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Da Pena de Morte

Alexandre Herculano

Direitos Civis e Privacidade, Excertos e Ensaios, Filosofia, Ética e Moral, Filosofia Política, Direito e Instituições, Autores Portugueses

Português

I

Bastaria atender aos verdadeiros princípios em que assenta a ordem social, para conhecer que a pena de morte é um absurdo. Tudo aquilo em que a sociedade limita a nossa liberdade, ofende os nossos interesses particulares, nos causa pena ou dor, são direitos cedidos pelo indivíduo que se resolve a dá-los em troca de outros bens que a sociedade lhe oferece. Nesta cessão nunca poderá entrar o direito sobre a própria vida, porque ninguém o tem para lhe pôr termo; portanto no pacto tácito do indivíduo com a totalidade nunca poderá entrar a transmissão de um direito que não existe. Se quereis legitimar a pena de morte, legitimai primeiro o suicídio.

Suponhamos os crimes mais horrorosos cometidos por qualquer: venha entre nós o parricida, o sacrílego, o assassino culpado de muitas mortes: ponhamos diante deles o cadáver paterno e a história do cordeiro pisado aos pés, e os infelizes salteados na via pública e cosidos de punhaladas: sentemo-nos como juízes, e interroguemos a voz sincera da nossa consciência. Ali estão os criminosos maniatados, cobertos das maldições e afrontas das turbas que os rodeiam: ali estão as vítimas transmudadas, envoltas em sangue; ali o monumento do insulto cometido contra Deus. O livro da lei está aberto, e nele a condenação escrita; ao longe ergue-se o patíbulo, e atrás dele se estendem as trevas da eternidade, precedidas pelo espectro da perpétua ignomínia. E os remordimentos estampados nas faces dos culpados, e o clamor que se alevanta do sangue ou do fundo do santuário, e a letra da lei, os gritos do povo, tudo nos incita a pronunciar o voto fatal; o coração deve estar seguro, a mão firme, os olhos enxutos. Porém não! Embora tudo ao redor de nós vozeie morte! Embora a indignação, a lei, a vingança a aconselhe; a confissão do criminoso a admita; a alma recua espavorida, e a consciência nos grita mais alto e nos diz: olha que vais ser um assassino. O juiz, habituado a subjugar a voz da consciência, a ver na lei a razão suprema, usado ao tracto e aspecto hediondo da culpa, familiarizado com a imagem do patíbulo escreverá, sem tremer, a sentença de condenação. Mas, ao dá-la, a pena cairá das mãos daquele que pela primeira vez se assentar na cadeira do magistrado, para exercer o mais terrível dos seus deveres, o assinar uma sentença de morte.

No campo de batalha terminam-se muitas vezes mais existências em um só dia, do que nos cadafalsos em um século. O soldado coberto de sangue dos inimigos, dorme tranquilo junto dos seus cadáveres, seja veterano ou bisonho: porque não seriam, pois, tranquilas as nossas noites depois de condenar um criminoso ao último suplício, embora fosse pela primeira vez da nossa vida, que déssemos trabalho de sangue às mãos malditas do algoz?

Aproveitai todas as subtilezas da ideologia para dar a razão destas diferenças. Debalde as aproveitareis, se não quiserdes confessar que ao juiz clama a consciência que o acto por ele praticado foi um absurdo cruel, enquanto diz ao soldado, que, levado ao combate ou pela salvação da pátria ou por força irresistível de tiranos, a defesa da própria vida lhe deu o direito de pôr termo à do contrário.

Os defensores da pena de morte ainda têm uma última cerca donde procuram repelir os tiros dos que os acometem. Lá os iremos buscar. Dizem que a faculdade que tem a sociedade de impor a pena última é o direito da defesa natural transmitida pelo indivíduo à república. Parece-nos isto fugir de um absurdo para outro. Essa transmissão acaba, esse direito cessa, logo que o indivíduo cessa de existir: o morto precisa acaso de defesa natural? Por outra: o indivíduo assassinado, enterrado e talvez já corrupto, quando o seu matador é condenado, ainda é salvo da morte com a condenação deste? — Onde está, pois, o direito da própria defesa; onde está a legitimação do suplício?

Se as considerações abstractas estão contra a pena de morte, vejamos se a necessidade, a inexorável necessidade, que é a suprema lei das nações, bem como dos indivíduos, nos obriga a conservar nos códigos esta punição atroz. Para outro artigo guardamos a investigação deste ponto importantíssimo.

II

Considerámos já em si a pena de morte: vimos que nenhuma sanção tinha nos princípios constitutivos da sociedade; antes era, em respeito a eles, um absurdo contraditório. Falta examinar a questão pelo lado da necessidade: ver, se como quer De Maistre, todo o poder, grandeza e subordinação repousam no algoz; e se a espada da justiça deve estar sempre desembainhada para ameaçar e ferir de morte. Tirai, diz aquele fautor e apologista do despotismo, tirai do mundo o carrasco, esse agente incompreensível, e no mesmo instante a ordem se trocará em caos, os ermos soverter-se-ão, a sociedade desaparecerá.

É esta a linguagem de um dos mais hábeis propugnadores do absolutismo na Europa. Foi este o resultado rigorosamente lógico que ele deduziu dos seus princípios políticos. Qual será a dedução de princípios contrários, de princípios liberais? Parece que a oposta. E com efeito foi a que deles deduzimos no antecedente artigo: vejamos agora qual a necessidade e a utilidade social da pena de morte.

E um facto aí está — um facto perene e inegável — a história criminal dos povos modernos, comparada com a frequência dos suplícios. Não falaremos de épocas de convulsões políticas; porque a exaltação das paixões converte então o homem em anjo de heroísmo e resignação, ou em demónio de barbaria e vileza: mas consideremos os tempos ordinários de cada sociedade, seja qual for a sua forma política de existir; vejamos se o cadafalso serve, em verdade, para reprimir crimes, porque, na falta de outros meios para alcançar aquele fim, ele seria uma necessidade pública.

Como não é possível chamar a juízo a história de todas as nações da Europa, até porque escasseiam aos apontamentos estatísticos desta espécie na maior parte delas, olhemos só para a França e Inglaterra.

Na França é indubitável que há uma repugnância visível à cominação da pena de morte: a guilhotina, tão rica de vítimas durante a revolução, quase que se vê hoje abandonada; e se muitas vezes a brandura e a filosofia faltam nas leis, estão no carácter do povo, e na consciência dos juízes.

A Inglaterra foi no seculo XVIII, e ainda nos segundos dez anos do reinado de Jorge III, o país clássico da forca, e a pena capital, segundo Mr. Phillips, dava a Londres umas parecenças de açougue; hoje a Inglaterra está longe desta crueldade, mas ainda excede muito a França no número das execuções anuais.

Em França, segundo um relatório do ministro da justiça, de 1829, vê-se que num ano, de 4475 criminosos julgados, tinham sido condenados à morte só 89. No ano de 1833 aquele país, tendo crescido em população tinha diminuído em criminosos, pois só houve 4418, dos quais apenas 74 foram condenados à pena última.

Todos sabem que a população da Inglaterra é bastante inferior à da França. A soma dos criminosos convencidos na Grã-Bretanha era de pouco mais de 10 000 em 1829, sendo destes condenados à pena última 1311. Em 1832 houve 14 947 sentenças; não sabemos quantas de morte; mas basta-nos saber que a pena última imposta à nona parte dos criminosos em Inglaterra, em 1829, sendo em França, no mesmo ano, imposta à quinquagésima parte deles, não embaraçou que naquele país a criminalidade fosse em progresso, enquanto neste foi em diminuição.

Que prova isto? Que o suplício nada influi nas acções dos homens: que se devem buscar as causas que os levam a perpetrar delitos, para as remover, em vez de erguer cadafalsos, que destroem o criminoso, mas não impediram que ele o fosse. Um homem honrado ultrajado, não dista um passo de ser um assassino: não espereis que ele o seja, para depois o enforcardes: dai-lhe leis que tomem a seu cargo desafrontá-lo. Um desgraçado, rodeado de filhos, sem ter um bocado de pão que lhes dê, vai converter-se num salteador da via pública; não espereis que ele o seja para depois o enforcardes: abri ao povo o caminho de ganhar a vida na lavoura, no comércio ou na indústria, e os salteadores desaparecerão. Uma criança de tenra idade mostra índole perversa, anuncia para a idade viril um malvado: moderai-lhe e torcei-lhe essa índole na infância, criando uma educação pública, que não existe; não espereis que ele seja homem e criminoso, para depois o enforcardes: guiai bem a mocidade e os crimes rarearão.

Virá alguém com dizer que no estado actual da sociedade, existindo essas causas de crimes que apontámos, não é possível apagar dos códigos criminais as leis escritas com sangue? Pôr esta objecção será daqui a cinquenta anos uma vergonha: há também cinquenta anos que se julgava impossível sustentar colónias sem o tráfico dos negros: quem, sem corar, se atreverá a dizê-lo hoje? Ainda há pouquíssimos séculos, os tractos e as fogueiras eram no entender de muitos políticos instrumentos necessários da existência social. No tempo dos hebreus era considerado o extermínio de raças inteiras como outro elemento da sociedade. Se conhecêssemos a história primitiva do género humano, talvez lá achássemos ainda mais horríveis necessidades sociais.

Felizmente o progresso intelectual e moral não pára: a última preocupação das épocas de barbaridade passará: a palavra algoz chegará a ser um arcaísmo; e os cadafalsos apodrecidos e roídos dos vermes serão algum dia, um monumento dos delírios e erros do passado.

Alexandre Herculano (1810 - 1877) expõe o argumento liberal contra a pena de morte.

Artigo compilado originalmente em Opúsculos, tomo VIII.

Colaboração na edição: Natacha Santos.

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