do estudo do meio em que eles vivem, considerado como destacado deles.
Suponhamos que temos que introduzir determinado artigo na Itália. Nem para todos os artigos se dará — mas sem dúvida haverá alguns para cuja colocação importe considerar (à parte as circunstâncias económicas, de que não estamos agora tratando) o italiano como italiano; o italiano como romano, veneziano, genovês, etc.; o italiano como governado pelo regime fascista; o italiano como crescentemente detestador da França; e assim indefinida, mas, ao mesmo tempo, muito definidamente.
Um industrial que inventasse e produzisse um tipo de whisky novo, bom e barato, teria um mercado certo nas Ilhas Britânicas; mas, se tivesse a lembrança de ornar as garrafas desse líquido de um rótulo com a bandeira daquele império, não deveria admirar-se de ver a maioria dos habitantes do Estado Livre da Irlanda impor-se o horroroso sacrifício de o não beber. O produto estava psicologicamente certo para esse meio, mas estava “socialmente” errado. Parece-nos que assim transmitimos claramente ao leitor a ideia da distinção entre o critério psicológico e o, por assim dizer, sociológico no estudo comercial dos mercados.
Em resumo: o comerciante é um servidor do público, tem que estudar esse público, e as diferenças de público para público se o artigo que vende ou explora não é limitado a um mercado só. O comerciante não pode ter opiniões como comerciante nem deve fazer comercialmente qualquer coisa que leve a crer que as tem. Um comerciante português que faça um rótulo encarnado e verde, ou azul e branco, comete um erro comercial: quem segue a política das cores do rótulo não lhe compra o produto por isso, e quem segue a política oposta deixa muitas vezes de o comprar. Por um lado não ganha, por outro perde.
Mais incisivamente ainda: o comerciante não tem personalidade, tem comércio; a sua personalidade deve estar subordinada, como comerciante, ao seu comércio; e o seu comércio está fatalmente subordinado ao seu mercado, isto é, ao público que o fará comércio e não brincadeira de crianças com escritório e escrita.
Originalmente publicado in Revista de Comércio e Contabilidade, nº 1. Lisboa: 25-1-1926.
Conferir em Arquivo Pessoa
Narração: Nuno Silva
Instituto +Liberdade
Em defesa da democracia-liberal.
info@maisliberdade.pt
+351 936 626 166
© Copyright 2021-2024 Instituto Mais Liberdade - Todos os direitos reservados