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A Teoria "Austríaca" do Ciclo Económico

Ludwig von Mises

Excertos e Ensaios, Economia, Nível Introdutório, Escola Austríaca, Moeda, Banca e Mercados Financeiros

Português

Hoje em dia, é costume na ciência económica falar-se da teoria austríaca do ciclo económico. Esta designação é extremamente lisonjeira para nós, economistas austríacos, e apreciamos fortemente a honra que desse modo nos é feita. Contudo, tal como acontece com qualquer outra contribuição científica, a explicação moderna para as crises económicas não poderá considerar-se obra de apenas uma única nação. À semelhança do que acontece com os outros elementos do nosso presente conhecimento económico, esta concepção é fruto da mútua colaboração entre economistas de todos os países.

A explicação de flutuações conjunturais com base em causas de ordem monetária não é de hoje. A chamada Currency School[1] inglesa já havia tentado explicar a alta da economia pela expansão do crédito resultante da emissão de notas bancárias sem cobertura metálica.[2] No entanto, essa escola não teve em consideração que as contas bancárias que podem ser movimentadas a todo o momento por meio de cheques – ou seja, as contas correntes ou à ordem – desempenham exactamente o mesmo papel na concessão do crédito que as notas bancárias, e que, consequentemente, a expansão do crédito pode resultar não apenas da excessiva emissão de notas bancárias, mas também dos créditos excessivos em contas correntes. Foi por não ter compreendido este facto que a Currency School acreditou que, para impedir a recorrência das crises económicas, seria suficiente promulgar legislação que restringisse a emissão de notas bancárias sem cobertura metálica, enquanto deixava a expansão do crédito através das contas correntes sem regulamentação. A Lei Bancária de Peel, de 1844, à semelhança de todas as leis semelhantes passadas noutros países, não conseguiu alcançar o efeito desejado. Daqui se retirou erradamente a conclusão que a tentativa da escola inglesa de explicar as fluctuações conjunturais por causas de ordem monetária tinha sido refutada pelos factos.

A segunda falha da Currency School é que, ao analisar o mecanismo de expansão do crédito e a crise que daí resulta, se restringiu ao caso em que essa expansão é levada a cabo em apenas um país, considerando que a política bancária de todos os outros países permaneceria conservadora. A reacção que se produz neste caso resulta das ocorrências ao nível do comércio externo. A subida interna dos preços favorece as importações e paralisa as exportações. A moeda metálica é drenada para os países estrangeiros. Como consequência, os bancos enfrentam crescentes pedidos de reembolso dos instrumentos que colocaram em circulação (entre os quais as notas e as contas correntes sem cobertura metálica), até ao momento em que se vêem obrigados a restringir o crédito. A exportação de moeda acaba finalmente por travar a subida dos preços. A teoria da Currency School analisou unicamente este caso, sem se debruçar sobre o de uma expansão do crédito de carácter internacional, levada a cabo por todos os países capitalistas.

Na segunda metade do século XIX, esta teoria e a explicação que ela fornece para as flutuações conjunturais caíram em descrédito. Nessa época, ganhou proeminência a ideia de que as flutuações conjunturais não deveriam ser consideradas imputáveis ao sistema monetário e ao crédito. A tentativa de Wicksell (1898)[3] de reabilitar a Currency School não teve grande sequência.

Os fundadores da escola austríaca de economia política – Carl Menger, Bӧhm-Bawerk e Wieser – não estavam interessados no problema das flutuações conjunturais. A análise desse problema seria tarefa para a segunda geração de economistas austríacos.[4]

Ao emitirem notas bancárias sem cobertura – ou ao abrirem contas correntes cujo valor não se encontra inteiramente coberto por saldos em caixa – os bancos ficam em posição de expandir consideravelmente o crédito. A criação desses meios fiduciários adicionais permite-lhes conceder os seus créditos muito para lá dos limites traçados pelas suas próprias disponibilidades e pelos fundos que lhes foram confiados pelos seus clientes. Nessas circunstâncias, os bancos intervêm no mercado como “ofertantes” de créditos adicionais, criados por eles próprios, e provocam, deste modo, uma descida da taxa de juro para lá do nível que se verificaria sem a sua intervenção. A descida da taxa de juro estimula a actividade económica. Projectos que não eram considerados “rentáveis” quando a taxa de juro ainda não estava influenciada pelas manipulações do bancos, e que, portanto, não teriam sido empreendidos, são agora considerados “rentáveis” e podem ser iniciados. Uma actividade económica mais intensa leva a uma procura acrescida de meios materiais de produção e de mão-de-obra. Os preços dos meios de produção aumentam, os salários sobem, e a subida dos salários leva, por sua vez, à dos preços dos bens de consumo. Se os bancos se abstivessem de qualquer expansão adicional do crédito e se se limitassem à que já levaram a cabo, a alta seria rapidamente interrompida. Mas os bancos não abandonam a estratégia em que embarcaram; continuam a expandir o crédito, numa magnitude cada vez maior, e os preços, tal como os salários, continuam correspondentemente a subir.

Porém, este movimento de alta não poderá continuar indefinidamente. Os meios de produção materiais e a mão-de-obra disponível não aumentaram; somente aumentou a quantidade de meios fiduciários capazes de desempenhar a mesma função que o dinheiro na circulação dos bens. Os meios de produção e a mão-de-obra que migraram para os novos negócios tiveram, necessariamente, de ser atraídos de outras empresas. A sociedade não é suficientemente rica para permitir a criação de novas empresas sem que nada se retire a outras. Enquanto a expansão do crédito continuar, isso não se notará; mas não será possível impulsionar essa expansão indefinidamente. Se se tentasse recorrer à criação de créditos cada vez mais numerosos por forma a evitar a travagem repentina do período de alta (e o colapso dos preços que daí resultaria), isso implicaria um aumento contínuo e cada vez mais rápido dos preços. Contudo, a inflação e a alta só podem prosseguir calmamente enquanto o público acreditar que o movimento ascendente dos preços terminará num futuro próximo. Assim que a opinião pública se apercebe que não há razão para esperar uma travagem da inflação nem da alta e começa a achar que os preços irão continuar a subir, o pânico instala-se. Já ninguém quer manter o dinheiro na sua posse, pois isso implica perdas cada vez maiores de um dia para o outro; todos tentam trocar dinheiro por mercadorias; sem olharem sequer para o preço, compram coisas que não lhes fazem falta nem nunca virão a fazer, com o único propósito de se livrarem do dinheiro. Foi este fenómeno que ocorreu no Reich, bem como noutros países que se deixam embarcar numa política de inflação prolongada, e que tem vindo a ser chamado de “fuga para valores reais”. Os preços dos bens sobem desmesuradamente, tal como as taxas de câmbio, ao passo que o valor da moeda nacional cai para zero. O valor da moeda colapsa, como aconteceu na Alemanha em 1923.

Se, por outro lado, a fim de evitarem o colapso da moeda, os bancos decidirem travar a tempo a expansão do crédito, interrompendo consequentemente o período de alta, chegar-se-á bruscamente à conclusão que a falsa impressão de “rentabilidade” criada pela expansão do crédito levou a investimentos injustificados. Inúmeras empresas e projectos que haviam sido iniciados graças à descida artificial da taxa de juro, e que só puderam ser continuados graças à igualmente artificial subida dos preços, deixam consequentemente de se revelar “rentáveis”. Certas empresas reduzem as suas operações; outras abandonam-nas por completo ou abrem falência. Os preços colapsam; a crise e a depressão que se segue são o culminar do período de investimentos injustificados promovidos pela expansão do crédito. As empresas que deviam a sua existência ao facto de outrora – durante as condições de mercado fictícias criadas pela expansão do crédito e pela alta dos preços que daí resultou – terem parecido “rentáveis”, agora deixaram de o ser. O capital investido nestas empresas dissipa-se, visto que já não será possível recuperá-lo. A economia tem de se adaptar a essas perdas e à situação que elas provocam. Neste caso, será necessário, antes de mais, restringir o consumo e constituir, através da poupança, novos capitais, por forma a adaptar o aparelho produtivo às necessidades reais e já não às necessidades artificiais, que só puderam manifestar-se e ser consideradas necessidades reais em razão de falsos cálculos de "rentabilidade" levados a cabo com base na expansão do crédito.

A alta artificial foi provocada pela expansão do crédito e pela descida da taxa de juro, resultantes da intervenção dos bancos. É verdade que, durante a expansão do crédito, os bancos foram subindo progressivamente a taxa de juro; de um ponto de vista puramente aritmético, ela encontra-se a um nível superior ao que se verificava aquando no início da expansão. No entanto, essa subida da taxa de juro não é suficiente para restabelecer o equilíbrio no mercado e colocar um termo à alta insalubre, pois, num mercado onde os preços sobem continuamente, a taxa de juro bruta deve incluir, para lá do juros propriamente ditos sobre o capital – que é como quem diz, a taxa de juro líquida – ainda um outro elemento, que represente uma compensação pela subida dos preços verificada durante o período do empréstimo. Se os preços sobem de forma contínua e se o devedor retira dessa situação um rendimento suplementar com a venda de mercadorias que comprou com o dinheiro emprestado, ele estará disposto a pagar um juro mais elevado do que estaria num período de preços estáveis; o capitalista, por outro lado, só estará disposto a emprestar nestas condições se os juros o compensarem pelas perdas que a diminuição do poder de compra da moeda implica para os credores. Se os bancos não tomarem em consideração essas condições ao estabelecerem a taxa de juro bruta pedida, deve considerar-se que a sua taxa se encontra a um nível artificialmente baixo, ainda que, de um ponto de vista puramente aritmético, pareça muito mais elevada do que a que se costuma verificar em períodos “normais”. Na Alemanha, por exemplo, uma taxa de juro muitas vezes superior a 100% podia ser considerada bastante baixa no Outono de 1923, devido à depreciação acelerada do marco.

No momento em que ocorre a reversão da conjuntura, resultante da alteração da política bancária, torna-se muito difícil obter empréstimos, devido à restrição geral do crédito. Como consequência, a taxa de juro sobe muito rapidamente, sob o efeito de um pânico repentino. Em seguida, voltará a descer. De facto, é um fenómeno bem conhecido que, em períodos de depressão, nem uma taxa de juro muito baixa – do ponto de vista aritmético – chega para estimular a actividade económica. Os saldos em numerário dos indivíduos e dos bancos crescem, os fundos líquidos acumulam-se e, ainda assim, a depressão persiste. No actual [1936] período de crise, a acumulação dessas reservas “inactivas” de ouro assumiu, por qualquer razão, proporções desmesuradas. Como é natural, os capitalistas desejam evitar as perdas que se arriscariam a sofrer na sequência das medidas de desvalorização contempladas por diversos governos. Uma vez que os consideráveis riscos monetários envolvidos na detenção de obrigações ou outros títulos remunerados não são compensados por um aumento correspondente das taxas de juro, os capitalistas preferem manter o seu capital numa forma que lhes permita, se necessário, evitar perdas decorrentes de uma eventual desvalorização, através de uma rápida operação de câmbio para uma moeda que ainda não esteja sob semelhante ameaça. Eis a simples razão para os capitalistas se encontrarem actualmente relutantes em expôr-se, através de investimentos de longo prazo, a uma determinada moeda. É por isso que deixam os seus saldos bancários crescerem, apesar dos baixos juros que recebem, e que entesouram ouro, o qual, para além de implicar uma perda de juros, ainda obriga a despesas continuadas.

Uma outra causa que contribui para prolongar o presente período de depressão é a rigidez dos salários. Os salários aumentam em períodos de alta; em períodos de baixa, deveriam descer, não apenas em valor nominal, mas igualmente em valor real. Ao conseguir evitar a descida dos salários em períodos de depressão, a política sindical acaba por tornar o desemprego num fenómeno massivo e persistente. Mais ainda, atrasa indefinidamente o momento da recuperação; a situação normal não poderá restabelecer-se efectivamente enquanto os preços e os salários não se ajustarem às condições da circulação monetária.

A opinião pública tem toda a razão ao encarar a inversão da conjuntura e a transição do período de alta para o de crise como um efeito da política dos bancos. É incontestável que lhes seria possível retardar, por mais algum tempo, os desenvolvimentos desfavoráveis, insistindo na sua política de expansão do crédito. Porém – como já se viu – não o poderiam fazer indefinidamente, sem com isso correr o risco de provocar o colapso completo do sistema monetário. O período de alta estimulado pela política bancária de expansão do crédito terá inevitavelmente de terminar mais cedo ou mais tarde; se não se quiser que isso aconteça com o colapso total do sistema monetário e do crédito, então os próprios bancos terão de lhe pôr fim. Assim, a sua insistência na política de expansão do crédito apenas tornaria mais graves as consequências dos investimentos injustificados e da especulação desmesurada do período de alta; tornaria ainda mais longo o período de depressão e ainda mais incerta a hora de regressar à actividade económica normal.

É frequente a sugestão de “estimular” e “impulsionar” a actividade económica através do recurso a uma nova expansão do crédito, a qual permitiria acabar com a depressão e promover uma recuperação ou, pelo menos, o regresso às condições normais; os partidários desse método esquecem-se, contudo, que ainda que essa solução talvez permitisse ultrapassar as dificuldades do momento, isso acabaria por levar, com toda a certeza, a uma situação ainda mais grave num futuro não muito distante.

Por fim, é preciso que se entenda que as tentativas de baixar artificialmente, através da expansão do crédito, a taxa de juro que se forma livremente no mercado só conseguem produzir resultados temporários, e que a recuperação económica inicial será forçosamente seguida de uma recaída mais profunda, que se traduzirá numa completa estagnação das actividades comerciais e industriais. A economia não poderá desenvolver-se harmoniosamente e sem sobressaltos a não ser que, de uma vez por todas, renunciemos a interferir, através de medidas artificiais, no nível dos preços, dos salários e das taxas de juro que resultam do livre funcionamento das forças económicas.

Não é tarefa dos bancos remediar, através da expansão do crédito, as consequências da escassez de capitais ou os efeitos de uma política económica errada. É certamente lamentável que o regresso a uma situação económica normal se veja atrasado, hoje em dia, pela nefasta política de entraves ao comércio, pelos armamentos e pelo medo - deveras justificado - da guerra, bem como pela rigidez dos salários. Mas não é através de medidas bancárias nem da expansão do crédito que a situação melhorará a este respeito.

Nas páginas precedentes, ofereci apenas uma exposição resumida e forçosamente insuficiente da teoria monetária das crises económicas. Foi-me infelizmente impossível, nos limites impostos ao presente artigo, entrar em maiores detalhes; os interessados no assunto poderão encontrá-los nas várias publicações que mencionei.


[1] [“Escola monetária”, em oposição à Banking School, “Escola Bancária”. (N.T)]

[2] [Ou, sem reservas de ouro em caixa suficientes para fazer face ao eventual resgate de todas as notas bancárias. (N.T.)]

[3] [Knut Wicksell, Geldzins und Güterpreise (1898). Tradução inglesa de 1936, Interest and Prices. (N.T.)]

[4] As principais obras austríacas sobre a teoria do ciclo económico são [com referência a 1936]: MISES, Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel, 1.ª Edição 1912, 2.ª Edição 1924 [em inglês, The Theory of Money and Credit, 1934]; MISES, Geldwertstabilisierung und Konjunkturpolitik, 1928 [Em inglês, Monetary Stabilization and Cyclical Policy]; HAYEK, Geldtheorie und Konjunkturtheorie, 1929 [Em inglês, Monetary Theory and the Trade Cycle, 1933]; HAYEK, Preise und Produktion, 1931 [em inglês, Prices and Production, 1931, 1935]; MACHLUP, Führer durch die Krisenpolitik, 1934 [em francês, Guide à travers les Panacées Économiques, 1938]. STRIGL, Kapital und Produktion, 1934 [em inglês, Capital and Production]. A melhor análise da actual crise [dos anos 30] foi feita por ROBBINS, The Great Depression, 1934.

Neste sucinto artigo de 1936, o economista austríaco Ludwig von Mises (1881-1973) expõe as consequências económicas da expansão do crédito por parte do sistema bancário, cuja influência na taxa de juro de mercado leva a incorretas decisões de investimento que mais tarde ou mais cedo terão de ser saneadas. Para Mises, a insistência em novas medidas de expansão do crédito, normalmente promovidas pelos bancos centrais, oferece apenas um paliativo temporário à economia, estando condenada a desembocar numa crise ainda maior no futuro, quando o círculo vicioso de desemprego e inflação tiver forçosamente de ser interrompido devido à inflação descontrolada.

Esta teoria obteve fama mundial na década de 30 com os trabalhos de Friedrich Hayek (1899-1992), um discípulo que Mises havia introduzido aos estudos das flutuações económicas dez anos antes. Hayek acabou por receber o Prémio Nobel da Economia em 1974, um ano após a morte de Mises, "pelo seu trabalho pioneiro na teoria do dinheiro e das flutuações económicas."

O presente artigo apareceu inicialmente em francês como "La Théorie dite autrichienne du cycle économique", sendo mais correntemente conhecido pela sua tradução inglesa dos anos 70, com o título "The "Austrian" Theory of the Trade Cycle".

Tradução do francês: Pedro Almeida Jorge, a partir de versão inicial do inglês por Miguel Mendes de Almeida.

Narração: Diogo Costa

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