Autoritarismo e Totalitarismo, Direitos Civis e Privacidade, Intervencionismo e Protecionismo, Excertos e Ensaios, Sociologia, Filosofia Política, Direito e Instituições, Socialismo e Comunismo
A transformação é uma lei geral do universo. Visíveis em toda a parte, os seus exemplos são, todavia, mais apreciáveis no mundo orgânico e nomeadamente no reino animal. Excepção feita das estruturas mais simples e infinitamente pequenas, nenhum ser inicia a vida por uma das formas que revestirá mais tarde; e na maioria dos casos sucede mesmo que a dissemelhança entre as formas primitiva e última é tão grande que a afinidade entre elas se não aceitaria, se a observação quotidiana dos aviários e jardins nos não demonstrasse a indefinida extensão das metamorfoses orgânicas. Às vezes mesmo as transformações são múltiplas, representando cada uma delas uma evolução aparentemente acabada: ovo, larva e crisálida, por exemplo.
Ora, visível em tudo o que germina à superfície da terra, esta universal transformação verifica-se também na sociedade, quer a consideremos como um todo, quer nas suas distintas instituições. Nenhuma destas acaba como principiou; e a diferença entre a sua estrutura original e a atingida num dado momento histórico é por vezes tão profunda que ninguém, de começo, a julgaria possível.
Nas tribos mais rudimentares, o chefe, obedecido como general, perde a sua privilegiada posição desde que a batalha cessa; e mesmo quando a continuidade da guerra origina a autoridade permanente do chefe, é este quem constrói a própria cabana, quem procura para si os alimentos e quem fabrica os utensílios de que precisa, não diferindo dos outros membros da sua tribo a não ser por uma influência preponderante. Nesta alvorada social nada faz prever que um dia, mercê de conquistas, de uniões de tribos e de anexações de grupos até à formação de verdadeiras nacionalidades, surgirá desse chefe primitivo alguém que, imperador ou czar, há de exercer por intermédio de centenas de milhares de soldados e oficiais um poder despótico sobre inumeráveis milhões de homens.
Quando os primeiros missionários cristãos, humílimos de aspecto e levando uma vida de sacrifício, se espalharam sobre a Europa politeísta e pagã, aconselhando o perdão das injúrias e pregando a troca do mal pelo bem, decerto ninguém pensaria que os seus representantes futuros haviam de constituir uma vasta hierarquia, por toda a parte senhora de consideráveis propriedades, caracterizada pela soberba dos seus membros, governada às vezes por bispos guerreiros e dependente de um papa exercendo o seu supremo poder sobre imperadores e reis.
E o mesmo sucedeu em relação ao sistema industrial, que tantos hoje desejam ver substituído. Ninguém, quando ele se iniciou, poderia prever as empresas actuais e as associações de operários. Então, ajudado por alguns aprendizes e oficiais, era o próprio patrão quem executava o trabalho, distinguindo-se apenas dos seus colaboradores pela qualidade de dono da casa; vivendo com eles sob o mesmo tecto e partilhando a mesma mesa, ele próprio vendia os produtos da actividade comum. Mas a expansão industrial tornou necessário um número cada vez maior de cooperadores e forçou o patrão a dispensar-se de todo o serviço que não fosse a fiscalização da oficina. E assim, com o tempo, surgiram esses grandes estabelecimentos actuais em que o trabalho de centenas de milhares de homens salariados é dirigido por empregados de diferentes ordens, a seu turno pagos por um ou mais chefes supremos que os dirigem.
Esses núcleos de produtores, originariamente pequenos e quase socialistas, certos grupos de famílias e as primeiras comunidades operárias foram lentamente desaparecendo, porque não podiam manter-se; e institutos mais vastos, mais poderosos, com uma divisão melhor de trabalho, lhes sucederam, porque podiam mais eficazmente corresponder às necessidades sociais.
Mas não é preciso recuar tantos séculos para encontrar vestígios de grandes e inesperadas transformações.
Quando pela primeira vez e a título de experiência foi votado o subsídio anual de trinta mil libras para a instrução pública, seria considerado imbecil quem se lembrasse de profetizar que dentro de cinquenta anos a despesa atingiria, somadas as contribuições do Estado e as locais, a cifra de dez milhões esterlinos. De idiota seria tratado igualmente quem predissesse que as taxas para o ensino seriam seguidas de outras para alimentos e vestuário, ou que crianças e pais seriam forçados, sob pena de prisão e de multa, mesmo quando indigentes, a receber o que o Estado pretenciosa e pomposamente denomina Instrução. Ninguém, decerto, sonharia que de um germe tão inocente na aparência havia de nascer o tirânico sistema tão mansamente suportado por pessoas que se imaginam livres.
A transformação é inevitável nas organizações sociais, como em tudo. E é uma loucura supor que uma nova instituição pode conservar por longo tempo o carácter que lhe imprimiram os seus criadores; rápida ou lentamente ela transformar-se-á noutras instituições diferentes – e tão diferentes que as não reconheceriam os que a idearam. E qual será a transformação no caso que discutimos? Até onde os exemplos e as analogias nos permitem fazer inferências, a resposta é manifesta.
Uma característica peculiar a todas as organizações sociais em evolução é o incremento do seu aparelho legislativo. Se as várias partes de um todo têm de actuar simultaneamente, certas disposições são necessárias para regular-lhes e dirigir-lhes os movimentos; e, à medida que o todo aumenta e se multiplica, e que ao maior número das suas funções deve corresponder um equivalente de forças vivas, o mecanismo dirigente vai-se tornando por seu turno mais extenso, mais complexo e mais forte.
Este princípio, verificável nos organismos, é-o igualmente nas colectividades humanas. Ora, assim como nas sociedades actuais um aparelho regulador é necessário para prover a defesa nacional, a ordem pública e a segurança dos cidadãos, assim no regime socialista deve existir um qualquer mecanismo regulador que por toda a parte domine autoritariamente a produção e a distribuição e que por toda a parte aporte a porção de produtos necessária a cada localidade, a cada fábrica e oficina e a cada indivíduo.
No actual regime de cooperação, baseado no contrato e na concorrência, a produção e o consumo não exigem a intervenção oficial. A oferta, a procura e o desejo que cada um tem de ganhar os meios de subsistência própria satisfazendo as necessidades de outrem determinam espontaneamente o maravilhoso sistema que torna possível numa grande cidade a diária aquisição imediata dos alimentos, quer nos mercados, quer às portas das casas, e que a todos permite obter prontamente o vestuário, o alojamento, a mobília, o combustível e até o pão do espírito, representado ora pelo jornal, que nas ruas e praças se vende por um soldo a toda a hora, ora pela publicação semanal de diversos romances e de livros de instrução, estes últimos menos abundantes, mas ainda assim numerosos e de baixo preço. Com uma supervisão estatal limitada ao que a eficiência exige, a produção e a distribuição exercem-se activamente, e o fornecimento de quanto é necessário à vida realiza-se sem o concurso de outro agente que não seja a procura do ganho.
Para conseguir o que hoje depende apenas da gente de negócio – ou seja, distribuir nas cidades, nas vilas e nas aldeias as coisas necessárias à vida das populações – que vasta administração não seria exigida! Faz vertigens pensar na complicada organização administrativa indispensável para obter todo o enorme trabalho que hoje executam os agricultores, os industriais e os comerciantes. Porque, naturalmente, haverá não só várias ordens de superintendentes locais, mas centros diversos, de maior ou menor importância, para o fornecimento oportuno de todos os objectos de consumo onde quer que eles sejam exigidos. E que diremos do aparelho administrativo encarregado da fiscalização dos trabalhos de minas, de caminhos-de-ferro, de estradas e de canais? Do numeroso pessoal que deverá regular a importação e exportação, e administrar a marinha mercante? Do pessoal preciso para fornecer às cidades não só o gás e a água, mas os trâmueis, os ónibus, a força motora, a electricidade e o resto? Juntemos a isto as actuais administrações dos correios, telégrafos e telefones, e ainda as da polícia e da força armada, que terão de impor a obediência aos decretos deste colossal mecanismo regulador; e esforcemo-nos, depois, por conceber quais serão, nesse sistema, as condições do operário de hoje em dia.
No continente, onde o mecanismo do Estado é muito mais complexo e coercivo que entre nós, erguem-se já incessantes clamores contra a tirania da burocracia – contra a brutalidade e a arrogância dos seus membros. Quais não serão esses defeitos, quando a autoridade burocrática se estender não só aos públicos, mas a todos os actos dos cidadãos? Que acontecerá quando os contingentes deste vasto exército de empregados, unidos pelos interesses da casta administrativa – isto é, os interesses dos reguladores versus os dos regulados – tiverem à sua disposição a força precisa para reprimir insubordinações e fazerem-se passar por "salvadores da sociedade"? Qual será a sorte dos actuais cavadores, mineiros, fundidores e tecelões, quando os chefes oficiais, uma vez constituídas as diversas classes, tiverem ao fim de algumas gerações conseguido ligar-se a indivíduos de postos congéneres, obedecendo a sentimentos análogos aos das classes de hoje? Quando, por este processo, formarem uma série de castas que, uma vez absorvido todo o poder, terão conseguido superiores vantagens na vida e formado uma nova aristocracia, mais complexa e melhor organizada que a antiga?
Não é difícil imaginar qual seria, nestas condições, o fado de um operário descontente – que julgasse não estar a receber uma quota proporcional ao seu trabalho; que considerasse estar-lhe a ser exigida tarefa superior às suas forças; que quisesse prestar serviços mais conformes com as suas aptidões, ainda que considerados inconvenientes pelos seus superiores; ou que, enfim, desejasse empreender uma carreira independente. Submeter-se ou partir para o exílio: eis o dilema posto diante desta unidade insatisfeita do imenso mecanismo. A mais benigna pena contra a desobediência será a excomunhão industrial. E se a forma socialista vier a ser a adotada na organização internacional do trabalho, então a exclusão de um país implicará a exclusão de todos os outros e, portanto, a fome.
Que as coisas terão de tomar este aspecto, é o que naturalmente se conclui não só das deduções lógicas ou dos exemplos do passado e das analogias fornecidas pelos organismos de toda a ordem, mas dos factos que diariamente observamos. As organizações regulamentares tendem constantemente a aumentar de poder, como o demonstra qualquer sociedade constituída, seja qual for o seu fim. O conselho directivo, quer seja permanente no todo ou em parte, é quem de facto manda e assume as rédeas da sociedade, não encontrando senão ténue resistência, mesmo quando a oposição parece numerosa: a repugnância dos subordinados por tudo o que pareça constituir uma rebelião basta, normalmente, para dominar os dissidentes.
É o que acontece nas sociedades por acções – nas dos caminhos de ferro, por exemplo. Os projectos do conselho administrativo são geralmente aprovados ao fim de uma curta discussão, quando chegam sequer a discutir-se; e, se alguma considerável oposição irrompe, os testas-de-ferro da administração encarregam-se de a dominar pelo número de votos. É preciso que os erros de gerência excedam todos os limites para que os accionistas se decidam a destituir o conselho da sociedade.
E não se passam as coisas de outro modo nas trade unions, associações de operários com especial apreço pelos interesses do trabalho. Nelas, como em todas as sociedades, o elemento dirigente adquire cada vez mais força e mais poder. Mesmo dissentindo da linha de conduta dos chefes, que aliás elegeram, os sócios costumam dobrar-se à sua autoridade; não podendo separar-se dos companheiros sem se tornarem seus inimigos e sem perderem todas as probabilidades de ocupação, preferem submeter-se. O último congresso revela-nos que, na organização geral das trade unions de recente formação, se começa já a deplorar a presença de intriguistas e caciques, bem como de dirigentes agarrados ao cargo.
Se a supremacia dos dirigentes é já tão manifesta em associações de origem moderníssima e formadas de homens que têm na sua maior parte o direito de afirmar a própria independência, que alturas não atingirá o poder dos chefes em sociedades já estabelecidas e vastamente organizadas, nas quais a autoridade dos reguladores não se estende somente a uma parte da vida dos subordinados, mas sim à sua existência por inteiro?
Excerto do ensaio Da Liberdade à Escravidão (1891), do biólogo e sociólogo inglês Herbert Spencer (1820-1903), em tradução livre de Júlio de Matos (1856-1922), publicada em 1904 pela Livraria Clássica Editora.
Revisão: Pedro Almeida Jorge.
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