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A Liberdade da Imprensa

Manuel Fernandes Tomás

Direitos Civis e Privacidade, Autores Portugueses, Filosofia Política, Direito e Instituições, Autoritarismo e Totalitarismo

Português

A opinião que eu segui na comissão das bases da Constituição quando se tratou da liberdade da imprensa foi resultado de minhas reflexões a este respeito e do cuidado com que procurei até agora combinar o que me tem sido possível ler na matéria. Não se espere, pois, que sejam hoje diversos os meus princípios. O que vou dizer é o que sinto e de que estou intimamente convencido.

A liberdade de imprensa traz consigo males, e males não pequenos; mas os que resultam da censura prévia são mais e maiores: aqueles podem remediar-se em grande parte, podem até evitar-se de modo que a sociedade tenha pouco que sentir; estes não, porque eu nao concebo a possibilidade de existir um governo constitucional ao modo que a nação o espera e deseja sem a liberdade de imprensa. A experiência é argumento a que nunca se responde vitoriosamente. Veja-se o que temos sido e o que são os povos sujeitos a uma censura prévia e conhecer-se-á que repugna ser livre sem ter meios de conservar a liberdade; e querer conservar a liberdade não escrevendo senão à vontade dos que a podem oprimir ou destruir é uma pretensão quimérica.

Censura prévia é o juízo de uma junta composta quando muito de seis homens; e nisto diz-se que uma nação não deve saber senão o que sabem seis homens ou o que eles querem que se saiba. Para qualquer poder falar, para poder obrar no país mais despótico do mundo, nunca foi obrigado a consultar a vontade de uma junta; por que razão não terá ele o mesmo direito quando escreve em Portugal? No primeiro caso compara-se a acção do cidadão com a lei e aplica-se-lhe depois a pena, se ele tem abusado; e neste pretende-se que ele seja punido antes de delinquir, principiando por tirar-lhe a liberdade, que é o maior castigo que se pode dar ao homem e ao cidadão, porque o priva do maior direito. Mas diz-se que o bem da sociedade pede que em tal caso se modifique este direito, assim como acontece no uso da propriedade; eu, porém, convindo no princípio, nego a sua aplicação, porque nem vejo, nem alguém mostrou ainda, a necessidade ou a utilidade da medida, e era preciso primeiramente ter provado uma e outra coisa.

Com glória da minha pátria, tenho ouvido que todos os ilustres preopinantes convêm na liberdade da imprensa em matérias que não sejam religiosas ou morais, porque os poucos que julgaram necessária a censura prévia declaram que era tanto quanto podia isso prevenir o ataque feito aos costumes ou à decência pública. Assim, vem a questão somente a limitar-se ao Art.º 10.º das bases, que fala do direito reservado aos bispos em matérias religiosas para poderem censurar a doutrina e da obrigação do Governo em os auxiliar para castigo dos delinquentes no abuso.

Aqueles que opinaram pela liberdade de imprensa em matérias políticas supuseram que ela não atacaria o edifício social e portanto não podiam supor agora que ataque o edifício religioso, porque os homens não mudam tão facilmente de ideias religiosas como de ideias políticas. Mas se se admite o risco próximo e imediato da destruição da sociedade, não havendo censura prévia, como querem conservá-la nas matérias religiosas? Acaso poderá existir o sacerdócio destruído o Império?

A religião nasceu com o homem e há-de acabar com ele. Não se espere outra coisa. A esta certeza juntemos a promessa do Divino Pregador da crença de nossos pais. Responde-se que ele prometeu e afiançou a existência da Igreja, mas não em toda a parte, pois que ela floresceu na Ásia e já lá não floresce. Porém, acaso a liberdade da imprensa, que não existia ainda, faria estes males nessa parte do mundo?

Tem-se dito também e repetido que é preciso não esquecer a reforma de Lutero e os estragos que causara no mundo, porque tudo nascera da liberdade da imprensa: mas não será difícil mostrar que esta época tão fatal à religião foi o resultado das relações políticas dos diversos Estados com o Império da Alemanha; das ideias desfavoráveis que os abusos da Corte de Roma fizeram nascer contra o Chefe da Igreja; e, finalmente, do estado das luzes que séculos antes principiavam a raiar na Europa, ainda antes da invenção da imprensa.

De tudo, fácil é deduzir que a liberdade da imprensa em matérias de religião apenas pode causar algum escândalo às almas piedosas enquanto o Bispo não declara o erro da doutrina e o Governo não castiga o delinquente; mas isso é um mal de pouca monta se se considerarem os outros que nascem do sistema contrário.

Se, para evitar o escândalo, se deseja uma censura prévia e proveitosa, vigiem os pastores nos rebanhos, mas vigiem com cuidado – preguem as verdades da religião, ensinem a moral com a palavra e com o exemplo de suas acções verdadeiramente apostólicas e não se tema que uma ou outra ovelha desgarrada deixe de voltar ao curral; e, enquanto não volta, não se tema também que as outras sigam seu exemplo. Se o escândalo produzisse necessariamente esse resultado, teria acabado a moral e até a ideia de um Deus; porque os escândalos existem desde que existem os erros e os pecados.

Que na Espanha se deixasse aos bispos a censura prévia nestas matérias, não é para mim argumento: os espanhóis tiveram os seus motivos; nós podemos ter outros. Em Portugal nunca os bispos censuraram um livro antes de se imprimir e eu não entendo que seja necessário conceder-lhes agora essa autoridade quando vamos fazer uma constituição liberal.

Diz-se que a Nação não está preparada para tanta luz: o uso sublime da Razão é dote do homem de qualquer país; não aniquilemos tanto os portugueses.

Ninguém nega que seja melhor prevenir os crimes do que castigá-los; mas nego eu que a censura prévia previna os abusos que se podem seguir da liberdade da imprensa. Ou um escritor teme as penas da lei que lhe proíbe atacar a religião e os costumes, ou não teme. No primeiro caso não escreve, e escusa-se portanto censura prévia; no segundo escreve sempre e é inútil por isso a censura.

Intervenção do magistrado e deputado liberal Manuel Fernandes Tomás (1771–1822), numa das sessões das Cortes Constituintes de 1820–1822.

As Cortes, que começaram a reunir-se em 24 de Janeiro de 1821, tiveram como primeiro e mais importante trabalho a elaboração da Constituição Política que servisse de base legal fundamental da nova ordem estabelecida pela revolução de 1820.

Texto conforme a compilação A Revolução de 1820, organizada por José Tengarrinha e publicada em 1974 pela editora Seara Nova.

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