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Contra o Absolutismo da Centralização

Alexandre Herculano

Autores Portugueses, Excertos e Ensaios, Autoritarismo e Totalitarismo, História, Filosofia Política, Direito e Instituições, Governo, Finanças Públicas e Tributação

Português

"(…) Vinde cá, defensores do absolutismo, quem vos deu o direito de falardes desta nobre terra de Portugal nos tempos em que era livre?

(…) Em Portugal o despotismo é que é moderno, e a liberdade antiga. Cerrai de todos os olhos, vós que amais curvar-vos ante um senhor dos vossos bens e das vossas cabeças.

(…) Em que dia desceu este do céu (…) para ordenar aos seus escribas que rasgassem centenas de pactos constitucionais, onde estavam escritos os foros e liberdades desta terra; centenas de pactos municipais, onde estavam consignadas as liberdades e garantias das cidades e vilas do reino?

Em que dia desceu o direito divino a santificar a conversão em simples leis fiscais, dos códigos em que se continham as imunidades e franquias populares, cujo espírito sempre e cuja letra muitas vezes provam que esses códigos eram rigorosos contratos políticos, livremente oferecidos e aceites?

(…) Respondei, defensores do absolutismo! Que eram os nossos parlamentos até 1480, senão as assembleias onde o povo protestava sempre, ameaçava não raro, e castigava algumas vezes cerrando as bolsas, as quebras do que, na linguagem imperfeita daquelas eras, chamava os seus privilégios, e que nós chamamos direitos e garantias políticas?

(…) No que era novo, nas medidas administrativas, ou nas leis civis que a civilização mostrava úteis ou justas, o povo limitava-se a discutir a sua conveniência; mas no que feria o pacto fundamental das cidades e vilas, ou aquela parte do direito consuetudinário, homologado conjuntamente com a carta municipal, e que representava direitos políticos, opunha-se tenazmente à inovação.

Quando as acusações dos povos apontam a ofensa de garantias, a reparação, ou a promessa solene dela não falha, porventura, uma só vez, nas actas das cortes dos antigos tempos.

Assim, a liberdade popular estribava-se não tanto nos parlamentos como nos forais, e a garantia dos princípios contidos nestes era a estrutura robusta dos corpos municipais. Os concelhos eram a organização da democracia contra os poderosos, que só entravam nesses grémios políticos por concessões raras, condicionais, difíceis de obter, sobretudo nos tempos primitivos.

[Depois] os concelhos não foram mais daí avante do que um instrumento de governo e uma divisão territorial e administrativa. Cessou entre nós o direito político do povo, e reinou despeitado o absolutismo.

(…) a centralização tem-se tornado cada vez maior; de modo que o poder municipal, o mais vivaz, o mais activo, o mais popular de todos os poderes, tem perdido a maior parte da sua importância. Entre nós, por exemplo, onde esse poder fez prodígios, hoje não se faz ele sentir quase. Todos os interesses que deviam ser zelados por municípios estão à mercê de um ministro que reside em Lisboa, e que nem os conhece, nem devidamente os aprecia. Daqui resulta o predomínio da capital sobre as províncias, a pouca vida política destas, a sua anulação, e quase nenhuma acção sobre os negócios públicos; enfim, daqui vem a influência funesta de certos homens que, colocados pelo acaso, ou pelos cálculos da sua ambição, no foco onde se concentram todos os poderes, lançaram mão deles, e subjugam por este modo o reino, que pode, mas que já lhes não sabe resistir.

Ora nós entendemos que essa centralização demasiada é incompatível com a verdadeira liberdade. Dela resulta a formação de partidos que, imitando na sua organização a forma administrativa do país, estabelecem também uma centralização sua própria, adoptam chefes a quem obedecem, muitas vezes sem apreciarem as boas ou más qualidades desses chefes, e em vez de olharem os interesses reais do país e trabalharem para eles voltam os olhos para o centro do partido, e esperam que ele lhes indique o que hão-de fazer, e até o que hão-de pensar.

A existência de centros dos partidos é funesta: mas ela não é a causa, é a consequência da centralização administrativa.

(…) O que nos parece que saberemos é apreciar melhor do que o adversário quais são os efeitos benéficos da centralização, e o que é e o que vale a democracia centralista. Por esta parte é que esperamos na justiça da nossa causa, que é a causa da liberdade e das maiorias contra as minorias opressoras, que saberemos responder triunfantemente. Pedimos uma pouca de indulgência e de tempo ao jornal que nos combate. Hoje temos de expor como nós vemos a salvação da nacionalidade numa descentralização sensata.

Aceitamos a designação de municipalista; aceitamo-la da boca da democracia. Toca-nos provar que o municipalismo, instituição tão antiga, tão permanente como as sociedades, embora enfraquecida e até anulada em várias épocas pelos diversos despotismos, vale infinitamente mais do que as aspirações democráticas; que ele nos oferece o único meio possível de mantermos a nacionalidade, ao passo que seria o mais poderoso instrumento de uma liberdade verdadeira, convertendo o Governo representativo, de uma imensa decepção, numa realidade prática.

(…) Mais exacto de ordinário nas suas expressões que as classes elevadas, ele fala muitas vezes na sua terra, nunca na sua pátria. É que a primeira palavra corresponde-lhe a uma ideia; é a tradução de uma coisa possível, compreensível, simpática para ele: a segunda representa-lhe uma coisa abstracta, vaporosa, vaga, que não diz nada nem à sua limitada inteligência, nem ao seu coração.

A ideia complexa de pátria concebem-na as classes superiores, cujos horizontes intelectuais são mais vastos, e entre as quais a faculdade da generalização se desenvolve desde a meninice, pela educação e pelo hábito, ao lado dos sentimentos, que aliás lhe são comuns com o povo a esse respeito. São elas que constituem o laço desses diversos patriotismos locais, que lhes dão unidade, que sem os destruir os organizam para estribar sobre eles o sentimento geral da nacionalidade.

Debaixo deste aspecto, puramente moral e político, o município não é mais do que o símbolo, a manifestação organizada da pátria popular, do mesmo modo que a sociedade geral, o Estado, é a expressão, a fórmula do patriotismo das inteligências educadas e desenvolvidas. Desprezar ou destruir a primeira fórmula é isolar o homem do povo, é enfraquecer o seu verdadeiro estímulo de nacionalidade; é excluí-lo moralmente da vida pública; é sob certas relações privá-lo dos foros de cidadão; é contrariar nele os elementos da fixação e da sociabilidade.

Considerado a outra luz, o município é também a fórmula de unidade, de simpatia, entre as moléculas sociais, entre a família e a família.

(…) Como o Evangelho se adapta a todas as civilizações, o município adapta-se a todas as organizações sociais. Ao passo que se definha e desaparece onde o despotismo da monarquia, ou o despotismo da democracia, chegaram à exasperação da demência, e deixaram de ser fórmulas de organização social, ele se torna mais robusto nas sociedades que se devem considerar mais perfeitas, seja qual for a singularidade das suas instituições, por se respeitarem aí mais do que em parte alguma os direitos e a liberdade dos cidadãos.

(…) As nações constituídas deste modo deplorável oferecem facilidades maravilhosas a todas as acções deletérias que sobre elas hajam de actuar. As guerras de invasão e conquista reduzem-se a submeter uma capital, ou quando muito duas ou três cidades principais; as revoluções não precisam senão de triunfar nos grandes centros de população pelas adesões da plebe acumulada nestes focos de corrupção, e pelas adesões da força pública ordinariamente aí acumulada também em grande parte.

(…) Imaginai, porém, um país de descentralização, de municipalismo: imaginai Londres tomada por um exército inimigo, ou revolvida por uma revolução social. Que aconteceria? A Inglaterra sofreria perdas enormes, muitas delas talvez irreparáveis; mas a vida pública, a nacionalidade, a monarquia representativa, ficariam de pé. A vida politica descentralizada, pelos condados e pelos burgos, daria dentro de certo tempo uma resposta tremenda à conquista ou à revolução. Aplicai a Washington a mesma hipótese, e estai certos de que o resultado seria análogo. Agora, que a história de França nos últimos sessenta anos vos diga os efeitos de uma centralização exagerada, da raquítica existência das suas comunas insignificantes, colocadas absolutamente fora da esfera política, quase nulas administrativamente. A França não tem feito durante sessenta anos senão ser republicana, imperial ou monárquica à mercê das batalhas que se ganham ou se perdem nas ruas de Paris.

(…) Para vigorarmos e tornarmos indestrutível o princípio da nacionalidade, e ao mesmo tempo convertermos numa realidade o Governo representativo, cumpre ampliar as funções da magistratura municipal, e assentar esta magistratura sobre uma larga base eleitoral; cumpre criar no país os hábitos da vida pública, desterrar a indiferença política do povo, resultado de uma tutela absurda. É necessário abrir o campo às ambições locais, que, não podendo representar num teatro obscuro, de que aliás se contentariam, vêm alistar-se nas fileiras das facções; é necessário que os interesses colectivos dos pequenos grupos de população tenham uma representação enérgica e robusta. Só assim se restaurará o sentimento da nacionalidade; só assim se levantarão barreiras insuperáveis a uma absorção que é o sonho querido de todos os estadistas espanhóis e talvez o único ponto de política externa ou interna em que no reino vizinho estão acordes todos os partidos.

(…) A centralização é a pirâmide hierárquica tendo por vértice o ministério e por base os cabos da polícia e os esbirros administrativos e fiscais. Este belo invento herdou do absolutismo todos os farrapos da púrpura que as ideias e as revoluções tinham rasgado, e cerziu com eles um trajo novo. Não lhe escapou nada. Combatido pela razão, o absolutismo, quando se dignava discutir, atirava à cara da lógica e dos princípios de direito um tropo de retórica: comparava a sociedade a um homem, cujos membros são regidos pela cabeça, ao mundo alumiado por um Sol, etc., e lardeava estas sandices com as ampliações safadas que extraía de sermões capuchos. Até isto lhe herdou a centralização. Ouvi os centralistas; rompei o invólucro de palavras sonoras, da fraseologia moderna, e achareis constantemente no âmago da sua argumentação o tropo absolutista e a amplificação capucha. Tudo o mais são arabescos, cuja significação é nula.

(…) Se há um Parlamento, dissolve-se. O Parlamento que cai por uma destas revoluções é faccioso sempre, e o novo poder quer apelar para o voto nacional. (…) A nova administração entusiasta da verdade eleitoral recorre à urna, e convoca os comícios populares. Mas o povo é ignorante; não alcança as boas doutrinas e podem desvairá-lo os mal-intencionados e facciosos, o que em frase de Diário significa toda a gente que não está no poder ou com o poder. Para evitar tamanha desgraça, o Ministério chama os governadores civis, os governadores civis chamam os administradores de concelho e escrivães de fazenda, os administradores de concelho e escrivães de fazenda chamam os regedores de paróquia, os regedores chamam os cabos de polícia. Desde o vértice até à base do funcionalismo, tudo se agita, tudo viaja, tudo corre, tudo segreda, tudo murmura; o país é comparável a um enorme queijo Stilton reduzido àquele estado em que o paladar inglês o acha delicioso: move-se porque se movem os cardumes de vermes que lhe devoravam o âmago.

(…) E a esta pressão imensa e directa vem ajuntar-se a outra indirecta, mas não menos forte, e que torna irresistível a acção do poder sobre as consciências e sobre a liberdade individual dos cidadãos. É a corrupção, a gangrena moral dos espíritos, mas dos espíritos mais inteligentes, mais activos, mais ambiciosos, mais inquietos. A centralização põe no vértice da hierarquia administrativa a concessão de todos os cargos retribuídos, depois de viciar os gratuitos na sua base eleitoral.

(…) Pensais que evitareis a subserviência acomodando-vos com os poucos e humildes cargos municipais? Enganais-vos: o Governo dissolverá a câmara que vos despachou, e porá lá uma comissão municipal, que vos substitua por um homem de confiança. Servi mal, roubai, praticai violências; mas elegei e fazei eleger bem: sereis inamovíveis. Sede honesto, justo, zelador; mas elegei ou fazei eleger mal: sereis transferidos, suspenso e processado se exerceis um cargo legalmente inamovível; sereis demitido, perseguido, a vexado se o vosso cargo é amovível. Os governos têm profundo amor e veneração profunda ao princípio electivo: querem-no bem morigerado, amigo de todas as ordens actuais de coisas, obediente aos poderes que felizmente nos regem.

(…) É necessária uma revolução política para arrancar do espírito público o amor da centralização! Vós sonhais com revoluções. É um mau hábito. Uma revolução política para alterar o mecanismo administrativo seria na verdade coisa singular! A que chamais vós espírito público? Se é o dos grupos que se formam à roda de qualquer poder, decerto esses adoram a centralização;

(…) há um interesse centralizador de facto, que é diverso dos interesses locais, e que pode estar em oposição com eles. Sabíamo-lo no nosso modo de ver, porém, a autoridade, o poder central, deve ser unicamente a expressão, o resumo, a manifestação, da actividade dos interesses locais, em tudo aquilo em que cada urna deles não pode individualmente manifestar-se, em tudo aquilo em que é necessário limitar o direito de acção de uma localidade, para que não tolha o direito de acção de outra. Até aí a centralização deve existir; porque, longe de ser uma força independente, não é senão o fascículo daquelas porções das diversas actividades locais que precisam de funcionar juntas e acordes, para mutuamente se não anularem. A centralização legítima é um efeito, não uma causa; estriba-se numa ideia negativa, e os seus limites são flutuantes, mudáveis.

(…) A centralização democrática não tem força para a fazer proferir heresias. A nacionalidade, dizeis vós, criou-se à sombra e sob o influxo da centralização! Como é isto? Portugal nasceu e constituiu-se no século XI; a centralização como vós a entendeis, mas menos exagerada, organizou-se nos fins do século XV e começos do XVI. A constituição da nacionalidade deveu-se toda à época municipal.

(…) Perguntais-nos até que ponto haverá concentração de autoridade, e em que limites ficarão obrigados os concelhos a auxiliar o poder central. Esta pergunta é pueril. Quereis que nas colunas de um periódico vos escrevamos dois volumes de direito públicos? (…) Nós proclamamos o direito da descentralização em antinomia com o vosso da centralização absolutista-imperial-democrática. Esse princípio traduzimo-lo e fixámo-lo na seguinte fórmula:

A administração da localidade pela localidade deve chegar até o último limite em que não repugna no direito das outras localidades constituídas uniformemente. A administração central abrange tudo o que fica além desses limites no regime prático da sociedade. Adoptada esta base, resta examinar bem os factos sociais, apreciá-los pelos princípios gerais de direito, referi-los à fórmula e ter lógica.

(…) A expressão mais completa da centralização, o absolutismo, invalidou pois as três fórmulas fundamentais da liberdade, as três garantias capitais da sociedade, cujos fins devem ser o predomínio da razão e da justiça. No legislativo invalidou os parlamentos, no administrativo os municípios, no judicial o júri. O movimento de centralização abrangeu os três aspectos principais da sociedade. Foi assim definitivo e completo.

(…) Convencidos de que nada há mais fatal para a liberdade do povo do que as ideias de democracia absoluta e exclusiva da escola a que pertence o nosso adversário, dizemos-lhe que também nos há-de encontrar no campo no dia em que virmos que as suas ideias têm algumas probabilidades de realização, e esperamos em Deus que havemos de combater com vantagem pelo povo contra a última tirania que ameaça as sociedades, tirania tanto mais perigosa quanto é certo que, vestida com o burel popular, esconde debaixo dele o ceptro de ferro, e ilude com os sonhos de uma igualdade política impossível, e com uma fraternidade que o Evangelho ainda não pôde tornar prática e positiva em dezoito séculos, não só ânimos vulgares, mas também inteligências elevadas e cultas."

Composição realizada por Carlos Novais de textos incluídos em Alexandre Herculano – Opúsculos, Tomo I, Edição de Joel Serrão, Livraria Bertrand, 1983.

Seleção originalmente publicada no semanário Domingo Liberal.

Cortesia Causa Liberal.

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