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A Evolução do Comércio

Fernando Pessoa

Excertos e Ensaios, História, Liberalismo e Capitalismo, Empreendedorismo, Concorrência e Regulação, Autores Portugueses

Português

Este estudo é propriamente nosso. Não lhe fomos buscar os elementos a nenhum tratado. Não tivemos mestre para escrevê-lo. O conhecimento atento da história, e a análise firme dos factos que ela fornece, foi quanto nos foi preciso para a sua elaboração. Como não plagiámos, nem imitámos, nem se quer aceitámos criticamente, mas pensámos por nossa cabeça, visto que ela existe, achamos conveniente começar este artigo por dizer que ele é nosso, e que em nenhum ensaio ou tratado estranho se encontra o estudo que ele encerra, nem, portanto, os ensinamentos que desse estudo se derivam. O seu a seu dono, mesmo quando sejamos nós o dono...

 

A actividade social chamada comércio, por mal vista que esteja hoje pelos teoristas de sociedades impossíveis, é contudo um dos dois característicos distintivos das sociedades chamadas civilizadas. O outro característico distintivo é o que se denomina cultura. Entre o comércio e a cultura houve sempre uma relação íntima, ainda não bem explicada, mas observada por muitos. É, com efeito, notável que as sociedades que mais proeminentemente se destacaram na criação de valores culturais são as que mais proeminentemente se destacaram no exercício assíduo do comércio. Comercial, eminentemente comercial, foi Atenas. Comercial, eminentemente comercial, foi Florença.

A relação entre os dois fenómenos é ao mesmo tempo de paralelismo e de causa-e-efeito. Toda a vida é essencialmente relação, e a vida social, portanto, é essencialmente relação entre mdivíduos, quando simples vida social; e entre povos, quando vida civilizacional. Ora, como os fenómenos da vida superior são de duas ordens — materiais e mentais —, devem ser materiais e mentais os fenómenos da vida superior civilizacional; e, como a vida é essencialmente relação, esses fenómenos devem ser de relação. Como o comércio é, por sua natureza, uma entrepenetração económica das sociedades, é no comércio que as relações materiais entre sociedades atingem o seu máximo; e como a cultura é uma entrepenetração artística e filosófica das sociedades, é na cultura que as relações mentais entre povos conseguem o seu auge. Segue que uma sociedade com um alto grau de desenvolvimento material e mental e, portanto, com um alto desenvolvimento da vida de relação, forçosamente será altamente comercial e altamente cultural, paralelamente.

Acresce, ainda, que o comércio é uma distribuição, centrífuga ou centrípeta, da produção material, ou indústria; e a cultura é uma distribuição, centrífuga ou centrípeta, da produção mental, ou arte. Os fenómenos são, pois, rigorosamente paralelos. E, assim como nos países de grande produção artística a curiosidade pela arte alheia se desenvolve, pois que a criação artística própria não pode exercer-se sem interesse pela arte, e portanto também pela arte dos outros, assim também num país de grande produção industrial a necessidade de produtos, alheios — que o próprio país não pode, ou não pode convenientemente, produzir — nasce do estímulo às necessidades internas que essa grande produção criou, depois de ter tido nelas origem.

Mas entre os dois fenómenos — comércio e cultura — há, também, uma relação de causa-e-efeito. A cultura, ao aperfeiçoar-se, tende para a universalidade, isto é, para não excluir da sua curiosidade elemento algum estranho. Quanto mais fácil for o contacto com elementos estranhos tanto mais essa curiosidade se animará, e a cultura permanecerá viva. Ora como o fenómeno material precede sempre o fenómeno mental, o meio mais seguro de se formarem contactos mentais é terem-se formado contactos materiais; e como a cultura exige necessariamente um contacto demorado e pacífico, o contacto material, que a estimule, terá que ser demorado e pacífico — e é isto mesmo que, em contraposição à guerra, distingue a actividade social chamada comércio.

O estabelecimento, um pouco demorado desta analogia ou paridade entre o fenómeno cultural e o comércio não é uma espécie de degressão ou devaneio neste artigo e nesta Revista. Visa, antes de mais nada, a mostrar claramente a importância social do comércio, e a mostrá-la àqueles mesmos que frequentemente a esquecem ou a negam. E como esses, em geral, são os que são ou se julgam pessoas de cultura, o argumento, que se lhes opõe, é tirado das próprias preocupações deles; responde-se-lhes na própria língua que falam ou dizem falar.

Mas esta demonstração visa, também, a estabelecer — para o que vamos expor do que nos parece terem sido, adentro da civilização europeia, os estádios da evolução do comércio — uma espécie de contraprova constante. Se comércio e cultura são actividades sociais necessariamente análogas e paralelas, deve haver uma analogia e um paralalelismo entre os estádios da evolução comercial e os da evolução cultural. Determinado, pois, um estádio da evolução do comércio, será fácil verificar se está bem determinado, verificando-se se lhe corresponde um estádio paralelo de cultura.

 

Três são as fases que, a nosso ver, o comércio tem atravessado no decurso da civilização a que pertencemos — isto é, daquela civilização que começa na chamada Idade Média e de aí se estende aos nossos dias. A primeira frase — a do comerciante mercador (assim lhe chamaremos) — vai do início dessa civilização até ao começo da época “moderna”, isto é, o período, do século dezoito para o dezanove, em que se deu o advento da máquina e do individualismo económico. A segunda fase — a que chamaremos do comerciante negociante — vai de aqui até à vinda, não já da máquina, mas da ciência da máquina, ou seja do que denota a formação do tipo industrial moderno — a predominância absoluta (pois até ali era só relativa) da ciência, por meio da engenharia, na vida prática; a mecanização, como dizia Rathenau. A terceira fase — a do comerciante industrial (tal é o nome que lhe daremos) — é a que parte e nasce deste último fenómeno e está dando a cor ao tempo presente. A razão dos três nomes distintivos, de que acabamos de servir-nos, ver-se-á no decurso desta breve exposição.

Cumpre, porém, e sempre, advertir que a realidade não é uma régua, nem uma série de caixas: não tem marcas distintas, nem conhece separações absolutas. Quando, portanto, estabelecemos, para a nossa conveniência mental, “fases” e “períodos” na vida e na história, e indicamos certos fenómenos como sinais do princípio e do fim dessas fases, não devemos esquecer que esses fenómenos, que nos servem convenientemente de balizas, não são instantâneos mas prolongados; e que, assim, há um largo espaço em que duas “épocas” sucessivas se confundem e se misturam, a ponto de não podermos bem dizer se tal ano ou caso está em uma ou outra delas, ou se não estará, por assim falar, em as duas ao mesmo tempo. Com esta reserva fundamental têm sempre que entender-se as classificações que se fazem na vida e, sobretudo, na história.

Acresce, em matéria histórica, uma outra reserva, não menos importante. “Civilização” é um termo abstracto; a realidade concreta está nas nações, ou nas regiões ou camadas sociais delas, que compõem essa “civilização”. Ora essas várias nações e, dentro elas, essas partes delas, não caminham a par e no mesmo passo. No mesmo século há países que estão vivendo em “séculos” diferentes; no mesmo pais há regiões e camadas sociais que estão vivendo simultaneamente em épocas diversas.

Quando estudamos um período histórico, e buscamos determinar os seus característicos, fazemo-lo pelos países e pelas camadas sociais que estão na vanguarda típica do movimento que nos parece ser o da civilização, muito embora esses países e essas camadas sejam na ocasião uma minoria. Nem se deve confundir a vanguarda da “civilização” com a vanguarda da vitalidade social: quando é ascendente a curva da civilização, a vanguarda está no ponto mais alto; quando é descendente, está no ponto mais baixo. Avança-se para a morte como para a vida.

Com estas reservas fatais terá o leitor consciente que entender, não só este breve ensaio, mas qualquer estudo histórico em que se fale da “evolução”, de “fases de progresso”, de “períodos de civilização”.

 

Na época em que colocamos o primeiro estádio da evolução do comércio a civilização tinha inicialmente, e substancialmente, o tipo guerreiro e religioso. Sendo assim, o exercício de qualquer mister que não fosse o das armas ou do sacerdócio resultava, para a imaginação de todas as classes, inferior e desprezível. Os misteres que tinham por fim visível o lucro tinha-os essa época por uma espécie de servidão voluntária, e o distinguia com o ferrete com que se marca a sordidez. Na proporção em que ainda sobrevive (pois há fenómenos sociais em que ainda sobrevive), o espírito que animou a formação e a conservação dessa época, nessa mesma proporção se mantém ainda o desprezo pelo comerciante. Atinge de preferência, é certo, o pequeno comerciante de retalho, cuja modéstia social lhe não confere o antigo opróbio. E, até certo ponto, o pequeno retalhista — neste mundo moderno de grandes armazéns e grandes armazenistas — é realmente uma sobrevivência, embora uma sobrevivência necessária. Traz, portanto, ligado a si, com os característicos da época ida em que todos eram mentalmente como ele — por muito que materialmente divergissem —, uma espécie de sombra do desdém que nessa época lhe davam.

Esta atitude social, universal na Idade Média para o comércio inteiro, sofreu uma transformação, não decisiva mas episódica, na Renascença; e, como é natural, sobretudo a sofreu nas pequenas repúblicas semiburguesas que distinguiam principalmente a Itália nesse período. Mas, no conceito geral, o comerciante não deixou de ser encarado como, mais tarde — fora já da época da verdadeira servidão —, haveria de ser encarado o operário; como, aliás, muita gente ainda encara o operário nos nossos dias. E, se o comerciante escapava a este opróbio nas cidades-estados da Renascença era, em verdade, não só pelo carácter especial da civilização nessas comunidades, mas principalmente em virtude da riqueza que acumulasse. A época não dava para melhor conceito. Era o homem rico, e não o comerciante, que nessas sociedades desnobilizadas conseguia a consideração social. Subsistia forte o velho instinto aristocrático: tornadas necessariamente, em muitos casos, pequenas plutocracias, as cidades-estado da Renascença honravam essencialmente o comerciante, quando o honravam, não como comerciante mas como plutocrata — como, portanto, em certo modo, aristocrata adentro desse sistema.

A contraprova, segundo o critério que estabelecemos, é fácil. A emergência episódica do comerciante na vida social foi acompanhada nesta época, e exactamente nas mesmas comunidades, pela emergência, igualmente episódica, do artista. O facto é conhecidíssimo. O tipo geral de cultura, porém, era de pura erudição; e, sendo assim, a cultura era necessariamente restrita. Era, ainda, servil e empírica, pois a simples erudição é, de sua natureza, parasitária; e o espírito científico, que então renascia, não penetrava, senão incerta e episodicamente, na cultura. Onde havia cultura, porém, e notadas as reservas expostas, ela era intensa, profunda e curiosa.

O comércio, nesta época, tinha exactamente o carácter empírico, “especial” e, como comércio consciente, episódico, que a cultura do mesmo tempo revela. A mentalidade do comerciante desse tempo era a do nosso comerciante de retalho, ainda que exercesse o comércio em grande escala. O comércio por grosso, como hoje o entendemos, não era conhecido. Á parte isto, havia um comércio empírico, de aventura. Assim, ao conceito social que se formava do comércio correspondia, em certo modo, a própria primitividade dele, ou, em outras palavras, o conceito que ele formava de si mesmo. Nenhum elemento de expansão consciente, ou de organização esboçada, havia entrado, ou podia entrar, no comércio deste tempo. A inexistência da contabilidade, propriamente dita, define suficientemente o carácter comercial do período. As determinantes sociais do tempo eram outras; o comércio vivia à parte, se não economicamente, pelo menos socialmente.

É esta a fase a que chamámos “do comerciante mercador”. Em certo sentido, e por uma razão já exposta, poderíamos ter-lhe chamado “do comerciante operário”. Haveria restrições especiais que fazer; mas em sua generalidade representativa, a designação não seria injusta.

Assim as coisas se mantiveram, salvas as primícias das forças vindouras, até se darem, ou se acentuarem, os três fenómenos que transformaram, simultânea e relacionadamente, os métodos comerciais e a situação social do comerciante. Esses três fenómenos foram: 1) a transformação social, havia muito preparada, que irrompeu violentamente na Revolução Francesa; 2) o desenvolvimento da vida ultramarina; e 3) o advento da máquina e, correlativamente, o aperfeiçoamento dos transportes.

O efeito da primeira destas causas foi psicologicamente curioso. A alteração da situação social do comerciante, proveniente da alteração geral de posições sociais, transformou necessariamente a mentalidade dele. O mesmo homem tem uma alma diferente, sobretudo na acção, quando se sente livre e quando se sente subordinado.

 

Ao subordinado são organicamente impossíveis a iniciativa e a organização. Na época em que era socialmente subordinado, não podia o comerciante sequer pensar em dar ao comércio uma expansão coerente, 1.º, porque essa expansão era automaticamente tolhida por forças sociais invencíveis; 2.º, porque, repercutidas essas forças sociais subconscientemente, no espírito do próprio comerciante, a ele nem sequer ocorria a possibilidade dessa expansão coerente. Os espíritos subordinados só se sentem bem na rotina, porque a rotina é a subordinação. Liberto, porém, o comerciante, pela transformação social moderna, dos últimos vínculos da Idade Média, pode por fim dedicar-se ao comércio, não como a um simples modo de ganhar a vida mas como a uma profissão; não como a um mister mas como a uma arte.

Foi pois nesta época que se definiram ou se iniciaram os tipos de comércio hoje correntes, e que nós, nascidos já tarde na nova era, mal podemos pensar que não existissem sempre. Aperfeiçoou-se o espírito de distribuição e o próprio espírito de comércio. Desta época datam, organizadamente, o comércio de atacado e o comércio de concentração; nela se desenvolveu a vida comissionária e, mais tarde, se formaram os “grandes armazéns" de retalho, os consignatários e, por especializações sucessivas, os agentes de toda a ordem que hoje simplificam as operações de importação e exportação, de distribuição e de transporte.

Paralelamente a isto, os reflexos económicos do individualismo do tempo, estimulando — fomentando mesmo — a concorrência, compeliram o comerciante a sistematizar cada vez mais os seus esforços, a orientar cada vez mais pensadamente a sua actividade, a fazer do seu comércio, não só uma arte, mas uma arte cuidadosamente exercida.

Neste mesmo sentido influíram poderosamente as outras duas causas que citámos como determinantes deste período comercial. O desenvolvimento da vida ultramarina, estimulando largamente o comércio a grande distância e em grande escala, veio alargar os horizontes habituais do comércio normal e forçar grande número de comerciantes a, segundo a frase inglesa, “pensar imperialmente”. E o advento da máquina, forçando inevitavelmente a indústria a tomar contacto directo com a ciência, alguma coisa insensivelmente lhe insuflou da sistematização que é a essência desta; e como o comércio está em contacto íntimo com a indústria, para ele foi também passando lentamente esse espírito de sistematização.

Em contraposição a isto, mas de acordo com o individualismo da época, o grande impulso que o comércio recebera, a libertação que teve da inferiorização social, as facilidades que estabeleceu a multiplicação de transportes e a sua melhoria — tudo isto fez com que se canalizassem para o comércio inúmeras actividades sem preparação especial ou tradicional para o exercício dele. E isto retardou e complicou a sistematização que se esboçava.

É esta fase toda que chamámos “do comerciante negociante”. Empregámos esta expressão não como boa, mas à falta de melhor, e sobretudo para não dizer “do comerciante comerciante”, como seria realmente próprio.

O que queremos indicar por ela é que neste período o comércio tomou realmente, e até certo ponto, consciência de si mesmo. Organizou-se individualmente, analiticamente. Tornou-se arte, mais ou menos bem aplicada. Distingue este período, significativamente, a organização definida da contabilidade. Uma coisa ainda faltava a este comércio — o elemento final da organização, que é a coordenação, a síntese. Há organização, mas fragmentária; há sistematização, mas ainda instintiva. Por isso nos servimos da palavra “arte” ao caracterizar este período, e erraríamos se usássemos de qualquer termo que se aproximasse de “ciência”.

O fenómeno cultural, que acompanha este fenómeno comercial, é de um paralelismo flagrante e exacto. O que distingue, nessa esfera, esta época é a preocupação científica e a da vulgarização ou popularização da cultura. Com a ciência, a cultura toma consciência de si mesma; com o querer por força vulgarizar a ciência, perturba e perverte essa consciência que logrou. A vulgarização científica e cultural do século dezanove foi quase sempre incoerente e incoordenada, a popularização de conhecimentos as mais das vezes imprudente e imperfeita. Há coisas que se perdem quando se vulgarizam; há matérias de todo impossíveis de popularizar. E o crescente desenvolvimento, a crescente especialização da ciência, directa e indirecta, não fez senão multiplicar os conhecimentos invulgarizáveis. O que, em matéria cultural, essencialmente carimba este período é a emergência do jornalismo; e, em verdade, a evolução do jornalismo e a do comércio moderno são de um paralelismo nitidíssimo.

 

Como destas observações claramente se depreende, estamos ainda hoje, em grande parte, e em muitas nações, adentro deste período, ou seja, ainda no século dezanove. Mas as nações da vanguarda comercial e cultural — valha essa vanguarda o que valer — passaram já nitidamente para outro período, e o certo é que em todas as nações se esboçam, com maior ou menor clareza, os característicos dum período novo.

Três são as influências que geraram, e estão gerando, a transformação do segundo período no terceiro: 1) a intensificação de todos os factores que criaram o segundo período, incluindo o próprio individualismo — intensificação porém tão grande que a diferença entre os dois períodos, de quantitativa, passou a ser qualitativa; 2) o aparecimento nítido de concorrências nacionais, organizadas e definidas, umas vezes reforçando, outras sobrepondo-se às concorrências individuais; e 3) o reaparecimento, e desenvolvimento rapidíssimo, do princípio sindical.

O efeito principal destas causas — nitidamente sobre o comércio, menos nitidamente, do ponto de vista prático, sobre a cultura — foi, onde quer que tenham aparecido fortemente, coagir o indivíduo, na sua vida material, a um grau de disciplina e de organização que em certas coisas — e o comércio é uma delas —merece já, quase, o nome de científica. A concorrência individual, desenvolvendo-se para além de tudo que o século passado sonhara, obrigou o indivíduo a tomar todas as precauções para poder vencer; e onde essas precauções não são o abandono de todos os escrúpulos — fenómeno aliás hoje correntíssimo em todos os ramos — são o estudo atento dos processos a empregar, o estudo científico onde seja possível, para tomar a dianteira aos concorrentes. O desenvolvimento desmedido da ciência operou evidentemente no mesmo sentido — directamente, penetrando todos do espírito científico, mas do espírito científico de precisão e, sobretudo, especialização, pois as ciências, à medida que se desenvolvem, aproximam-se de um estado matemático e, ao mesmo tempo, se especializam acentuadamente; e, indirectamente, através da indústria, agora inteiramente penetrada da ciência, como se vê na proeminência enorme, e crescente, da engenharia, hoje cheia de ramificações.

Neste mesmo sentido operaram os factores a que chamámos as concorrências nacionais e o princípio sindical — este último, porém, um pouco duvidosamente. A “concorrência nacional”organizada foi trazida para a evidência universal pela Alemanha, cujo sistema de estado não só a estimulava, mas como que a compelia, a organizar nacionalmente, como uma guerra — com uma táctica e uma estratégia estudadas —, a expansão do seu comércio. Este factor mais obrigou os comerciantes de toda a parte a dar ao seu comércio uma organização e uma coordenação parecidas com aquelas que são hoje inevitáveis na indústria. E é por isto que damos a este período da evolução do comércio o nome de “do comerciante industrial”.

O princípio sindical — propriamente reaccionário ou retrógrado, pois que é uma reversão às corporações medievais — emergiu nas classes operárias, e de aí galgou para todas as outras. Como, seja mau ou bom do ponto de vista social, sempre é um elemento de coordenação, temos nele mais um elemento que se reflectiu no espírito geral e o impeliu mais para se compenetrar da necessidade de organização. Acresce que o espírito de classe ou de profissão, que ele tende a criar, tem também efeitos de rigorosa especialidade, onde esse espírito não seja apenas político; assim, no caso das associações comerciais, gerais e especiais, e das câmaras de comércio, se estabeleceu para o comerciante individual uma maior facilidade de estudar a sua profissão, ou o ramo especial dela que exerce. E o espírito geral de organização com isto necessariamente se ampliou.

O certo é que hoje, e mormente nos países mais avançados materialmente, se vai tornando cada vez mais difícil o exercício profícuo e duradouro do comércio a quem não o exerça como se fosse uma indústria, com estudo, “ciência” e sistematização completa. Nesses mesmos países a especialização vai crescendo; é corrente nos Estados Unidos da América as indústrias afastarem de si por completo toda a actividade comercial, delegando em distribuidores domésticos e de exportação a venda dos artigos que fabricam. Em tudo isto se vê o espírito que anima, no comércio, a nossa época. Não sabemos se isto é progresso — porque, em verdade, não se sabe ao certo o que é que constitui o progresso —, mas é fora de dúvida que é muito mais profícuo, muito mais interessante e, até, muito mais simples o comércio quando é exercido desta maneira. A simplificação da contabilidade organizada também define bem, em sua espécie, esta época do comércio.

Como estas observações, que acabamos de fazer sobre a fase actual do comércio, são de uma grande evidência, e todos devem compreender que são exactas, não é necessário buscarmos neste caso a contraprova cultural, ou qualquer contraprova mesmo. E é bom que não tenhamos que ir buscar a contraprova cultural, pois — talvez porque a nossa época atravessa uma grande crise de cultura — os fenómenos de coordenação cultural estão muito menos nítidos do que os de coordenação comercial. O que se esboça, porém, nos centros culturais mais representativos vem confirmar nitidamente o que já se passa nos meios comerciais do mesmo nível. Mas, por enquanto, não há nesse campo superior mais que esboços, desejos, tendências. O espírito da ciência e da engenharia ainda não chegou à arte e à literatura.

Originalmente publicado in Revista de Comércio e Contabilidade, nº 3. Lisboa: 25-3-1926.

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