Autores Portugueses, Excertos e Ensaios, Filosofia Política, Direito e Instituições, Autoritarismo e Totalitarismo
Originalmente publicado no semanário O Cronista, n.º XIII, 1827. (Vol. 1, pág. 274, neste documento)
A inviolabilidade dos reis que entra como um princípio nos governos representativos, tem mais propriamente seu fundamento na conveniência geral da comunidade que no interesse particular daqueles. Este sábio princípio combinado com o da responsabilidade dos ministros é a chave da abóbada majestosa que sustém esta forma de governos: o primeiro lhes dá estabilidade e consistência; o segundo assegura uma razoável liberdade, e ambos juntos completam a obra mestra da sabedoria humana nas combinações políticas das sociedades.
A história é o espelho que oferece à nossa vista os factos dos tempos passados, satisfazendo de um lado a curiosidade geral, e atraindo de outro a atenção dos homens pensadores para que meditem sobre as causas que produzem os acontecimentos, sobre as consequências destes, e sobre a prosperidade e vicissitudes das diversas nações.
A república romana apresenta o aspecto do poder mais colossal, mais aparentemente sólido que conheceram os séculos passados; e aquele corpo maravilhoso de grandeza que estendeu esse poder a todos os ângulos do mundo conhecido, veio à terra porque não continha dentro em si mesmo o princípio da sua duradoura conservação, que é a inviolabilidade do soberano. Com efeito, os Mários, os Silas e os Catilinas mostram o exemplo de outros tantos ambiciosos que tentaram fazer-se superiores às leis aspirando à supremacia do poder; e César, por último, fez servir as mesmas legiões que o tinham levantado ao mais alto grau de glória miltar, para avassallar a república, sem que todos os esforços do distinto Pompeu, do eloquente Cícero e do virtuoso Catão pudessem salvá-la da sua ruína total.
Havia pois na organização daquele portentoso Estado um vício radical que devia por fim destruir a sua constituição; e este vício era o ter-se deixado campo livre às ambições particulares, por se lhes não haver fixado um limite estabelecendo um poder invulnerável onde ninguém pudesse chegar.
Desapareceu este vício nos modernos governos representativos desde que a lei fez invioláveis os reis, declarando-os impecáveis.
Que cidadão pode jamais pretender destronar um rei, quando a lei o supõe isento de toda a culpa? Qual seria o pretexto que faria servir para as suas pretensões? Como poderia obter apoio algum dos seus semelhantes, que estão habituados a olhá-lo como igual a eles nos direitos, e que no rei somente reconhecem um ser privilegiado de cuja majestade todos os indivíduos particulares se afastam numa imensa distância?
Se quisermos demonstrar estes princípios com um exemplo recente, não temos senão voltar a nossa vista à França; e veremos que depois de tanto sangue derramado para estabelecer a república, depois de tantos crimes e tantas virtudes, depois de uma luta tão heróica contra todas as forças da Europa, depois de ter triunfado de todas as maquinações internas e de todos os exércitos invasores, não pôde a ordem republicana resistir contra a ousada ambição de um guerreiro ditoso, que converteu as coroas de louro colhidas nos campos da honra, numa coroa de ferro a qual sustentaram as mesmas baionetas que ele tinha feito combater com tanto denodo pela liberdade. A mesma falta do mesmo princípio da inviolabilidade na constituição do governo foi a escada por onde aquele guerreiro subiu ao trono.
Concordemos pois numa verdade que está comprovada pela observação do que aconteceu na mais poderosa das repúblicas antigas e na que pretendeu formar em nosso tempo uma nação ilustre. Naturalmente nos conduz a seu conhecimento uma bem meditada teoria; a saber, que é indispensável nas organizações políticas das sociedades pôr um limite às ambições particulares dos indivíduos, e que este limite não pode ser outro senão a criação de um poder inviolável o qual esteja fora do alcance do cidadão mais favorecido dos dons da fortuna e da natureza.
A resolução deste problema difícil é devida à Inglaterra, onde as guerras civis mais cruentas, a luta mais encarniçada dos reis que aspiravam ao despotismo contra a aristocracia e o povo que combatiam em união estreita para exigir e sustentar suas liberdades, produziram ao cabo um tão luminoso de perfeição completa que tanto mais se medita tanto mais se admira. Naquele país privilegiado da liberdade é que se estabeleceu este saudável princípio da inviolabilidade, que é também o que dá àquele governo uma forma mais estável e mais consistente, que a das repúblicas, as quais tanto mais acrescentam o seu poder e prosperidade tanto mais correm o risco de serem transtornadas no seu fundamento.
Porém este princípio da inviolabilidade dos reis, sancionado pela lei, faria dos governos monárquicos representativos os mais absolutos e despóticos, se não houvesse neles outro princípio que o modificasse nos seus efeitos; e este segundo princípio é o da responsabilidade dos ministros por todos os factos da sua administração.
Circundado o rei da pompa de poder, é um ser moral a quem se não concede a vontade nem sequer a possibilidade de fazer mal; pois não podendo nisso ter a mínima utilidade ou vantagem redundaria somente em menoscabo de si próprio, por ser de tal índole sua grandeza que está intimamente ligada com a do Estado que representa: a sua posição é tão eminente que nada tem que ambicionar; não há paixões que possam elevar-se até o alto do seu trono, e todas ficam nos seus degraus, ao pé dos quais se acham assentados os ministros. O poder real e a administração ministerial são pois duas coisas absolutamente diversas; e nesta distinção é que consiste a essência da nova forma de governos que, outrora geral ainda que imperfeita, em toda a Europa, em Inglaterra se aperfeiçoou e consolidou, e pouco a pouco se foi estabelecendo noutras nações, tendo cabido a Portugal a dita de não ser das últimas.
Mas esta responsabilidade ministerial seria uma quimera, se não se estabelecessem os meios de a fazer efectiva; e seria impróprio do alto lugar que os ministros ocupam, se se atribuísse a outrem que não às primeiras corporações do Estado, o direito de a julgar. A Câmara dos representantes e a dos pares são pois o santuário onde se têm depositado as imunidades públicas, e onde cada cidadão tem librada a sua liberdade civil, a segurança da sua propriedade e todos os direitos do homem constituído em sociedade, conferindo, àquela a faculdade de acusar os ministros, e a esta, a de julgá-los pelos seus actos administrativos. A lei é pois a regra invariável do proceder dos ministros; os quais a não podem ultrapassar sem ficar expostos a todo o rigor dela; e todo o cidadão tem aberto o caminho para reclamar contra os abusos do poder de que tenha sido vítima.
Há porém outro princípio de acção inerente aos governos representativos que contribui mais que nenhum outro à prosperidade das nações que têm a ventura de gozar deles; e este princípio vivificante é a liberdade da imprensa, por cujo meio se divulgam as luzes, os conhecimentos e a ilustração de todos os cidadãos em vantagem do bem comum, e se opõe uma forte barreira à arbitrariedade dos mandatários.
Há com efeito muitas disposições governativas que sem ser uma contravenção directa às leis vigentes, provam às vezes ineptidão, parcialidade ou malícia dos que as ditam; e não podendo recorrer então às câmaras e reclamar contra infracção de lei, acode-se ao juízo da opinião pública manifestando os erros ou a culpa dos administradores. Esta instituição é sem dúvida o dique mais sólido contra a arbitrariedade, o facho mais luminoso contra a ignorância, o vigia mais alerta contra as tiranias secundárias e locais, e o verdadeiro paládio das liberdades públicas; ela, pois, denuncia ao público os actos injustos, faz ver os desacertos, descobre os arcanos mais recônditos e oferece a todos um apoio. Mas todos estes bens desaparecem se o decoro devido às autoridades constituídas se não guarda, se em vez de censurar coisas se atacam pessoas.
Os princípios que acabo de estabelecer são tão conhecidos, a sua conveniência tão clara, a sua importância tão manifesta e a sua aplicação tão simples, que não creio seja necessário desenvolvê-los mais para estabelecer a verdadeira doutrina do poder real e da acção ministerial nos governos representativos. Guardemo-nos pois de confundir duas coisas que são absolutamente diversas na sua essência e nas suas aplicações; cessemos de pretender cobrir os erros dos administradores com o manto régio e de confundir o ceptro e a coroa do soberano com a pasta do ministro: SEJAM AQUELES RESPONSÁVEIS, E INVIOLÁVEL SOMENTE EL-REI.
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