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Da Origem do Governo

David Hume

Clássicos, Filosofia Política, Direito e Instituições, Sociologia, História, Governo, Finanças Públicas e Tributação, Nível Introdutório, Excertos e Ensaios

Português

 

 

Nascido numa família, o homem é obrigado a conservar a sociedade, por necessidade, por inclinação natural e por hábito. Na sua evolução subsequente, essa mesma criatura é levada a instituir a sociedade política, a fim de tornar possível a administração da justiça, sem a qual não pode haver entre os homens nem paz, nem segurança, nem relações mútuas. Consequentemente, a distribuição da justiça, ou, em outras palavras, a manutenção dos doze juízes, deve ser considerada, em última análise, como o único objectivo e finalidade de todo o vasto mecanismo do nosso governo. Os reis e os parlamentos, os exércitos e as armadas, os funcionários da corte e das rendas, os embaixadores, os ministros e os conselheiros privados, todos eles têm a sua finalidade subordinada a este aspecto da administração. Mesmo quanto ao clero, tendo em vista que o seu dever é a propagação da moral, deve-se pensar, no que diz respeito a este mundo, que foi esse o único objectivo útil da sua instituição.

Todos os homens têm consciência da necessidade da justiça para conservar a paz e a ordem, assim como todos os homens têm consciência da necessidade da paz e da ordem para a conservação da sociedade. Mas, não obstante esta forte e evidente necessidade – tal a fragilidade e perversidade da nossa natureza! –, não é possível obrigar os homens a seguirem de maneira fiel e constante a senda da justiça. Podem ocorrer certas circunstâncias extraordinárias, em que alguém considere os seus interesses mais favorecidos pela fraude ou pela pilhagem do que prejudicados pela ofensa feita à união social por essa sua injustiça. Mas muito mais frequente é os homens serem distraídos dos seus principais interesses, mais importantes mas mais longínquos, pela sedução de tentações presentes, embora muitas vezes totalmente insignificantes. Esta grande fraqueza é incurável na natureza humana.

Os homens precisam de procurar um paliativo para o que não podem curar. Precisam de criar certos cargos, cujos titulares se chamarão magistrados, e terão a função especial de proferir sentenças imparciais, punir os transgressores, corrigir a fraude e a violência, e obrigar os homens, mesmo contra a sua vontade, a respeitar os seus próprios interesses reais e permanentes. Em poucas palavras: a Obediência é um novo dever, que precisa de ser inventado para sustentar o da Justiça, e os laços da equidade devem ser reforçados pelos da sujeição.

Mas poderia ainda pensar-se, considerando este problema de maneira abstracta, que nada se ganha com esta aliança, e que o dever factício da obediência, em virtude da sua própria natureza, tem tão pouca influência sobre o espírito humano como o dever primitivo e natural da justiça. Os interesses pessoais e as tentações presentes tanto podem sobrepujar um como o outro; ambos estão igualmente sujeitos ao mesmo inconveniente. E um alguém que tiver tendência para ser mau vizinho será forçosamente levado pelos mesmos motivos, bem ou mal entendidos, a ser um mau cidadão e um mau súbdito. Para não referir a possibilidade de muitas vezes o próprio magistrado ser negligente, parcial ou injusto no exercício das suas funções.

Todavia, a experiência mostra que há uma grande diferença entre os dois casos. Verifica-se que na sociedade a ordem é muito mais eficazmente preservada por meio do governo; e o nosso dever para com o magistrado é mais solidamente garantido pelos princípios da natureza humana do que o nosso dever para com os outros cidadãos. Tão forte é a paixão do poder no coração do homem, que muitos não só aceitam, mas até procuram todos os perigos, canseiras e cuidados do governo; e, uma vez chegados a essa situação, embora muitas vezes sejam desviados por paixões pessoais, em muitos casos os homens encontram um evidente interesse na administração imparcial da justiça. As pessoas a quem é conferida esta distinção, pelo consentimento tácito ou expresso do povo, devem ser dotadas de superiores qualidades pessoais, de valor, força, integridade ou prudência, as quais impõem respeito e confiança; e, depois de estabelecido o governo, a consideração pelo nascimento, pela categoria e situação social tem sobre os homens uma poderosa influência, conferindo maior autoridade aos decretos do magistrado. O príncipe ou líder combate todas as desordens que possam perturbar a sua sociedade. Exorta todos os seus partidários e todos os homens prontos a ajudarem-no a corrigi-la e regenerá-la, e é prontamente apoiado, no desempenho das suas funções, por todos os homens imparciais. Depressa adquire o poder de recompensar esses serviços; e, com o progresso da sociedade, designa ministros a ele subordinados, e muitas vezes uma força militar, que encontram um imediato e evidente interesse em apoiar a sua autoridade. O hábito depressa vem reforçar o que outros princípios da natureza humana deficientemente consolidaram; e, uma vez habituados à obediência, os homens jamais pensam em se afastar desse caminho que ele e os seus antepassados constantemente trilharam, e ao qual são levados por tantos e tão imperiosos e evidentes motivos.

Mas, embora esta evolução das coisas humanas possa parecer certa e inevitável e embora o apoio prestado à justiça pela sujeição esteja assente em evidentes princípios da natureza humana, não se pode esperar que os homens sejam capazes de antecipadamente os descobrir ou prever os seus efeitos. O governo tem início de maneira mais acidental e imperfeita. É provável que tenha sido durante um estado de guerra que pela primeira vez um homem tenha ganho ascendente sobre as multidões; pois na guerra revela-se de modo mais evidente a superioridade da coragem e do génio, nela o acordo e a unanimidade são mais necessários, nela as perniciosas consequências da desordem revelam-se mais fortemente. A longa permanência desse estado, coisa vulgar entre as tribos selvagens, leva o povo à submissão; e se acaso o chefe for tão equânime como prudente e corajoso, ele torna-se, mesmo em tempo de paz, o árbitro de todas as disputas, e pode ir gradualmente consolidando a sua autoridade, através de um misto de força e de consentimento. Os evidentes benefícios derivados da sua influência fazem-no amado pelo povo, ou pelo menos pelos mais pacíficos e de melhor carácter; e, se acaso o seu filho é dotado das mesmas qualidades, mais depressa o governo chega à maturidade e à perfeição; mas permanece em estado ainda deficiente, enquanto novos progressos não derem ao magistrado uma renda que lhe permita distribuir remunerações entre os diversos instrumentos da sua administração, e impor castigos aos rebeldes e desobedientes. Antes deste período, cada exercício da sua influência é forçosamente momentâneo, e baseado nas circunstâncias particulares de cada caso. Depois dele, a submissão deixa de ser objecto de escolha por parte da massa da comunidade, passando a ser rigorosamente imposta pela autoridade do supremo magistrado.

Em todos os governos existe uma permanente luta intestina, aberta ou silenciosa, entre e Autoridade e a Liberdade, e neste conflito nem uma nem outra pode jamais prevalecer de maneira absoluta. Em todos os governos se tem necessariamente de fazer um grande sacrifício da liberdade, e contudo também a autoridade, que limita a liberdade, jamais deve, em qualquer constituição, tornar-se completa e incontrolável. O sultão é senhor da vida e da fortuna de qualquer indivíduo, mas não lhe é permitido cobrar novos impostos aos seus súbditos; um monarca francês pode cobrar os impostos que lhe aprouver, mas consideraria perigoso atentar contra a vida e a fortuna dos súbditos. Também a religião, na maior parte dos países, costuma ser um princípio extremamente indócil; e outros princípios ou preconceitos frequentemente resistem a toda a autoridade do magistrado civil, cujo poder, dado que assenta na opinião, nunca pode subverter outras opiniões que estejam tão profundamente enraizadas como o seu título de domínio. O governo que, na linguagem vulgar, recebe a designação de livre, é aquele que permite uma divisão do poder entre vários membros, cuja autoridade conjunta não é superior à de qualquer monarca; mas esses membros, no curso normal da administração, devem agir de acordo com leis gerais e sempre idênticas, que são previamente conhecidas por todos os membros do governo e todos os súbditos. Neste sentido, é forçoso reconhecer que a liberdade é a perfeição da sociedade civil, sem que isso permita, contudo, negar que a autoridade é essencial para a sua própria existência; e por isso esta última pode merecer a preferência, nessas disputas em que tantas vezes uma é oposta à outra. A não ser, talvez, que se possa dizer (e dizê-lo com uma certa razão) que uma circunstância essencial para a existência da sociedade civil deve sempre sustentar-se a si mesma, não precisando de ser salvaguardada tão ciosamente como uma que apenas contribui para a sua perfeição, a qual tão facilmente a indolência dos homens tende a esquecer, e a sua ignorância a desprezar.

Capítulo V da Parte I dos Ensaios Morais, Políticos e Literários (1758) do filósofo escocês David Hume (1711-1776), aqui em tradução de João Paulo Monteiro, publicada pela Imprensa Nacional - Casa da Moeda em 2002.

Narração: Mário Redondo.

Transcrição: Joana Carneiro.

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