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A Imprensa

Alexandre Herculano

Direitos Civis e Privacidade, Excertos e Ensaios, Filosofia Política, Direito e Instituições, Autores Portugueses

Português

Se a arte de escrever foi o mais admirável invento do homem, o mais poderoso e fecundo foi certamente a imprensa. Não é ela mesma uma força, mas uma insensível mola do mundo moral, intelectual e físico, cujos registos motores estão em toda a parte e ao alcance de todas as mãos, ainda que mão nenhuma, embora o presuma, baste só por si para a fazer jogar. Imaginavam os antigos uma urna de destinos, a que os tempos e os homens corriam sujeitos: é a imprensa a urna dos destinos trasladada para a terra; potência maravilhosa, formando as opiniões sem ter uma opinião, criando as vontades sem ter uma vontade, condensando ou dissipando forças sem ter força, arrastando aqueles mesmos que julgam dirigi-la, paralisando e quebrando o braço sacrílego que se lhe atreve, medrando com a prosperidade, medrando ainda mais com a perseguição; sol novo que o homem acendeu e não poderia apagar, sol que alumia ou aquece, deslumbra ou abrasa, desenvolve flores e frutos, venenos e serpentes! É a imprensa o maior facto da sociedade moderna, o que marcou a maior época da história universal, fazendo surgir a revolução mãe, a revolução das revoluções, a revolução por excelência. Se a civilização progride com tanta rapidez, a este seu invento o deve, que se tornou o seu carro triunfal, que movido por vapor ou por electricidade, arremete com todos os caminhos ferrados ou pedregosos, devora com igual facilidade os plainos e os alcantis, passa por cima de todos os obstáculos e inimigos, e lá vai para o horizonte incógnito que Deus lhe tem apontado.

Quantos milhares de cabeças na hora em que isto escrevemos se estão em toda a superfície do globo repassando da palavra imprensa! Em quantos infantes ou adolescentes se está formando o homem futuro, e quanta virilidade aparelhando para grandes coisas! Quantos centenares e milhares de penas estão neste momento lançando para dentro deste vaso, sempre em fervura, os mistos mais estranhos; a verdade, o sofisma, a mentira; a impiedade ou a fé, o fel da calúnia ou incenso da lisonja, a caridade ou o ódio, a inocência ou corrupção, a honra ou o desaforo, a animação ou o desalento, as sementes da paz ou as da guerra! Quando se imagina esta imensa e afogueada lida do incansável e contraditório espírito humano, cuida-se estar vendo aquela temerosa mágica Medeia, como no-la pinta Ovídio, cozinhando todo o género de drogas, para apurar o líquido milagroso que havia de restituir a mocidade a um velho decrépito. O pau seco de oliveira com que ela mexia o misto em cachão, reverdeceu, brotou folhas e azeitonas, nos diz o poeta; a terra embebendo as espumas que do vaso transbordavam, relvou e floriu, e o caduco Éson, injetado que lhe foi o remédio, reapareceu menino, fresco e viçoso. Sim, por arte tal concertou Deus o mundo, que houvesse os bens de nascer da mistura de bens e males, para que nada houvesse que fosse extremo e absoluto mal, e nada também que fosse o bem perfeito antes da outra vida.

Ao som de bênçãos e maldições vai, portanto, a imprensa preparando e operando a metamorfose e renovação do orbe. A bons fins a guie Deus, que só Deus já agora lhe é superior.

A liberdade de imprensa é um dogma, o primeiro da religião política moderna, e para muitos até um axioma de filosofia: uma potência essencialmente superior a todas forçosamente é livre. Fique, portanto, dogma e axioma, porém entenda-se qual é o sentido que neste caso cabe à palavra liberdade. Nisto variam os autores. Em geral os mais sisudos e morais circunscrevem-lhe os limites onde a nossa natureza marcou os do justo; outros menos generosos e mais interesseiros, estendem-na até aos confins do útil, palavra eternamente vaga pelo perpétuo conflito das utilidades maiores com as menores, das maiores ou das menores entre si, das da humanidade com as da pátria, das da pátria com as da cidade, das da cidade com as da família, das da família com as do sujeito, das utilidades dos contemporâneos com as dos vindouros, das materiais com as espirituais, das políticas com as religiosas; outros enfim não lhe querem raias algumas, e esses são os homens das teorias, que ainda nem sequer sondaram o vestíbulo da escola do mundo real; são corações magnânimos que vêem o mundo de formosas cores, porque o olham pelo seu prisma interior, ou corações perversos, a quem não importa o sacrifício das famas porque não têm um nome, nem o dos bens porque não têm que perder, nem o da paz porque só após a guerra vem o saque, nem o da verdade porque não a conhecem, nem o da virtude porque nunca lhe saborearam as delícias. A opinião desses é monstruosa porque é extrema e não menos absurda que a da abolição da imprensa, que é o outro extremo oposto. Não imprimir nada ou imprimir tudo, são em muitos sentidos uma só e a mesma coisa: mas não falamos aqui senão em relação à moral e à política.

A imprensa moderada produz a verdade e a animação para o bem; o silêncio da imprensa ou o delírio frenético da imprensa, enublam a verdade, tiram a energia e o gosto do bem, fazem que a opinião tornada falível, nem seja prémio a bons nem castigo a maus, porque maus e bons a desprezam, como ela merece: quando se pode chamar e se chama ladrão a todos, o que o é consola-se com a honrada companhia em que o meteram; o que o não era, talvez, e até por despeito, se decide a aproveitar os prós do ofício, de que já lhe fizeram sofrer os percalços. A aplicação copiosa e injusta da pena, quebrou-lhe o que ela tinha de doloroso, criou uma espécie de impunidade, equivalente a uma mudez profunda da opinião. É uma faculdade natural a palavra, nos dizem: quem o nega? Também o usar das mãos e forças físicas é uma faculdade natural, e, contudo, não se segue daí que o filho possa enforcar o pai, o pai esfolar os filhos, o vizinho apedrejar os vizinhos, nem o passageiro lançar fogo à minha propriedade. Tem a sociedade direito à sua felicidade e bom regimento, e cada um dos membros dela a tudo o que não prejudica os outros, a todos os seus cómodos possíveis, e principalmente, note-se bem isto, principalmente ao seu crédito, porque o crédito é mais bem e mais nosso, mais digno de se velar com ciúmes do que os bens exteriores e passageiros da fortuna. Todo aquele, portanto, que violar este património dos indivíduos ou das sociedades, transgrediu os limites da justa liberdade, e se a sociedade o não punisse, deixaria talvez em boa filosofia, o direito, e em alguns casos ao ofendido a obrigação de o punir.

Outra prova de quanto é verdadeira a teoria dos extremos, é que a liberdade sobeja nos escrevedores se converte numa verdadeira escravidão para os outros. Quando um homem se arvorou a si mesmo em censor público, quando de dia e de noite ele e seus cúmplices andam devassando para pôr ao olho do sol os segredos das famílias, as acções irresponsáveis [d]os particulares, quando condena e infama por aparências, quando torce e adultera factos, quando de possibilidades faz probabilidades e das probabilidades certezas, quando lança ao público tudo quanto sonhou depois de farto e embriagado com o preço das lágrimas alheias, ou tudo quanto ouviu da boca de outros caluniadores, que de propósito e para fins particulares, semeam o escândalo; quando enfim um tal homem mais infame do que o carrasco, porque assassina sem processo, porque assassina culpados e inocentes, porque assassina na alma e não no corpo, porque assassina por dinheiro e sem que ninguém o obrigue a assassinar; quando um tal homem, digo, chama todos os dias o povo a aplaudir o espectáculo mais imoral que ao povo se pode apresentar, e para o embrutecer de todo lhe tem perenemente aberto um circo como o dos antigos romanos, em que ele e outras feras devoram os justos, e consumam, entre risos, verdadeiros martírios, onde está já aí a liberdade dos cidadãos? As coisas que a lei lhes não proíbe, também lhas não proibiu, mas pune-lhas este executor da baixa injustiça. Se foi visto conversar com o seu amigo ou com o seu conhecido, são dois conspiradores que tramam uma revolução. A casa que frequenta é por força um clube tenebroso. Se escreve o que a sua consciência lhe dita, vendeu-se. Se é magistrado e teve a desgraça de condenar um criminoso compadre desse déspota obscuro, provocam-se contra ele os punhais. Se pugna pela ordem, é um inimigo do progresso que deve ser exterminado. Se prega o respeito às leis e à autoridade, denuncia-se às virtuosas massas como traidor. Se aspira a um lugar onde sirva a sua pátria, e donde lucre uma fatia de pão para a sua mulher e filhos, é um ambicioso: se o obteve e o exercita, ainda que sua mulher, seus filhos e ele continuem a morrer à fome, é um devorador da substância pública. Que digo! Se tivestes a desventura de nascer com uma perna torta, se uma enfermidade vos desfigurou o rosto, se uma bala vos mutilou, se a idade vos despiu a cabeça de cãs, tudo isso são crimes que lá virão a terreiro, quando as verdades ou as calúnias não bastarem para encher a folha do dia seguinte, e, por já ter soado a meia noite, foi necessário mandar alguma coisa para a imprensa, para que no outro dia, logo pela manhã, não falte ao povo, às horas do almoço, o picado de carne humana.

Desta maneira é evidente que a liberdade que sobeja sob a pena desse minotauro, fica faltando em igual proporção no resto do público, que tem nele um tirano absoluto; e centenares de pessoas honestas deixarão de fazer o que todas as leis divinas e humanas lhes permitiam, deixarão até de sair de suas casas, só para se não exporem a ser avistadas pelos colaboradores, que por ali andam derramados à caça de artigos, não só como espiões, mas como verdadeiro bando de assassinos.

A liberdade de imprensa, como as demais liberdades, deve, portanto, ter a sua medida e esta medida não pode ser outra senão a que naturalmente limita todas essas liberdades para que possam coexistir em proveito de todos os cidadãos. E assim, até onde chegar a esfera de acção do corpo social, não se deve por modo algum permitir que aquela liberdade degenere em licença para infamar; aliás um vergonhoso absurdo se apresentaria qual o da pena de um quidam podendo mais que o ceptro e que a vara da justiça, qual o de um particular alevantando-se por cima das leis e da ordem pública. Tal espetáculo é injusto e iníquo, é imoralíssimo e sumamente perigoso, porque abre porta às vinganças, que os ofendidos tomarão por direito natural quando as leis não os protejam e eles o puderem fazer impunemente; enfim é bárbaro e vergonhoso numa sociedade civilizada. Lemos nós com espanto o que os viajantes nos referem de países de antropófagos onde há açougues de carne humana: não se espantariam esses selvagens, se lhes fossem dizer, que em nossa Europa há lojas onde se vende todos os dias por preço módico o pudor dos cidadãos pequenos e grandes, reis, ministros, magistrados, plebeus, homens e mulheres, bons e maus, de todos enfim, excepto dos que fazem esse tráfico, pela única razão de que não têm esses, nem terão nunca vergonha que vender? Contraditório e incrível é enfim esse espectáculo nas sociedades onde o que rouba, ainda que seja um lenço, o que fere, ainda que levemente, o que na rua injuria pela palavra ainda que com razão, são presos e punidos segundo as leis. A liberdade de censurar deve, portanto, nós o repetimos, começar onde a liberdade social tiver parado; e ainda então os que se investirem na terrível magistratura de censores públicos, devem tremer da imensa responsabilidade que lhes impende. Sabe um desses homens desumanos todas as consequências que pode ter a seta envenenada, que no fundo do seu gabinete dispara contra um homem que lá anda pelo meio do povo, que terá filhos a quem legar o nome e subsistência? Não, eles não o sabem, e nem a maior parte das vezes esses sicários têm nome, nem filhos, nem futuro. Não são homens porque abjuraram a humanidade; nem cidadãos porque turbam a cidade; nem liberais porque desacatam as leis e os poderes constituídos; nem virtuosos inexoráveis porque a virtude é benévola; nem do povo, ainda que dele se digam, porque a canalha não é o povo; nem sequer escritores porque toda a espécie de talento e de instrução lhes falta.

Há, nem podia deixar de haver em todos os países livres uma lei de restrições para a imprensa. Não examinaremos a nossa; o que se escreveu escreveu-se; é lei, respeitemo-la, e como lei desejaremos vê-la rigorosamente observada. Não denunciamos ninguém, mas lembramos às autoridades encarregadas dessa parte da ordem pública, magistrados verdadeiramente liberais e sábios, que sejam neste particular vigilantes, inexoráveis e fortíssimos; não deixem correr impunemente archotes nas mãos de furiosos, por cima de uma mina atacada de pólvora e fendida por todas as partes.[1]


[1] Estas últimas expressões e algumas outras veemências de linguagem do artigo, bem denunciam a guerra aberta do autor contra os setembristas mais exaltados, que nas suas folhas o atacavam desbragadamente e para os quais parecia não existir outro ideal que não fosse a revolução crónica das ruas. Quanto à doutrina do artigo é a mesma que o autor aplicou sempre a todas as liberdades individuais, convindo, todavia, para a sua completa inteligência, que exponhamos aqui o transunto de uma breve oração que sobre a matéria ele proferiu na sessão de 1840, da câmara dos deputados. Estava em discussão uma proposta governamental de lei de imprensa exigindo habilitações dispendiosas para a publicação de jornais políticos, e A. Herculano impugnou-a. — Classificando os abusos de imprensa em abusos contra a segurança do estado, a religião, a moral pública e a honra dos cidadãos, declarava que nenhuma dúvida teria de aprovar uma lei que definisse com clareza esses delitos e lhes aplicasse penas severas, provendo também à organização de tribunais adequados ao seu julgamento. Porém o governo não vinha regular, mas restringir a liberdade de imprensa, querendo que ela fosse privilégio de quem dispusesse de largos recursos pecuniários para se habilitar, e ele orador votava contra esta e semelhantes disposições de carácter preventivo; porquanto, regular um direito de todos, tão importante como o de que se tratava, não era privar dele a maioria dos cidadãos. Reputava, pois, a proposta do governo inconstitucional e contrária aos princípios liberais. [Nota do editor dos Opúsculos]

Alexandre Herculano (1810 - 1877) tece considerações sobre os limites à liberdade de imprensa.

Artigo compilado originalmente em Opúsculos, tomo VIII.

Colaboração na edição: Natacha Santos.

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