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Areopagítica: Discurso Sobre a Liberdade de Expressão (Excertos)

John Milton

Excertos e Ensaios, Clássicos, Direitos Civis e Privacidade, Filosofia Política, Direito e Instituições, Filosofia, Ética e Moral, Intervencionismo e Protecionismo

Português

Discurso ao Parlamento de Inglaterra em Defesa da Liberdade de Imprensa

Há verdadeira liberdade quando homens nascidos livres, em tendo de esclarecer o público, podem falar livremente. Quem consegue e se propõe fazê-lo merece todo o louvor; quem não consegue, ou não quer, pode sempre ficar calado. O que poderia haver de mais justo num Estado?

Eurípedes, Suplicantes.

(...)

Mas, se do trabalho de uma vida inteiramente dedicada ao labor dos estudos, e de uns dons naturais que talvez não sejam dos piores a cinquenta e dois graus de latitude norte, tanto deve ser depreciado para que não me julguem igual a nenhum desses oradores que gozaram deste privilégio, espero, apesar de tudo, conseguir não ser considerado tão inferior quanto vós sois superiores à maioria daqueles que receberam os seus conselhos. E do grau dessa vossa superioridade, podeis estar certos, Lordes e Comuns, prova maior não haverá do que quando o vosso prudente espírito reconhecer e obedecer à voz da razão, de onde quer que ela se faça ouvir, e vos tornar tão dispostos a revogar qualquer lei por vós mesmos promulgada quanto qualquer outra decretada pelos vossos predecessores.

Se for esta a vossa predisposição, pois ofensivo seria pensar o contrário, não vejo o que me impeça de vos apresentar uma ocasião apropriada à demonstração tanto desse amor à verdade que eminentemente professais como da rectidão do vosso juízo, que não tem por hábito ser parcial convosco próprios: reexaminando essa Ordem por vós decretada para regulamentar a impressão, segundo a qual nenhum livro, panfleto ou jornal será doravante imprimido sem ter sido previamente aprovado e autorizado por aqueles ou, pelo menos, um daqueles que para isso hajam sido nomeados. No que se refere à parte que justamente assegura a propriedade de cada um sobre a sua obra, ou estabelece providências em relação aos pobres, nada tenho a objectar, desejando apenas que não se converta em pretexto para injuriar e perseguir homens honestos e trabalhadores que não cometeram nenhum delito em qualquer desses pontos. Mas quanto àquela outra cláusula do licenciamento dos livros, que julgávamos ter desaparecido com as suas irmãs quadragesimal e matrimonial quando os prelados expiraram, vou agora consagrar-lhe uma homília em que demonstrarei, antes de mais, que os seus inventores foram pessoas com quem dificilmente vos identificareis; depois, o que devemos pensar da leitura em geral, independentemente da natureza dos livros, e também que este decreto em nada contribui para a supressão dos livros escandalosos, subversivos e difamatórios que se visava primordialmente suprimir; por último, que esta Ordem vai ter como principal resultado o desincentivo de toda a aprendizagem e busca da verdade, não só destreinando e debilitando as nossas capacidades naquilo que já conhecemos, como dificultando e atalhando as descobertas que poderíamos ainda fazer, tanto no domínio do saber religioso como laico.

Não nego que é do maior interesse para a Igreja e para a Comunidade exercer uma vigilância sobre a conduta dos livros, tal como dos homens, e, consequentemente, restringi-los, encarcerá-los e puni-los com a maior severidade se forem malfeitores. Pois a verdade é que os livros não são coisas absolutamente mortas, encerrando em si uma vida em potência que os torna tão activos quanto o espírito que os produziu. Mais ainda, os livros conservam, como num frasco, o mais puro extracto e eficácia do intelecto vivo que os gerou. Sei que estão tão vivos e tão vigorosamente produtivos como os dentes daquele dragão da fábula e que, disseminados aqui e ali, podem fazer surgir homens armados. Mas isto significa também que, se não se usar de cautela, matar um bom livro é quase o mesmo que matar uma pessoa. Quem mata um homem mata uma criatura racional feita à imagem de Deus; mas quem destrói um bom livro mata a própria razão, mata a imagem de Deus, como se esta estivesse nos olhos. Muitos homens são um peso para este mundo; um bom livro, porém, é a seiva preciosa de um espírito superior, embalsamado e deliberadamente preservado para uma existência que ultrapassa a vida. É verdade que nenhuma época pode devolver uma vida, o que nem sempre representará grande perda; e as revoluções do tempo não reparam muitas vezes a perda de uma verdade rejeitada, por falta da qual nações inteiras sofrem as piores consequências.

Deveríamos ter, por conseguinte, cuidado com a perseguição que movemos contra as obras vivas de homens públicos, com o modo como desperdiçamos essa experiência humana de vida preservada e armazenada nos livros, pois bem vemos que se pode cometer assim uma espécie de assassínio, por vezes um martírio, e, se o alargarmos a todas as obras impressas, um autêntico massacre – em que a execução não termina na chacina de uma vida elementar, mas atinge aquela quintessência etérea que é o sopro da própria razão, destruindo não apenas uma vida, mas uma imortalidade.

(...)

Também os Romanos, durante longos anos treinados unicamente numa severa disciplina militar muito semelhante à dos Lacedemónios, pouco mais sabiam para além do que as suas Doze Tábuas e o Colégio Pontifício, com os seus augúrios e flâmines, lhes ensinavam sobre religião e Direito. Tão ignorantes eram em outras matérias que, quando Carnéades e Critolau, acompanhados pelo estóico Diógenes, chegaram a Roma como embaixadores e aproveitaram a ocasião para apresentar à cidade as linhas gerais da sua filosofia, foram considerados suspeitos de aliciamento por nada menos que Catão, o Censor, que requereu ao Senado que os pusesse rapidamente a andar e mandasse expulsar de Itália todos os áticos tagarelas da mesma estirpe. Mas Cipião e outros dos mais nobres senadores opuseram-se a ele e à sua vetusta austeridade sabina e admiraram e homenagearam os homens; e o próprio censor, na sua velhice, acabou por se dedicar ao estudo daquilo que outrora lhe inspirara tanta desconfiança. Enquanto isso, porém, Névio e Plauto, os primeiros autores de comédia em língua latina, haviam enchido a cidade de encenações das peças de Menandro e Filémon. Terá sido então que se começou também a pensar no que fazer aos livros e autores difamatórios, pois Névio depressa se viu preso pela sua escrita desenfreada, tendo sido posteriormente libertado pelos tribunos, após retractação. Lemos também que libelos difamatórios foram queimados e os seus autores punidos por Augusto. E idêntica severidade era, sem dúvida, aplicada a quem escrevesse algo de ímpio contra os amados deuses dos romanos. Mas, exceptuando nestes dois pontos, os magistrados eram totalmente indiferentes ao conteúdo das publicações.

E foi assim que Lucrécio pôde tranquilamente versificar o seu epicurismo para Mémio, e ainda teve a honra de se ver louvado uma segunda vez por Cícero, esse grandioso pai da nação, embora ele mesmo conteste essa opinião nos seus escritos. Nem tampouco foram a mordacidade satírica ou a crua naturalidade de Lucílio, Catulo ou Flaco, proibidas por qualquer decreto. E, no que se refere aos assuntos de Estado, apesar de a História de Tito Lívio exaltar o papel desempenhado por Pompeia, nem por isso foi interditada por Octávio César, que pertencia à facção oposta. Quanto ao facto de Ovídio ter sido desterrado por ele, já em provecta idade, devido aos poemas libertinos da sua juventude, terá sido um mero pretexto de Estado para encobrir alguma causa secreta. De resto, os livros não foram banidos nem retirados de circulação. Mas, a partir daí, a tirania tomou praticamente conta do Império Romano, de forma que não nos podemos admirar se, na maioria das vezes, foram os bons e não os maus livros a ser silenciados. E creio ter já dito o suficiente sobre o género de textos que os antigos condenavam, à excepção dos quais qualquer outro tema podia ser livremente explorado.

Por essa altura, os imperadores iam-se convertendo ao cristianismo, mas não creio que a sua disciplina nesta matéria fosse mais severa do que a que estava anteriormente em prática. Os livros dos considerados grandes heréticos eram examinados, refutados e condenados nos concílios gerais, e só depois disso proibidos ou queimados por ordem do imperador. Quanto aos escritos de autores pagãos, e a menos que se tratasse de invectivas declaradas contra o cristianismo, como no caso de Porfírio e Proclo, não encontramos registo de qualquer interdição até cerca do ano 400, num Concílio Cartaginense em que os próprios bispos foram proibidos de ler os livros dos gentios, ainda que estivessem autorizados a ler os dos heréticos – ao contrário de outros que, em épocas bem mais recuadas, eram muito mais rigorosos com os livros dos heréticos do que com os dos gentios. E já o Padre Paulo, esse grande exegeta do Concílio de Trento, observava que, até depois do ano 800, os primeiros concílios e bispos costumavam declarar apenas que livros não consideravam recomendáveis, e não iam além disso, deixando à consciência de cada um a opção de os ler ou não.

A partir daí, os Papas de Roma, assenhoreando-se a seu bel-prazer do poder político, estenderam o seu domínio aos olhos dos homens, como já antes haviam feito ao seu juízo, queimando e proibindo a leitura do que não lhes agradava. Eram contudo moderados na sua censura e não terão sido muitos os livros objecto de tal tratamento. Até que Martinho V, com a sua bula, não só proibiu como foi o primeiro a excomungar a leitura de livros heréticos; pois, por essa época, Wickliffe e Huss, cuja influência se estava a tornar terrível, foram os que primeiro levaram a Cúria Papal a adoptar medidas de proibição mais drásticas. E seria esse o caminho seguido por Leão X e os seus sucessores, até que o Concílio de Trento e a Inquisição espanhola se combinaram para engendrar, ou aperfeiçoar, esses Catálogos e Índices expurgatórios que dissecam as entranhas de muitos e bons autores antigos, numa violação pior do que qualquer outra que pudesse ser feita aos seus túmulos. E não se limitaram a matérias heréticas: qualquer assunto que não fosse do seu paladar era ou condenado numa Proibição ou directamente remetido para o novo purgatório de um índex.

Para atingir os píncaros da ingerência, a última coisa de que se lembraram foi decretar que nenhum livro, panfleto ou jornal fosse imprimido (como se S. Pedro lhes tivesse legado também as chaves da imprensa, lá de cima, do Paraíso) sem antes ser aprovado e autorizado pela mão de dois ou três frades glutões.

(...)

Vêem-se por vezes cinco Imprimaturs juntos, em ar de diálogo, na piazza de uma página de título, cumprimentando-se e fazendo vénias uns aos outros com as suas cabeças tonsuradas, enquanto deliberam se o autor, ali especado, perplexo, no rodapé da sua epístola, irá ter por destino a tipografia ou a esponja. São estes os belos responsos, são estas as queridas antifonias que tanto têm ultimamente enfeitiçado os nossos prelados e os seus capelães com o seu ressonante eco; e que nos levaram, inebriados, à alegre imitação do majestoso Imprimatur, um vindo de Lambeth House, outro da parte ocidental de S. Paulo – tão simiescamente romanizante que a palavra de ordem ainda aparece escrita em Latim, como se a erudita pena gramatical que a escreveu se recusasse a libertar tinta noutra língua; ou talvez, terão eles pensado, porque nenhuma língua vulgar era digna de expressar o sagrado conceito de um Imprimatur. Ou seria antes, assim o espero, porque o nosso Inglês, língua de homens eternamente famosos como paladinos nos combates pela liberdade, teria dificuldade em encontrar letras suficientemente servis para grafar uma tão despótica presunção?

E aqui tendes os inventores e as origens da censura de livros desvendados e reconstituídos tão linearmente quanto qualquer genealogia. Não a herdámos, que se saiba, de nenhum antigo Estado, regime ou Igreja; nem de nenhuma lei legada pelos nossos antepassados mais recuados ou próximos; nem tampouco dos modernos costumes de qualquer cidade ou Igreja reformada estrangeira – mas sim do concílio mais anticristão e da inquisição mais tirânica que se conheceu até hoje. Até aí, a admissão dos livros neste mundo fora sempre tão livre quanto qualquer outro nascimento: o fruto do cérebro não era mais asfixiado do que o fruto do ventre; nenhuma Juno invejosa se sentava de pernas cruzadas para vetar o advento do filho intelectual de um homem. Se este se revelasse, porém, um monstro, quem negará que seria justo queimá-lo ou atirá-lo ao mar? Mas que um livro, em pior situação que uma alma pecadora, tenha de comparecer perante um júri antes de vir ao mundo e submeter-se, ainda nas trevas, ao julgamento de Radamanto e dos seus acólitos antes de poder entrar no barco que o conduzirá de volta à luz, foi coisa que nunca se ouviu até essa misteriosa iniquidade, provocada e agitada pela chegada da Reforma, ter procurado novos limbos e novos infernos para incluir os nossos livros no número dos seus danados. E foi este o indigesto pitéu tão solenemente abocanhado e tão desastradamente imitado pelos nossos bispos inquisidores e seus servis capelães.

Já no que a vós se refere, Lordes e Comuns, que não sentis agora o mínimo apreço pelos indubitáveis autores deste decreto censório, e que nenhuma intenção sinistra vos animava quando fostes importunados para a sua aprovação, é algo que qualquer pessoa que conheça a integridade dos vossos actos e a forma como honrais a verdade estará pronta a asseverar.

Mas, dirão alguns, será que só por os inventores serem maus a coisa em si não pode ser boa? Não é impossível. Atendendo, porém, a que não se trata de nenhuma grande invenção, mas de uma ideia óbvia e fácil de ocorrer a qualquer homem, e que, não obstante isso, nações melhores e mais sábias do que a nossa, em todas as épocas e ocasiões, se têm abstido de usá-la, ao passo que os mais pérfidos sedutores e opressores dos homens foram os primeiros a empregá-la, sem outro propósito que não fosse dificultar e impedir a chegada da Reforma, eu sou daqueles que acreditam que seria preciso uma alquimia bem mais complexa do que Lullo jamais concebeu para sublimar algum bom uso de semelhante invenção. Todavia, a única coisa que pretendo obter com este argumento é que este seja considerado um fruto perigoso e suspeito, como seguramente merece, pela árvore de onde provém, até que me seja possível dissecar uma por uma as suas propriedades. Mas primeiro tenho de concluir, como me propus, o que devemos pensar da leitura de livros em geral, independentemente do género, e se será maior o benefício ou o prejuízo que dela advém.

(...)

Por volta do ano 240, Dionísio Alexandrino era um homem de grande reputação na Igreja pela sua piedade e sabedoria, que tinha muito por hábito combater os heréticos com aquilo que extraía dos seus livros; até que um certo presbítero lhe levantou, por escrúpulo, uma questão de consciência, perguntando-lhe como ousava ele aventurar-se por entre aqueles livros sacrílegos. O bom homem, receoso de cair em pecado, entrou de novo em debate consigo mesmo sobre o que havia de pensar; quando, de repente, uma visão enviada por Deus (é a sua própria epístola que o afirma) veio tranquilizá-lo com estas palavras: Lê todos os livros que te cheguem às mãos, pois tens discernimento suficiente para julgar com acerto e analisar qualquer tema. Dionísio, como ele mesmo confessa, acatou de imediato esta recomendação porque ela era análoga à que o Apóstolo fizera aos Tessalonicenses: Experimentai todas as coisas, conservai o que é bom. E poderia ter acrescentado outro dito memorável do mesmo autor: Para os puros, todas as coisas são puras – não apenas alimentos e bebidas, mas todo o tipo de conhecimento, seja do bem, seja do mal; o, conhecimento não pode corromper, nem consequentemente os livros, se a vontade e a consciência não estiverem já corrompidas.

Porque os livros são como as carnes e os outros alimentos: alguns são de boa, outros de má substância; e contudo Deus, numa visão insuspeita, terá dito, sem referir qualquer excepção: Levanta-te Pedro, mata e come, deixando a escolha da ementa ao critério de cada um. Para um estômago viciado, pouca ou nenhuma diferença existe entre alimentos saudáveis e nocivos; do mesmo modo que, para uma mente perversa, até mesmo os melhores livros podem inspirar actos malignos. De maus alimentos dificilmente se obterá uma boa nutrição, mesmo com o melhor dos cozinhados. Mas distinguem-se neste ponto dos maus livros, na medida em que um leitor avisado e sensato sabe usá-los de múltiplas maneiras para descobrir, refutar, prevenir e ilustrar.

(...)

Imagino pois que, quando Deus alargou a dieta universal do corpo humano, ressalvando sempre as regras da temperança, terá também deixado, como antes, ao critério de cada um a nutrição e repasto da sua respectiva mente, de molde a que cada pessoa madura pudesse exercer a sua própria capacidade de escolha.

Que grande virtude é a temperança, e que decisivo peso assume ao longo de toda a vida humana! E, no entanto, Deus confia inteiramente a administração de um tão inestimável tesouro, sem qualquer lei ou prescrição especial, ao livre arbítrio de cada pessoa adulta. Daí que, quando Ele mesmo fez cair do céu o alimento dos judeus no deserto, a ração diária de maná que a cada um deles cabia fosse mais do que suficiente para encher três vezes o mais voraz comilão. No que respeita a estas acções que entram no homem, mais do que serem produzidas por ele, não sendo, por isso, corruptoras, Deus não tem realmente por norma deixar-nos cativos de uma perpétua infância submetida a prescrições, confiando-nos antes o dom da razão para que sejamos nós mesmos a decidir dos nossos actos. Pois que pouco trabalho sobraria para a prédica se a lei e a coerção passassem a controlar tão ferreamente o que até aqui foi governado apenas pela exortação.

Salomão diz-nos que o excesso de leitura é uma fadiga para a carne; mas nem ele nem nenhum outro inspirado autor nos dizem que esta ou aquela leitura é ilícita. Ora, se Deus achasse por bem impor-nos limites nesta matéria, teria sido decerto muito mais pertinente dizerem-nos o que era ilícito em vez de cansativo. Quanto à incineração daqueles livros efésios pelos convertidos de S. Paulo, a resposta é que eram livros de magia, segundo refere o Siríaco. Terá sido um acto privado e voluntário, o que nos deixa perante uma imitação voluntária: os homens, arrependidos, queimaram livros que lhes pertenciam. Este caso não abriu caminho à nomeação de nenhum magistrado. Aqueles homens em concreto puseram determinados livros em prática; outros, talvez, poderiam tê-los lido com algum proveito.

Sabemos que o bem e o mal crescem juntos neste mundo numa quase inextricável mistura; e o conhecimento do bem está tão associado e interligado ao conhecimento do mal, tornando-se, com tantas semelhanças traiçoeiras, tão difícil discernir entre ambos, que nem aquela confusão de sementes que a Psique se viu incessantemente obrigada a joeirar e separar estaria mais caldeada. Foi da casca de uma maçã trincada que o conhecimento do bem e do mal, como um par de gémeos colados entre si, saltou para este mundo. E talvez a maldição em que Adão incorreu ao conhecer o bem e o mal tenha sido justamente essa, conhecer o bem através do mal. Considerando pois a presente condição do homem, que sabedoria pode haver na escolha, que continência na abstenção, sem o conhecimento do mal? Só aquele que é capaz de entender e considerar o vício em todas as suas seduções e aparentes prazeres, e todavia abster-se, todavia distinguir, todavia preferir o que é verdadeiramente melhor, só esse está no caminho certo para se tornar um cristão autêntico.

(...)

Uma vez, pois, que o conhecimento e a investigação do vício neste mundo são tão necessários para a constituição da virtude humana quanto o exame do erro para a confirmação da verdade, como poderemos nós com maior segurança e menor perigo explorar as regiões do pecado e da falsidade do que lendo todo o tipo de tratados e escutando todo o género de argumentos? É esse o benefício que podemos obter da leitura ecléctica de livros.

Quanto ao eventual prejuízo daí adveniente, pensa-se geralmente em três coisas. Primeiro, receia-se que a infecção alastre; só que então, por essa ordem de ideias, todo o saber humano e toda a controvérsia em matéria religiosa teriam de desaparecer da face da Terra, a começar pela própria Bíblia – que está recheada de relatos crus de blasfémias, requintadas descrições dos apetites carnais de homens perversos, imprecações encolerizadas contra a Providência proferidas por santos que para isso recorrem a todos os argumentos de Epicuro. Em outras questões de grande controvérsia, o texto bíblico dá respostas dúbias e obscuras para um leitor comum. E perguntai a um talmudista o que é que tanto afecta a modéstia do seu Keri marginal, que nem Moisés nem todos os profetas conseguem persuadi-lo a pronunciar textualmente o Chetiv. Por estas razões, todos sabemos que a própria Bíblia divulgada pelos papistas terá de ser em breve retirada de circulação, assim como Clemente de Alexandria e aquele livro de Eusébio de propedêutica evangélica, em que os nossos ouvidos são submetidos a um chorrilho de obscenidades pagãs antes de receberem o Evangelho. E quem não concordará que Ireneu, Epifânio, Jerónimo e outros descobrem mais heresias do que as que conseguem eficazmente refutar, e que tomam muitas vezes por herética a mais correcta das opiniões?

E de nada valerá dizer em relação a estes e a todos os escritores pagãos com maior poder de contágio – se assim se deve considerá-los – e aos quais se deve, em grande parte, a própria existência do saber humano, que eles escreveram numa língua desconhecida, quando sabemos perfeitamente que também nessas línguas são versados os piores dos homens, que não carecem de capacidade e diligência para instilar o veneno que sorvem, e antes de mais nas cortes dos príncipes, a quem dão a conhecer as mais requintadas delícias e condenações do pecado.

(...)

Mas, por outro lado, essa infecção procedente de livros controversos em matérias religiosas é mais problemática e perigosa para os doutos do que para os ignorantes; e, não obstante isso, esses livros têm de ser permitidos, intocados, pelo censor. Será realmente difícil apontar um ignorante seduzido por um livro papista em Inglês, a menos que este lhe tenha sido recomendado e explicado por algum clérigo católico; pois a verdade é que todos esses tratados, independentemente de serem verdadeiros ou falsos, são, tal como a profecia de Isaías para o eunuco, incompreensíveis sem um guia. Se pensarmos, porém, em quantos dos nossos eclesiásticos e doutores se deixaram corromper pelo estudo dos comentários de Jesuítas e Sorbonistas, e na rapidez com que conseguiram infundir essa corrupção no povo, veremos que a nossa experiência é simultaneamente recente e triste.

(...)

Vendo, por conseguinte, que esses livros e outros que por aí abundam, e que são os mais susceptíveis de corromper tanto a doutrina como a vida, não podem ser suprimidos sem o declínio do saber e de toda a capacidade argumentativa; e que os ditos livros de ambas as espécies mais depressa, e de sobremaneira, atraem os cultos, através dos quais quaisquer ideias heréticas ou dissolutas podem ser rapidamente transmitidas ao comum das pessoas, para já não dizer que os maus costumes podem perfeitamente ser assimilados sem livros, de mil e uma maneiras diferentes que não é possível impedir, enquanto uma doutrina maligna não se consegue propagar pelos livros sem a ajuda de um professor que a explique, coisa para a qual este não precisará de escrita, estando por isso fora do alcance de qualquer proibição – não consigo, por tudo isto, entender como é que este sistema preventivo de licenciamento da impressão poderia não pertencer ao número das empresas vãs e impossíveis. De tal modo que quem aprecie um gracejo não deixará de compará-lo à proeza daquele cavalheiro galante que julgava dissuadir a entrada dos corvos fechando a cancela do seu jardim.

Mas levanta-se ainda outro problema: se os homens cultos são os primeiros receptores dos livros e, por consequência, os disseminadores dos vícios e erros que deles absorvem, como podemos nós confiar nos próprios censores? A menos que lhes confiramos, ou que eles reclamem para si mesmos, um estatuto de infalibilidade e incorruptibilidade que os coloque acima de todos os outros cidadãos deste país. E, uma vez mais, se é verdade que um homem sagaz consegue, tal como um bom garimpeiro, extrair ouro das escórias mais impuras, ao passo que um bronco não deixará de o ser mesmo com o melhor dos livros, não existe realmente motivo para privarmos um homem inteligente de qualquer benefício para o seu saber, enquanto procuramos evitar que um estulto tenha acesso a algo cuja proibição em nada diminuirá a sua estultícia. Pois, em relação a este último, se usássemos sempre de tanto rigor para mantê-lo afastado de qualquer leitura imprópria para a sua mente, deveríamos então, não apenas no juízo de Aristóteles mas também no de Salomão e do nosso Salvador, abster-nos de lhe inculcar bons preceitos e, consequentemente, de lhe facultar bons livros – pois dúvida não há de que maior proveito tirará um sábio de um panfleto inútil do que um ignorante da Sagrada Escritura.

Argumenta-se também que não nos devemos expor desnecessariamente a tentações, nem empregar o nosso tempo em coisas vãs. Para ambas estas objecções, uma resposta bastará, à luz das razões anteriormente expostas, a saber, que esses livros não constituem tentações ou fatuidades para todos os homens, mas antes ingredientes e materiais necessários para preparar e compor remédios fortes e eficazes, que a vida humana não pode dispensar. Os restantes, como as crianças e os adultos infantilizados, que não têm a arte de distinguir e trabalhar estes minerais activos, bem podem ser exortados a evitar o seu contacto, mas nunca será possível impedi-los pela força, por mais medidas de censura que a Santa Inquisição venha ainda a engendrar. E é justamente isto que me proponho explicar em seguida: que este sistema de censura não conduz de forma alguma ao fim para o qual foi concebido. Mas quase me antecipei a mim próprio tendo sido já bastante explícito nestas explicações preliminares. Vede pois o engenho da Verdade, que, em deparando com um ambiente livre e favorável, se revela mais depressa do que os passos do método e do discurso nos podem conduzir.

Foi esta a tarefa com que iniciei a minha alocução, demonstrar que nenhuma nação ou Estado bem constituído que atribua algum valor aos livros recorreu alguma vez a este tipo de censura. Poderiam replicar-me que se trata de uma medida preventiva recentemente descoberta. Ao que eu respondo que, sendo como é uma ideia simples e óbvia, mesmo que levassem tempo a descobri-la, não faltaria quem há muito tivesse sugerido a sua aplicação. O facto de o não terem feito dá-nos a medida do seu critério, ou seja, que não terá sido uma questão de desconhecimento, mas antes de desaprovação, que os impediu de a usar.

(...)

Se pensamos em regular a impressão no intuito de regenerar os costumes, então teremos de regular também todas as diversões e passatempos, tudo quanto é aprazível para o homem. Nenhuma música deverá ser ouvida, nenhuma canção composta ou cantada, que não seja solene e dórica. Também a dança terá de ser vigiada para que não se ensine aos nossos jovens nenhum gesto, movimento ou postura para além dos que, por devida autorização, sejam considerados honestos. No que respeita a estes aspectos, estava Platão precavido. Seriam precisos mais de vinte censores para examinar todos os alaúdes, violinos e guitarras em cada casa – cumpriria estipular o que podem tocar, para que parassem de cantarolar o que calha. E quem calaria todas as árias e madrigais que se murmuram docemente nos quartos? Haveria igualmente que pensar nas janelas e balcões: há livros astutos, com frontispícios perigosos, à venda – quem os proibirá, vinte censores? As aldeias também precisariam de inspectores para averiguar das leituras dos tocadores de arrabil e gaita-de-foles, e até mesmo das baladas e pautas musicais de todos os rabequistas da paróquia, pois essas são as Arcádias e os Montemores das gentes do campo.

Para além disto, que corrupção mais nacional poderíamos apontar do que a típica destemperança inglesa, pela qual o nosso país é criticado no estrangeiro? Quem irão ser os controladores dos nossos tumultos diários? E o que irá ser feito para conter as multidões que frequentam essas casas em que se vende e fomenta a embriaguez? Também o vestuário deveria estar sob a tutela de mestres artesãos mais sóbrios, para que os nossos trajes tivessem cortes menos impúdicos. E quem regulará a convivência mista dos nossos jovens, rapazes e raparigas juntos, como é costume neste país? Quem determinará o que se deve dizer, o que se deve supor, e não mais do que isso? E, por último, quem proibirá e afastará todos os antros de ócio e más companhias? Estas coisas existem e existirão; mas saber como torná-las o menos nocivas e o menos aliciantes possível, nisso consiste a difícil ciência da governação de um Estado.

Isolarmo-nos do mundo em regimes da Atlântida ou da Utopia, que nunca poderão ser postos em prática, não melhorará a nossa condição; o que se impõe é legislar com senso neste mundo malvado em que Deus, irrevogavelmente, nos pôs. Ora, não é com a censura dos livros preconizada por Platão que o vamos conseguir, uma censura que forçosamente se estenderia a tantos outros domínios que nos deixaria a todos simultaneamente ridículos e fartos, e, todavia, frustrados; mas antes com aquelas leis não escritas, ou pelo menos não coercivas, da educação virtuosa, da formação religiosa e civil, que Platão refere como os laços e ligamentos da comunidade, pilares e sustentáculos de todos os códigos escritos. Essas leis é que são a principal barreira em matérias desta natureza, em que toda a censura será facilmente contornada. A impunidade e o descuido são, sem dúvida, a ruína de uma nação. Mas é nisto que consiste a grande arte: discernir em que domínios deve a lei impor restrições e castigos, e quais aqueles em que só a persuasão se revela eficaz.

(...)

Não conhece bem a natureza humana quem imagina afastar o pecado afastando a matéria que lhe dá azo; pois, para além de este ser como um manancial que cresce no próprio acto de se escoar, e embora uma parte dele se possa manter, durante algum tempo, afastada de algumas pessoas, não será possível afastá-lo de todas em algo tão universal como os livros; e, mesmo que se tente, o pecado permanecerá intacto. Pois a verdade é que, ainda que despojássemos um ganancioso de todo o seu tesouro, sobrar-lhe-ia uma jóia que não lhe conseguiríamos tirar, e que é a sua ganância. Bani todos os objectos de concupiscência, encerrai todos os jovens na mais severa disciplina que possa reinar num eremitério, e nem assim conseguireis tornar castos os que até aqui não o tenham sido. Daí o grande cuidado e sabedoria necessários para governar judiciosamente em tal questão. Suponhamos que conseguíamos erradicar o pecado por este meio; vede como, com a proporção de pecado que conseguíssemos expulsar, outro tanto expulsaríamos de virtude, porquanto ambos são feitos da mesma matéria. Eliminai um e, com o mesmo golpe, tereis eliminado os dois.

Assim se justifica a grande providência de Deus, que, apesar de nos ordenar temperança, justiça e castidade, expõe perante nós, e até em abundância, toda a sorte de coisas desejáveis, dotando-nos de mentes capazes de ultrapassar qualquer limite e saciedade. Porque haveríamos então de afectar um rigor contrário à maneira de Deus e da natureza, reprimindo ou restringindo esses meios, que os livros livremente editados são, de pôr à prova a nossa virtude e exercitar a verdade? Melhor seria perceber que só uma lei absolutamente frívola se propõe restringir coisas que, de um modo indeterminável, tanto podem ser usadas para o bem como para o mal. Eu, se a escolha dependesse de mim, preferiria mil vezes a miragem de um benefício ao impedimento forçado de um malefício. Pois Deus preza seguramente mais o desenvolvimento e realização de uma pessoa virtuosa do que a repressão de dez perversas.

E se é verdade que tudo o que ouvimos ou vemos, sentados, a andar, em viagem ou em conversa, pode ser, com propriedade, chamado o nosso livro e tem um efeito idêntico ao dos escritos, admitindo que a única coisa a ser proibida sejam os livros, tudo indica então que esta Ordem tem sido, até aqui, muito insuficiente para o fim que se propõe. Pois não vemos nós como, não uma vez ou algumas, mas todas as semanas, esse persistente libelo difamatório contra o Parlamento e o governo londrino é imprimido – – as suas folhas ainda húmidas de tinta aí estão para o atestar – e distribuído entre nós, sem que a censura o consiga impedir? E, no entanto, essa é a primeira área em que se esperaria que esta Ordem produzisse efeito. Se fosse executada, direis. Mas o certo é que, se a execução é remissa ou cega agora, e neste domínio concreto, como será daqui por diante e em relação a outras publicações? Se não quereis que esta Ordem se revele malograda e vã, preparai-vos pois para uma nova tarefa, Lordes e Comuns: tendes de mandar retirar e proscrever todos os livros escandalosos e não autorizados já impressos e em circulação, depois de haverdes elaborado uma lista para que todos possam saber quais os que estão ou não condenados; e ordenar que nenhum livro estrangeiro seja liberado de custódia sem antes ter sido lido da primeira à última página. Esta tarefa requererá o tempo inteiro de um bom número de inspectores, que não poderão ser pessoas vulgares. Haverá também livros que são, por um lado, úteis e até excelentes, mas, por outro, reprováveis e perniciosos; a sua destrinça exigirá outros tantos funcionários, incumbidos de expurgar e expungir os textos, para que a república das letras não sofra nenhum dano. E, para finalizar, quando uma pilha de livros se amontoar nas suas mãos, tereis de vos dispor a inventariar todos os tipógrafos que delinquíram por diversas vezes e proibir a importação de toda a produção tipográfica suspeita. Numa palavra, para que esta vossa Ordem possa ser rigorosa e não deficiente, tereis de a reformular em perfeito acordo com o modelo de Trento e de Sevilha, coisa que, bem sei, abominaríeis fazer.

Todavia, mesmo que acedêsseis em proceder deste modo, e Deus permita que não, esta Ordem continuaria infrutífera e insuficiente para o objectivo que vos levou a promulgá-la. Se foi para evitar seitas e cismas, quem será tão iletrado ou ignorante em História que não saiba que muitas seitas rejeitam os livros como um empecilho e preservam a sua doutrina em estado puro durante longos séculos, unicamente através de tradições orais? É sabido que a fé cristã, que começou por ser um cisma, se espalhou a toda a Ásia antes da escrita de qualquer Evangelho ou Epístola.

Se o fim em vista for uma reforma dos costumes, olhai para a Itália e Espanha e vede se esses países estão minimamente melhores, mais honestos, mais sábios, mais castos, desde que toda a sanha inquisitorial se abateu sobre os seus livros.

Uma outra razão pela qual se torna óbvio que esta Ordem falhará o fim visado tem a ver com a qualidade que deverá ter cada censor. É inegável que quem é nomeado juiz para decidir do nascimento ou morte dos livros, ou seja, para autorizar ou proibir a sua entrada no mundo, terá necessariamente de ser um homem acima da média, simultaneamente estudioso, culto e ponderado. Não poderá cometer erros grosseiros na avaliação do que é ou não admissível, o que acarretaria um considerável prejuízo. Em todo o caso, e mesmo admitindo que tenha a competência que se lhe exige, não poderia haver jornada de trabalho mais fastidiosa e desagradável, nem maior perda de tempo para a sua inteligência, do que ver-se convertido em perpétuo leitor de panfletos e livros impostos, por vezes calhamaços enormes. Não há nenhum livro que seja apetecível em todas as ocasiões; mas ser-se obrigado a ler a toda a hora, e em caligrafias dificilmente legíveis, livros de que em altura alguma se virariam sequer três páginas, mesmo que na melhor das letras impressas, é uma imposição que não vejo como alguém que preze o seu tempo e os seus próprios estudos, ou tenha pelo menos uma sensibilidade apurada, será capaz de aguentar. Neste ponto em concreto, peço aos actuais censores que me perdoem por assim pensar; sem dúvida que aceitaram estas funções em virtude da sua obediência ao Parlamento, cuja autoridade terá possivelmente feito com que tudo lhes parecesse fácil e ameno. Mas basta ver os seus semblantes, assim como as suas repetidas desculpas aos que têm de se deslocar inúmeras vezes para solicitar as suas licenças, para perceber que esta recente provação se está já a revelar bem desgastante.

Vendo pois que aqueles que presentemente exercem o cargo dão todos os sinais de se quererem ver livres dele; e que é altamente improvável que algum homem de valor, isto é, alguém a quem repugne o desperdício do seu próprio tempo, tenha qualquer interesse em suceder-lhes – a menos que se sinta tentado pelo salário de um revisor de imprensa – podemos facilmente antever que tipo de censores nos vão doravante caber em sorte: ignorantes, despóticos e negligentes, ou simplesmente mercenários. E era isto o que vos queria demonstrar, em que medida é que esta Ordem não pode cumprir os propósitos que presidiram à sua promulgação.

Depois de falar no benefício que não vamos alcançar, passo agora para o manifesto prejuízo que esta Ordem nos traz, por representar, antes de mais, o maior desincentivo e afronta que se pode fazer ao conhecimento e às pessoas cultas.

(...)

Quem vê ser-lhe negada a responsabilidade pelos seus próprios actos, muito embora não se lhe conheçam tendências perversas e esteja sujeito às contingências da lei e respectivas punições, não tem grandes motivos para se sentir mais apreciado no país em que nasceu do que um tolo ou um estrangeiro.

Quando um homem escreve para o público, faz apelo a toda a sua razão e capacidade deliberativa: investiga, medita, trabalha com afinco, e possivelmente consulta e troca ideias com amigos sensatos; só depois disso se considerará tão bem informado acerca do que escreve quanto qualquer outro autor que tenha abordado o mesmo tema. Ora, se neste que é o mais consumado acto do seu rigor e amadurecimento, nem os anos, nem o labor, nem as provas já dadas da sua capacidade são o bastante para lhe granjear um estatuto de maturidade isento dessa desconfiança e suspeita que o obrigam a submeter o fruto de todo o seu esforço reflexivo, das suas vigílias nocturnas e consumo de óleo paladiano, ao apressado exame de um censor assoberbado de trabalho – talvez muito mais novo do que ele, talvez menos inteligente, talvez alguém que nunca experimentou o trabalho de escrever um livro; e se, no caso de não ser rejeitado ou preterido, tem de se ver editado como um debilóide com o seu guardião, a mão do censor na lombada do livro como caução e garantia que não se trata da obra de um idiota ou embusteiro, tudo isso, enfim, não pode deixar de constituir uma desonra e um aviltamento para o autor, para o livro e para o privilégio e dignidade do saber.

E se o escritor tiver uma mente tão fértil que lhe ocorra uma série de ideias que bem valeria a pena acrescentar já depois da inspecção da censura, enquanto o livro estiver ainda a ser imprimido, o que não raramente acontece aos melhores e mais diligentes autores, talvez até uma dúzia de vezes num mesmo livro? Como o tipógrafo não se atreve a ir além do texto autorizado, o escritor tem frequentemente de se arrastar até ao seu licenciador para que este examine os novos aditamentos. E muitas jornadas terão de ser feitas até que consiga não só encontrar o homem – pois terá de ser o mesmo – como encontrá-lo disponível. Enquanto isso, ou as impressoras ficam paradas, o que representa um não despiciendo prejuízo, ou o autor acaba por renunciar ao aperfeiçoamento da obra e resigna-se a publicar um texto inferior à sua redacção final, coisa que, para um escritor empenhado, é a maior tristeza e mortificação que lhe podem acontecer.

E como poderá um homem ter autoridade para ensinar, o que é vital para o ensino, como poderá ser um mestre no seu próprio livro, como lhe cumpre ser – ou então mais valia estar calado – se tudo o que ensina, tudo o que transmite, está sujeito à tutela e correcção do seu venerando censor, que pode apagar e alterar tudo quanto não esteja em plena conformidade com esse espírito tacanho a que chama o seu juízo? Quando a verdade é que qualquer leitor perspicaz, assim que põe os olhos numa destas autorizações pedantes, só tem vontade de arremessar o livro a não sei quantos metros de distância, acompanhado de uma exclamação como esta: "Detesto mestres que não passam de discípulos, não suporto um professor que me aparece sancionado pelo punho de um fiscal. Não sei nada do censor, o que sei é que este livro tem a sua mão, marca da sua arrogância. Mas quem responde pelo seu discernimento?" "O Estado, senhor", retorque o livreiro, mas a réplica não se faz esperar: "O Estado será o meu governante, mas não o meu crítico; pode errar na escolha de um censor, com a mesma facilidade com que este se pode enganar em relação a um autor." Tudo isto é óbvio; e o leitor ainda poderia acrescentar, citando Sir Francis Bacon, que os livros autorizados representam apenas a linguagem de uma época. Pois, mesmo que um censor tenha mais discernimento do que é hábito, o que será um grande embaraço para o seu sucessor, o seu próprio cargo e dever impõem-lhe que não deixe passar nada para além do que já é correntemente admitido.

O mais lamentável, porém, é quando a obra de um autor já falecido, embora não muito célebre nem no seu tempo nem nos nossos dias, lhes vai parar às mãos por requerer licença para ser impressa ou reimpressa, e se encontra no seu texto alguma frase mais ousada, escrita no ardor do momento (e quem sabe se não lhe teria sido ditada por um espírito divino?), mas pouco condizente com o humor soturno e decrépito destes censores.

(...)

Note-se porém que, se tudo isto não preocupar séria e atempadamente aqueles que têm o poder de o remediar, e se moldes férreos como estes continuarem em posição de cortar os mais burilados parágrafos dos mais esmerados livros, e a cometer uma fraude tão pérfida contra os despojos órfãos dos mais ilustres autores já falecidos, tanto maior será a desventura dessa infortunada raça de homens cuja desdita é serem inteligentes. Daqui por diante, que ninguém se preocupe, pois, em aprender ou em conhecer mais do que as coisas prosaicas, já que, em tratando-se de matérias mais elevadas, ser-se ignorante e preguiçoso, ser-se um vulgar e perfeito pacóvio, será a única forma de vida agradável, e a única que se requer.

(...)

Não posso aceitar de ânimo leve que toda a criatividade, toda a arte e engenho, toda a profunda e sólida capacidade judicativa que existe em Inglaterra, só possam ser abarcados por uma vintena de crânios, por muito notáveis que sejam, e muito menos que não lhes seja permitido exprimirem-se sem a sua supervisão, isto é, sem antes passarem pela peneira e filtro dos seus crivos, estando assim impedidos de circular sem a sua chancela. A verdade e o entendimento não são mercadorias que possam ser monopolizadas e transaccionadas por meio de etiquetas, decretos e normas. Não podemos converter todo o saber deste país num artigo tipificado, atribuindo-lhe marca e licença, como se faz aos panos finos e aos nossos fardos de lã.

(...)

Se alguém tivesse escrito e divulgado coisas erróneas e escandalosas para uma pessoa honesta, abusando e desmerecendo da confiança dos outros na sua razão, e se, depois de condenado, tivesse por única sentença não mais publicar nada, daí por diante, que não fosse primeiro examinado por uma autoridade nomeada para o efeito, cuja assinatura atestaria da inocuidade dos seus escritos, não poderíamos, mesmo em tal caso, deixar de ver nisso uma punição ignominiosa. Donde se conclui que incluir toda a nação, todos os que nunca, até aqui, cometeram qualquer falta do género, numa proibição reveladora de tanta má-fé e tanta insegurança pode ser claramente entendido como um descrédito geral. E tanto mais que até os caloteiros e os delinquentes são livres de sair do país sem qualquer vigilância, ao passo que livros inofensivos não podem sequer dar um passo sem a presença ostensiva de um carcereiro no frontispício.

Também para o comum das pessoas constitui esta medida um autêntico vexame; pois se somos tão zelosos em relação a elas que nem ousamos deixá-las ler por sua conta e risco um panfleto inglês, o que estamos a fazer senão a tomá-las por um povo tonto, vicioso e inculto, tão ímpio e fraco de espírito que não é capaz de assimilar nada que não venha já previamente mastigado pelos censores?

(...)

Porque se estivermos seguros de que temos razão e não defendermos a verdade dolosamente, o que não é de todo conveniente, se não nos condenarmos a nós próprios pelo nosso fraco e frívolo saber, e ao povo como uma turba de vadios ímpios e ignorantes, o que poderá haver de mais justo que um homem reflectido, culto e, pelo que se sabe, de consciência tão íntegra quanto a daqueles que nos ensinaram o que sabemos, divulgar – não clandestinamente, de casa em casa, que é mais perigoso, mas abertamente, por escrito, perante o mundo, as suas opiniões, as suas razões, e o motivo por que aquilo que presentemente se pensa não pode estar certo? Cristo frisou, como que para se justificar a si mesmo, que pregava em público. Todavia, a escrita ainda é mais pública do que a Pregação e mais fácil de refutar, se necessário for, havendo tantos cuja ocupação e credo se resume a serem campeões da verdade – e, se acaso a negligenciarem, a que haveremos de atribuir a culpa senão à sua preguiça ou incapacidade?

Eis quão inibidos e destreinados nos encontramos por esta prática censória, na prossecução do verdadeiro conhecimento daquilo que aparentamos saber.

(...)

Refira-se ainda, implícito no que me propus denunciar, a incrível perda e prejuízo que este conluio censório nos inflige – pior do que se um pirata inimigo bloqueasse todos os nossos portos, baías e enseadas, esta censura retarda e impede a importação da nossa mais preciosa mercadoria, a verdade. Quer-me parecer, aliás, que este plano terá sido inicialmente concebido e posto em prática por dogma e perfídia anti-cristã, com o propósito deliberado de extinguir, se possível, a luz da Reforma e instaurar a falsidade – pouco diferindo da política com que os turcos defendem o Alcorão, ou seja, a proibição da imprensa.

(...)

A verdade, realmente, entrou outrora no mundo com o seu divino Mestre e revelou-se em toda a sua perfeição e esplendor a quem a contemplou; mas, quando Ele ascendeu aos céus e, tempo depois, também os seus Apóstolos cerraram os olhos, de imediato surgiu uma perversa raça de impostores que, como reza a história do que o egípcio Tifão e os seus conspiradores terão feito ao bom deus Osíris, agarraram na virgem Verdade, esquartejaram o seu adorável corpo em mil pedaços e arremessaram-nos aos quatro ventos. Desde então, os infelizes amigos da Verdade com coragem suficiente para se mostrarem, imitando a cuidadosa busca de Ísis pelo corpo despedaçado de Osíris, têm andado por montes e vales a recolher um a um esses pedaços, conforme os vão encontrando. Ainda não os descobrimos todos, Lordes e Comuns, nem vamos conseguir nunca fazê-lo até à segunda vinda do Messias. Será Ele quem vai reunir todos os membros e articulações para com eles moldar a imortal figura da beleza e perfeição. Não consintais pois que estas proibições censórias aproveitem a mínima oportunidade para impedir e estorvar aqueles que prosseguem a busca e que continuam a prestar homenagem ao corpo dilacerado da nossa santa mártir.

(...)

Há quem eternamente se queixe de cismas e seitas e considere uma enorme calamidade que alguém discorde das suas máximas. São o seu próprio orgulho e ignorância que deixam assim transtornados aqueles que tão incapazes se mostram de escutar serenamente como de convencer os outros. Para eles, tudo quanto não figure no seu Sintagma terá de ser suprimido. São eles os perturbadores, são eles os divisionistas, que não só negligenciam como impedem os outros de reunir esses pedaços dispersos que falta ainda restituir ao corpo da Verdade. Continuar em busca do que não conhecemos por meio do que já sabemos, ir aproximando verdade de verdade à medida que as vamos encontrando (pois todo o seu corpo é homogéneo e proporcional), eis a regra de ouro em teologia como em aritmética, mediante a qual se constitui a melhor harmonia numa Igreja – que não é a união forçada e meramente externa de mentes frias, neutras e intimamente divididas.

(...)

Onde existe grande desejo de aprender, há necessariamente muita discussão, muita escrita, muitas opiniões – pois a opinião em pessoas de bem não passa de um saber em desenvolvimento. Com estes fantasiosos terrores de seitas e cismas estamos a prejudicar a sincera e fervorosa sede de saber e compreender que Deus fomentou nesta cidade. O que alguns lamentam deveria ser para nós motivo de júbilo: deveríamos louvar esta devota diligência que leva os homens a reassumir, eles mesmos, o mal delegado cuidado da sua religião. Um pouco de generosa prudência, um pouco de indulgência para com os outros e uma pitada de caridade poderiam permitir a congregação e união de todos os esforços numa busca geral e fraterna pela verdade – assim consigamos nós abandonar esta tradição eclesiástica de aglutinar consciências livres e liberdades cristãs em cânones e preceitos humanos.

(...)

O que vos aprazeria então fazer? Eliminar toda esta florescente colheita de conhecimento e novas luzes que brotou e continua diariamente a brotar nesta cidade? Querereis instaurar uma oligarquia de vinte controladores para que as nossas mentes se vejam de novo à míngua, condenadas a nada mais receber para além da ração medida pela sua bitola? Acreditai, Lordes e Comuns, aqueles que vos aconselham uma tal supressão estão a ordenar-vos que vos suprimais a vós mesmos. E já vos vou demonstrar como. Se quisermos conhecer a causa directa de toda esta liberdade de escrever e falar, não poderemos apontar outra mais verdadeira do que o vosso brando, livre e benfazejo governo. Esta é a liberdade, Lordes e Comuns, que os vossos valorosos e bem aventurados conselhos nos proporcionaram, a liberdade que é a seiva de todos os grandes génios. Foi ela que aperfeiçoou e iluminou os nossos espíritos como a influência do céu; foi ela que alforriou, alargou e elevou as nossas capacidades, levando-as a transcender os seus próprios limites.

Não nos podeis agora tornar menos capazes, menos sabedores, menos desejosos de procurar a verdade, a menos que vos torneis primeiro a vós, que assim nos fizestes, menos amantes, menos fundadores da nossa verdadeira liberdade. Podemos tornar-nos de novo ignorantes, brutos, vácuos e servis como nos encontrastes; mas tereis então de vos converter primeiro naquilo que não podeis ser: opressores, arbitrários e tirânicos, como eram aqueles de quem nos libertastes. Se os nossos corações estão agora mais amplos, os nossos pensamentos mais dignamente orientados para a busca e expectativa de coisas mais elevadas e certas, esse é o resultado da vossa virtude disseminada em nós. Não podeis suprimi-la, a não ser reintroduzindo aquela abolida e impiedosa lei segundo a qual os pais podiam matar os próprios filhos, se assim lhes aprouvesse. E quem irá então colocar-se do vosso lado e incitar os outros a fazer o mesmo?

(...)

Embora eu não critique a defesa de privilégios justos, prezo mais a minha paz, se a questão se resumisse a isso. Concedei-me pois, acima de qualquer outra, a liberdade de saber, falar e discutir sem constrangimentos, de acordo com a minha própria consciência.

Qual seria então o melhor procedimento a adoptar, se concluirmos que é tão nefasto e injusto suprimir opiniões pela sua novidade ou inadequação ao comummente aceite, não me compete a mim dizer.

(...)

E agora é mais que nunca tempo de exercermos o privilégio de escrever e dizer tudo o que possa contribuir para o aprofundamento das matérias em discussão. O templo de Jano, com as suas duas faces contrárias, poderia ficar agora justificadamente aberto. E ainda que todos os ventos da doutrina soprassem desenfreadamente sobre a Terra, enquanto a Verdade se mantiver de pé, faremos mal, com censuras e proibições, em duvidar da sua força. Deixemo-la digladiar-se com a Falsidade. Quem alguma vez ouviu dizer que a Verdade saísse vencida de um confronto livre e aberto? A sua refutação é a melhor e a mais segura das supressões.

(...)

Mas que espécie de conluio é este, em que os sábios nos exortam a que sejamos diligentes e incessantemente procuremos o saber como tesouros escondidos, e uma outra ordem nos vem ditar que não conheçamos mais nada para além do instituído por decreto? Quando um homem se entregou à mais dura das labutas nas fundas minas do conhecimento, guarneceu as suas descobertas de todos os instrumentos necessários, enfileirou as suas razões como se avançasse para uma batalha, dispersou e venceu todas as objecções com que deparou; e chamou depois os seus adversários a terreiro, oferecendo-lhes a vantagem do vento e do sol, se eles assim desejassem, na condição apenas de julgarem a questão pela força dos argumentos: acontecer então que os seus oponentes se escondam, armem ciladas, mantenham apenas uma estreita ponte franqueada por onde o desafiador terá de passar, tudo isso, ainda que possa ser considerado valentia suficiente na arte da estratégia militar, não passa de fraqueza e cobardia nas guerras da Verdade.

Pois quem é que não sabe que a Verdade é forte, próxima do Todo-Poderoso? Não precisa de tácticas nem de estratagemas, nem de licenças para sair vitoriosa – esses são os expedientes e defesas de que o erro se serve contra o seu poder. Dá-lhe espaço e não a prendais enquanto dorme, pois ela aí não falará verdade como o velho Proteu, que só se transformava em oráculo quando o prendiam e amarravam; mas antes assumirá todas as formas, excepto a que lhe é própria, e talvez até afine a sua voz consoante a ocasião, como Miquéias diante de Acaz, até que um esconjuro a faça reassumir o seu próprio semblante. Não é contudo impossível que a Verdade possa ter mais do que uma forma. Pois que significa toda essa categoria de coisas indiferentes, em que a Verdade tanto pode estar deste lado como do outro sem diferir de si mesma?

(...)

Temo, porém, que este jugo férreo de uma conformidade exterior nos tenha deixado uma marca de escravidão no pescoço. O fantasma do imaculado lençol da decência continua a assombrar-nos. Tropeçamos e impacientamo-nos à menor divergência entre duas congregações, mesmo que não incida em nada de fundamental. E, na nossa prontidão em suprimir, e morosidade em resgatar qualquer parcela de verdade aprisionada no punho do inspector dos costumes, não nos importamos de manter as verdades separadas umas das outras, o que constitui a mais violenta forma de ruptura e desunião. Não vemos que, apesar de continuarmos, por todos os meios, a afectar uma rígida formalidade externa, podemos estar prestes a cair de novo numa estupidez crassa e conformista, num conglomerado rígido e mortalmente gélido de madeira, feno e restolho, amalgamado e congelado em bloco, o que contribui mais para a rápida degeneração de uma Igreja do que muitas subdicotomias de cismas sem importância.

Não que eu aprove qualquer separação leviana, ou que possamos esperar que tudo numa Igreja seja ouro, prata e pedras preciosas. Não é possível para o homem separar o trigo do joio, o bom peixe do demasiado miúdo; essa tarefa incumbirá aos anjos no fim do mundo mortal. Todavia, se nem todos podem ser da mesma opinião – e quem considera que deveriam? – será sem dúvida mais salutar, mais prudente e mais cristão que muitos sejam tolerados do que todos compelidos. Não quero com isto dizer que se tolere o papismo, uma pura superstição que, por exterminar todas as outras religiões e prerrogativas civis, deveria ele mesmo ser exterminado, contanto que primeiro se usasse de todos os meios caridosos e compassivos para convencer e recuperar os fracos e os desencaminhados. Também aquilo que é ímpio ou mau, absolutamente contrário à fé ou aos costumes, lei nenhuma que não queira ser, ela mesma, ilegítima poderá jamais permitir. Aquilo a que me refiro é àquelas diferenças limítrofes, ou melhor, indiferenças, seja nalgum ponto da doutrina, seja da disciplina, e que, por muito numerosas que sejam, não têm de interromper a unidade do Espírito, contanto que consigamos encontrar entre nós o vínculo da paz.

Enquanto isso, se alguém escrever e prestar o seu valioso contributo a esta lenta Reforma à luz da qual laboramos, se a Verdade se tiver comunicado a ele antes de a outros, ou tiver pelo menos parecido fazê-lo, quem nos terá tornado tão jesuíticos que vamos incomodar esse homem, exigindo-lhe que peça licença para um acto tão meritório? Para já não dizer que, em tratando-se de proibições, nada está mais sujeito a ser proibido do que a própria verdade, cuja primeira aparição ante os nossos olhos, turvos e toldados pelo preconceito e pelo hábito, a faz parecer mais distorcida e implausível que muitos erros, do mesmo modo que uma grande pessoa pode ter muitas vezes um aspecto insignificante e desprezável. E como é que nos vêm enfatuadamente falar em opiniões inéditas, quando a própria opinião deles, de que só os que lhes agradem se podem fazer ouvir, é a mais deplorável e inusitada de todas as opiniões; e é a principal razão de as seitas e cismas tanto proliferarem, e de o verdadeiro saber se manter fora do nosso alcance – isto sem falar ainda num perigo maior que esta censura comporta.

Quando Deus sacode um reino com fortes e salutares comoções, visando uma reforma geral, é verdade que muitos sectários e falsos professores andam então mais atarefados do que nunca a aliciar quem podem; mas ainda é mais verdade que nessa ocasião, Deus convoca para o Seu próprio trabalho homens de raras capacidades e um zelo fora do comum, não apenas para olhar em retrospectiva e rever o que até aí se ensinou, mas também para empreender novas conquistas avançando mais alguns passos esclarecidos na descoberta da verdade. Pois que é esta a ordem que Deus segue para iluminar a sua Igreja: outorgar e distribuir gradualmente a Sua luz, de maneira a que os nossos olhos terrenos tenham mais facilidade em suportá-la.

Tampouco designa e circunscreve Deus onde e a partir de que lugar serão os seus eleitos primeiramente escutados; pois Ele não vê como o homem vê, não escolhe como o homem escolhe, para que não nos devotemos uma vez mais a determinar lugares, assembleias e vocações humanas fictícias, cultivando a nossa fé hoje na velha casa da Convocação e amanhã na Capela de Westminster – quando toda a fé e religião que aí serão canonizadas não são suficientes sem uma persuasão directa e a caridade de uma instrução paciente, capaz de aliviar o menor traumatismo da consciência e catequizar o mais humilde cristão que deseje caminhar no Espírito e não na letra da confiança humana, por muito numerosas que sejam as vozes que aí se façam ouvir – não, não bastaria nem mesmo que o próprio Henrique VII, que ali jaz rodeado pelas tumbas de todos os seus vassalos, lhes emprestasse vozes dos mortos para aumentar o seu número.

E, se aqueles que aparentam ser os principais heresiarcas estiverem afinal errados, que outro obstáculo que não a nossa inércia, a nossa obstinação e a nossa falta de confiança na justa causa nos impede de nos encontrarmos gentilmente com eles e, com não menos gentileza, os mandarmos simplesmente embora, assim como de discutir e analisar aprofundadamente as questões com uma assembleia regular de espíritos progressistas, se não no interesse deles, pelo menos no nosso? Pois que ninguém que tenha provado o conhecimento deixará de reconhecer os múltiplos benefícios colhidos através daqueles que, não contentes com receitas mofentas, são capazes de conceber e propor novas ideias ao mundo. E mesmo que esses homens não fossem mais que o pó e a cinza dos nossos passos, atendendo a que, nessa qualidade, poderiam servir ainda para arear e polir a armadura da Verdade, não seriam, quanto mais não fosse por isso, inteiramente de descartar. Mas se forem antes daqueles que Deus muniu, por exigências próprias deste tempo, de notáveis e abundantes dons, que não se encontram talvez nem entre os sacerdotes nem entre os fariseus, e nós, na precipitação de um irreflectido zelo, não fizermos qualquer distinção e corrermos a calar-lhes a boca, no receio de que venham com novas e perigosas opiniões – já que temos por hábito julgar antes de compreender – ai de nós, então, que, pensando defender assim o Evangelho, mais não fazemos que persegui-lo.

Desde o começo deste Parlamento, não terão sido poucos aqueles, membros ou não do presbitério, que com os seus livros não autorizados, desdenhando um Imprimatur, conseguiram quebrar a tripla camada de gelo que nos envolvia o coração e iluminar o espírito do povo. Espero que nenhum deles seja responsável pelo regresso desta servidão que eles próprios tão bem fizeram em desprezar.

(...)

Uma coisa sei: tanto os bons como os maus governos estão quase identicamente sujeitos a cometer erros; pois que magistrado não corre o risco de estar mal informado, e muito mais ainda quando a liberdade de imprensa se vê manietada pelo poder de uns poucos? Mas corrigir pronta e voluntariamente aquilo em que se errou e, na mais alta autoridade, apreciar mais uma simples exortação do que outros uma sumptuosa noiva, essa é uma virtude (ilustres Lordes e Comuns) condizente com as vossas mais elevadas acções e que apenas se encontra à altura dos maiores e mais sábios dos homens.

Excertos do famoso discurso liberal Areopagítica (1644), do poeta inglês John Milton (1606-1674).

A presente tradução de Benedita Bettencourt encontra-se publicada (com prefácio e notas explicativas) pela Almedina, a quem agradecemos a gentil permissão para a inclusão destes excertos na nossa Biblioteca.

O ensaio original em inglês pode ser consultado aqui.

Seleção de excertos: Pedro Almeida Jorge.

Colaboração na transcrição: Manuel Morgado e Nuno Quintão.

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