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A forma como as pessoas passaram a dignificar os mercados e a inovação foi a causa da Revolução Industrial e, consequentemente, do Mundo Moderno. A antiga sabedoria convencional, pelo contrário, é incompatível com o comércio e a inovação, tal como o é com o pensamento liberal. A velha história materialista conta-nos que a Revolução Industrial teve origem em causas materiais, desde o investimento ao roubo, desde taxas de poupança elevadas ao imperialismo. Já o ouviram antes: “A Europa é rica devido aos seus impérios”; “Os Estados Unidos foram construídos às custas dos escravos”; “A China está a enriquecer devido ao comércio.”
Mas e se, em vez disso, a Revolução Industrial tiver sido espoletada por mudanças na forma como as pessoas pensam, e, em especial, na forma como pensam umas sobre as outras? E se as máquinas a vapor e os computadores tiverem sido originados por uma nova dignificação dos inovadores – e não pelo empilhar de tijolos ou de escravos africanos?
Economistas e historiadores começam agora a desvendar que foi preciso muito, muito mais do que roubo ou acumulação de capital para impulsionar a Revolução Industrial – foi precisa uma grande mudança no pensamento dos ocidentais acerca do comércio e da inovação. Foi preciso começar a gostar da “destruição criativa”, da ideia nova que substitui a ideia velha. É como a música. Uma nova banda tem uma ideia de um novo estilo de rock e substitui o estilo anterior se a adesão livre do público for suficiente. Se a música antiga for tida como pior, é “destruída” pela criatividade. Da mesma forma, a luz elétrica “destruiu” a lâmpada de querosene e os computadores “destruíram” as máquinas de escrever. Para nosso bem.
A história correta reza assim: até que os holandeses por volta de 1600 ou os ingleses por volta de 1700 mudassem a sua forma de pensar, só era possível obter honra por duas vias: sendo soldado ou sendo sacerdote; no castelo ou na igreja. Pessoas que faziam a sua vida, simplesmente, à base da compra e venda de bens, ou que inovassem em algum aspeto, eram desprezadas e consideradas “batoteiras” pecaminosas. Um carcereiro em 1200 rejeitava o apelo de misericórdia de um homem rico: “Ora, Mestre Arnaud Teisseire, o senhor chafurdava na opulência! Como é que pode dizer que não era pecador?”
Em 1800, o rendimento diário médio de uma pessoa na Terra variava entre $1 e $5, em valores atuais. Vamos assumir que era em média $3 por dia. Imaginemos viver atualmente no Rio de Janeiro ou em Atenas ou em Joanesburgo com $3 por dia. (Ainda hoje há quem assim tenha de viver.) São três-quartos de um cappuccino no Starbucks. Era, e é, chocante.
Mas então algo mudou, primeiro na Holanda e depois em Inglaterra. As revoluções e reformas na Europa, de 1517 a 1789, deram voz às pessoas comuns fora dos círculos dos bispos e dos aristocratas. Os europeus, seguidos de todos os outros, passaram a admirar empreendedores como Benjamin Franklin, Andrew Carnegie e Bill Gates. A classe média começou a ser bem vista e a ter sucesso na vida. As pessoas assinaram uma espécie de Pacto da Classe Média, que tem desde então caraterizado os países ricos de hoje em dia, como a Inglaterra, a Suécia ou Hong Kong: “Deixem-me inovar e fazer montes e montes de dinheiro a curto prazo com a minha inovação, e no longo prazo far-vos-ei ricos a vocês.”
E assim foi. Começando em 1700 com o para-raios de Franklin e a máquina a vapor de Watt, e acelerando significativamente no século xix, e ainda mais no xxi, o Ocidente, que durante séculos esteve atrasado em relação à China e ao mundo islâmico, tornou-se incrivelmente inovador.
Deu-se, pela primeira vez, dignidade e liberdade à classe-média, e eis o resultado: a máquina a vapor, o tear automático, a linha de montagem, a orquestra sinfónica, os caminhos-de-ferro, as sociedades anónimas, o abolicionismo, a imprensa a vapor, o papel barato, a alfabetização quase universal, o aço barato, o vidro laminado barato, a universidade moderna, o jornal moderno, a água salubre, o betão armado, o feminismo, a luz elétrica, o elevador, o automóvel, o petróleo, as férias em Yellowstone, os plásticos, meio-milhão de novos livros em Inglês por ano, o milho híbrido, a penicilina, o avião, o ar urbano limpo, os direitos civis, a cirurgia cardíaca aberta, e o computador.
O resultado foi que, pela primeira vez na história, as pessoas comuns – e em especial os mais pobres – viram a sua vida melhorar imensamente – lembremo-nos do Pacto da Classe Média. Os cinco por cento mais pobres dos americanos têm agora sensivelmente o mesmo nível de ar-condicionado e automóveis que os cinco por cento mais ricos na Índia.
Observamos agora a mesma mudança a acontecer na China e na Índia, 40 por cento da população mundial. O grande acontecimento económico dos nossos tempos não foi a Grande Recessão de 2007-09 – por mais desagradável que de facto tenha sido. O grande acontecimento foi os chineses em 1978 e os indianos em 1991 terem adotado ideias liberais nas suas economias e aceitarem a destruição criativa. Com isto, os seus bens e serviços estão a quadruplicar por pessoa a cada geração.
Hoje, nos numerosos locais que adotaram a liberdade e a dignidade da classe média, a pessoa média recebe e consome mais de $100 por dia. Recordemos que há 2 séculos atrás este valor era de apenas $3 por dia, com preços idênticos. E não estamos a ter em conta a considerável melhoria na qualidade de muitas coisas, desde a luz elétrica aos antibióticos. Os jovens no Japão, na Noruega e em Itália vivem cerca de 30 vezes melhor, em termos materiais, do que os seus sextos avós. Todos os outros saltos rumo ao mundo moderno – mais democracia, a emancipação feminina, o aumento da esperança média de vida, a melhor educação, o crescimento espiritual, a explosão artística – estão firmemente ligados ao Grande Facto da história moderna, o aumento de 2900% na alimentação, na educação e na mobilidade.
O Grande Facto é tão impactante, tão sem precedentes, que é impossível vê-lo como resultado de causas rotineiras como o comércio, a exploração, o investimento ou o imperialismo. Isso é o que os economistas são bons a explicar: a rotina. Porém, todas as rotinas já tinham ocorrido em grande escala na China e no Império Otomano, em Roma e no sul da Ásia. A escravatura era comum no Médio Oriente, o comércio era elevado na Índia, o investimento nos canais chineses e nas estradas romanas era imenso. Ainda assim, nenhum Grande Facto aconteceu. Algo tem de estar profundamente errado com as explicações baseadas nos típicos argumentos económicos.
Por outras palavras, é incorreto depender exclusivamente do materialismo económico para explicar o mundo moderno, quer seja o materialismo histórico de esquerda ou a economia de direita. Os ideais da liberdade e da dignidade humana foram o fator determinante. Como explica o historiador económico Joel Mokyr, “em todas as épocas, a mudança económica depende, mais do que a maioria dos economistas pensa, daquilo em que as pessoas acreditam.” As gigantescas mudanças materiais foram o resultado, não a causa. Foram as ideias, ou a “retórica”, o que causou o nosso enriquecimento, e com ele as nossas liberdades modernas.
Neste ensaio, a economista, historiadora e crítica social Deirdre McCloskey defende que o crescimento do capitalismo moderno e o mundo que este tornou possível não podem ser adequadamente explicados por “fatores materiais”, como gerações de historiadores procuraram fazer.
Foi, sim, uma mudança na forma como as pessoas encararam os negócios, o comércio, a inovação e o lucro que criou o capitalismo moderno e libertou as mulheres, homossexuais, dissidentes religiosos e as massas anteriormente oprimidas, cujas vidas eram desumanas, dolorosas e curtas antes da invenção e comercialização da agricultura moderna, da medicina, da eletricidade e dos restantes acessórios da vida capitalista moderna.
Deirdre N. McCloskey é professora de economia, história, inglês e comunicação na Universidade de Illinois, em Chicago. É autora de vinte obras nas áreas da economia, da filosofia política, da história económica, da estatística, da retórica e da literatura, bem como de um livro de memórias, Crossing.
Uma das suas recentes obras, publicada em 2019, é Why Liberalism Works: How True Liberal Values Produce a Freer, More Equal, Prosperous World for All (“Porque é que o Liberalismo Funciona: Como os Verdadeiros Valores Liberais Produzem um Mundo mais Livre, Igual e Próspero para Todos”).
O presente ensaio, que apareceu originalmente no livro The Morality of Capitalism, é baseado no argumento do seu livro Bourgeois Dignity: Why Economics Can't Explain the Modern World.
Tradução: Guilherme Costa Matos e Pedro Almeida Jorge.
Narração: Mariana Durão.
Colaboração: Sofia Correia e Raquel Correia.
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