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Da Independência do Parlamento

David Hume

Filosofia Política, Direito e Instituições, Governo, Finanças Públicas e Tributação, Clássicos, Escolha Pública, Sociologia, Excertos e Ensaios

Português

Os autores políticos estabeleceram como máxima que, na instituição de qualquer sistema de governo e na fixação dos diversos freios e controlos constitucionais, todo e qualquer homem deve ser considerado um velhaco, que tem como fim único de todas as suas acções o interesse pessoal. É por intermédio deste interesse que devemos governar os homens, e através dele obrigá-los, apesar da sua insaciável avareza e ambição, a contribuir para o bem comum. Sem isso, dizem eles, será inútil gabarmos as vantagens de qualquer Constituição, e acabaremos finalmente por descobrir que a segurança das nossas liberdades e posses depende apenas da boa vontade dos governantes; ou seja, que não temos segurança alguma.

Que todo e qualquer homem deve ser considerado um velhaco é, portanto, uma máxima política acertada; embora ao mesmo tempo pareça um pouco estranho que uma máxima que de facto é falsa seja verdadeira em política. Mas, para resolver satisfatoriamente este problema, devemos lembrar que os homens são geralmente mais honestos na vida privada do que na vida pública, e que são capazes de ir mais longe para servir um partido do que quando apenas estão em causa os seus interesses pessoais. Nas acções humanas a honra constitui um freio importante, mas este freio é em larga medida eliminado sempre que um grupo bastante grande age em conjunto; pois cada um está certo de ser aprovado pelo seu próprio partido, em tudo o que seja favorável ao interesse comum, e depressa aprende a desprezar os protestos dos adversários. Ao que podemos acrescentar que em todos os senados ou assembleias as decisões são tomadas por maioria de votos, e assim basta que a maioria se deixe levar pelo interesse pessoal (como sempre sucederá) para que todo o senado se deixe arrastar pela sedução deste interesse separado, e proceda como se nem um só dos seus membros tivesse o menor respeito pela liberdade e pelo interesse da nação.

Quando portanto a nosso exame e censura é apresentado qualquer plano de governo, real ou imaginário, em que o poder esteja distribuído entre as várias assembleias e ordens, devemos sempre levar em conta o interesse separado de cada assembleia e de cada ordem; e se verificarmos que, graças a uma hábil divisão do poder, esse interesse terá efeitos necessariamente coincidentes com o interesse público, podemos concluir que esse é um governo sábio e feliz. Se, pelo contrário, os interesses separados não forem freados nem orientados no sentido do bem público, não podemos esperar de tal governo senão discórdia, desordem e tirania. Esta minha opinião é justificada pela experiência, assim como pela autoridade de todos os filósofos e políticos, tanto antigos como modernos.

Como teria portanto ficado surpreendido um génio como Cícero ou Tácito, se lhe dissessem que numa época futura surgiria um equilibrado sistema de governo misto, no qual a autoridade estaria distribuída de modo tal que uma das ordens, sempre que lhe aprouvesse, poderia absorver todo o resto e apoderar-se de todo o poder da Constituição! Tal governo, diriam eles, não seria um governo misto; pois tão grande é a ambição natural dos homens, que eles nunca estão satisfeitos com o poder, e que, se uma das ordens, em defesa dos seus próprios interesses, pudesse usurpar o poder de todas as outras, ela sem dúvida assim faria, assumindo a autoridade mais absoluta e incontrolável que fosse possível.

Mas a experiência mostra que essa opinião seria errónea. Pois é esse efetivamente o caso da Constituição britânica. A parcela de poder que a nossa Constituição atribui à Câmara dos Comuns é tão grande, que esta dirige de modo absoluto todas as outras partes do governo. É evidente que o Poder Legislativo do rei não a pode controlar adequadamente, porque, embora o rei tenha direito de sanção na elaboração das leis, esse direito é de facto considerado tão pouco importante que tudo que for votado pelas duas câmaras será com certeza transformado em lei, e o consentimento real é pouco mais do que uma formalidade. A principal força da coroa reside no Poder Executivo; mas, além de em qualquer governo o Poder Executivo estar inteiramente subordinado ao Legislativo; além disso, repito, o exercício desse poder exige uma despesa imensa; e os Comuns reservaram exclusivamente para si o direito de distribuir verbas. Como não seria fácil àquela Câmara, portanto, arrancar à coroa todos esses poderes, um após outro, impondo condições a troco de cada distribuição de verbas, e escolhendo tão bem as ocasiões que a sua recusa apenas criasse dificuldades ao governo, sem dar às potências estrangeiras qualquer vantagem sobre nós? Se a Câmara dos Comuns estivesse em idêntica dependência em relação ao rei, e só por sua dádiva os membros da Câmara tivessem prioridade, acaso não seria ele quem tomaria as decisões, tornando-se a partir desse momento um monarca absoluto? Quanto à Câmara dos Lordes, esta constitui um poderosíssimo apoio para a coroa, na medida em que por sua vez é apoiada por esta; mas tanto a experiência como a razão nos mostram que ela não possui força nem autoridade suficiente para se manter por si só, sem o referido apoio.

Como poderemos então resolver este paradoxo? E através de que meios este membro da nossa Constituição é mantido dentro dos devidos limites, quando, de acordo com a própria Constituição, deve necessariamente possuir todos o poder que exigir e só por si mesmo pode ser limitado? Como pode isto ser compatível com a nossa experiência da natureza humana? A resposta é que neste caso os interesses do conjunto são refreados pelos dos indivíduos, e que a Câmara dos Comuns não amplia os seus poderes porque essa usurpação seria contrária aos interesses da maioria dos seus membros. A coroa tem à sua disposição um tal número de cargos que, quando apoiada pela parte honesta e desinteressada da Câmara, sempre poderá orientar as decisões do todo, pelo menos em medida suficiente para livrar de período a antiga Constituição. Podemos, portanto, dar a esta influência o nome que nos aprouver; podemos dar-lhe as odiosas designações de corrupção e dependência; de qualquer modo, um certo grau ou certa espécie dela é inseparável da própria natureza da Constituição, e necessária para a preservação do nosso governo misto.

(...)

Todos os problemas relativos ao justo meio termo entre extremos são difíceis de resolver, tanto por não ser fácil encontrar palavras adequadas para definir esse meio termo, como por nesses casos o bem e o mal se distinguirem um do outro de maneira tão gradual, que chegam até a tornar duvidosas e incertas as nossas opiniões. Mas no problema em questão há uma dificuldade peculiar, capaz de embaraçar o mais sábio e imparcial dos juízes. O poder da coroa sempre reside numa única pessoa, seja rei ou ministro; e, como esta pessoa pode ter um grau maior ou menor de ambição, capacidade, coragem, popularidade ou fortuna, o mesmo poder que é excessivo em umas mãos pode ser demasiado reduzido em outras. Nas repúblicas puras, onde a autoridade é distribuída entre diversas assembleias ou senados, os freios e controlos constitucionais actuam de maneira mais uniforme, pois é ilícito supor-se que os membros dessas numerosas assembleias têm sempre qualidades e virtudes aproximadamente idênticas, sendo apenas levados em consideração o seu número, riqueza ou autoridade. Mas uma monarquia limitada não pode permitir tal estabilidade, nem é possível atribuir à coroa um grau de poder rigorosamente definido, capaz de estabelecer adequadamente, em quaisquer mãos, um sólido equilíbrio com as outras partes da Constituição. É esta uma desvantagem inevitável, entre as muitas vantagens oferecidas por essa forma de governo.

Excertos do Cap. VI da Parte I dos Ensaios Morais, Políticos e Literários (1758) do filósofo escocês David Hume (1711-1776), aqui em tradução de João Paulo Monteiro, publicada pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda em 2002.

Seleção de excertos: Pedro Almeida Jorge.

Colaboração na edição: Joana Carneiro.

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