Mais Liberdade
  • Facebook
  • X / Twitter
  • Youtube
  • Instagram
  • Linkedin

Da Tirania Inevitável do Socialismo

Herbert Spencer

Autoritarismo e Totalitarismo, Direitos Civis e Privacidade, Intervencionismo e Protecionismo, Excertos e Ensaios, Sociologia, Filosofia Política, Direito e Instituições, Socialismo e Comunismo

Português

A transformação é uma lei geral do universo. Visíveis em toda a parte, os seus exemplos são, todavia, mais apreciáveis no mundo orgânico e nomeadamente no reino animal. Excepção feita das estruturas mais simples e infinitamente pequenas, nenhum ser inicia a vida por uma das formas que revestirá mais tarde; e na maioria dos casos sucede mesmo que a dissemelhança entre as formas primitiva e última é tão grande que a afinidade entre elas se não aceitaria, se a observação quotidiana dos aviários e jardins nos não demonstrasse a indefinida extensão das metamorfoses orgânicas. Às vezes mesmo as transformações são múltiplas, representando cada uma delas uma evolução aparentemente acabada: ovo, larva e crisálida, por exemplo.

Ora, visível em tudo o que germina à superfície da terra, esta universal transformação verifica-se também na sociedade, quer a consideremos como um todo, quer nas suas distintas instituições. Nenhuma destas acaba como principiou; e a diferença entre a sua estrutura original e a atingida num dado momento histórico é por vezes tão profunda que ninguém, de começo, a julgaria possível.

Nas tribos mais rudimentares, o chefe, obedecido como general, perde a sua privilegiada posição desde que a batalha cessa; e mesmo quando a continuidade da guerra origina a autoridade permanente do chefe, é este quem constrói a própria cabana, quem procura para si os alimentos e quem fabrica os utensílios de que precisa, não diferindo dos outros membros da sua tribo a não ser por uma influência preponderante. Nesta alvorada social nada faz prever que um dia, mercê de conquistas, de uniões de tribos e de anexações de grupos até à formação de verdadeiras nacionalidades, surgirá desse chefe primitivo alguém que, imperador ou czar, há de exercer por intermédio de centenas de milhares de soldados e oficiais um poder despótico sobre inumeráveis milhões de homens.

Quando os primeiros missionários cristãos, humílimos de aspecto e levando uma vida de sacrifício, se espalharam sobre a Europa politeísta e pagã, aconselhando o perdão das injúrias e pregando a troca do mal pelo bem, decerto ninguém pensaria que os seus representantes futuros haviam de constituir uma vasta hierarquia, por toda a parte senhora de consideráveis propriedades, caracterizada pela soberba dos seus membros, governada às vezes por bispos guerreiros e dependente de um papa exercendo o seu supremo poder sobre imperadores e reis.

E o mesmo sucedeu em relação ao sistema industrial, que tantos hoje desejam ver substituído. Ninguém, quando ele se iniciou, poderia prever as empresas actuais e as associações de operários. Então, ajudado por alguns aprendizes e oficiais, era o próprio patrão quem executava o trabalho, distinguindo-se apenas dos seus colaboradores pela qualidade de dono da casa; vivendo com eles sob o mesmo tecto e partilhando a mesma mesa, ele próprio vendia os produtos da actividade comum. Mas a expansão industrial tornou necessário um número cada vez maior de cooperadores e forçou o patrão a dispensar-se de todo o serviço que não fosse a fiscalização da oficina. E assim, com o tempo, surgiram esses grandes estabelecimentos actuais em que o trabalho de centenas de milhares de homens salariados é dirigido por empregados de diferentes ordens, a seu turno pagos por um ou mais chefes supremos que os dirigem.

Esses núcleos de produtores, originariamente pequenos e quase socialistas, certos grupos de famílias e as primeiras comunidades operárias foram lentamente desaparecendo, porque não podiam manter-se; e institutos mais vastos, mais poderosos, com uma divisão melhor de trabalho, lhes sucederam, porque podiam mais eficazmente corresponder às necessidades sociais.

Mas não é preciso recuar tantos séculos para encontrar vestígios de grandes e inesperadas transformações.

Quando pela primeira vez e a título de experiência foi votado o subsídio anual de trinta mil libras para a instrução pública, seria considerado imbecil quem se lembrasse de profetizar que dentro de cinquenta anos a despesa atingiria, somadas as contribuições do Estado e as locais, a cifra de dez milhões esterlinos. De idiota seria tratado igualmente quem predissesse que as taxas para o ensino seriam seguidas de outras para alimentos e vestuário, ou que crianças e pais seriam forçados, sob pena de prisão e de multa, mesmo quando indigentes, a receber o que o Estado pretenciosa e pomposamente denomina Instrução. Ninguém, decerto, sonharia que de um germe tão inocente na aparência havia de nascer o tirânico sistema tão mansamente suportado por pessoas que se imaginam livres.

A transformação é inevitável nas organizações sociais, como em tudo. E é uma loucura supor que uma nova instituição pode conservar por longo tempo o carácter que lhe imprimiram os seus criadores; rápida ou lentamente ela transformar-se-á noutras instituições diferentes – e tão diferentes que as não reconheceriam os que a idearam. E qual será a transformação no caso que discutimos? Até onde os exemplos e as analogias nos permitem fazer inferências, a resposta é manifesta.

Uma característica peculiar a todas as organizações sociais em evolução é o incremento do seu aparelho legislativo. Se as várias partes de um todo têm de actuar simultaneamente, certas disposições são necessárias para regular-lhes e dirigir-lhes os movimentos; e, à medida que o todo aumenta e se multiplica, e que ao maior número das suas funções deve corresponder um equivalente de forças vivas, o mecanismo dirigente vai-se tornando por seu turno mais extenso, mais complexo e mais forte.

Este princípio, verificável nos organismos, é-o igualmente nas colectividades humanas. Ora, assim como nas sociedades actuais um aparelho regulador é necessário para prover a defesa nacional, a ordem pública e a segurança dos cidadãos, assim no regime socialista deve existir um qualquer mecanismo regulador que por toda a parte domine autoritariamente a produção e a distribuição e que por toda a parte aporte a porção de produtos necessária a cada localidade, a cada fábrica e oficina e a cada indivíduo.

No actual regime de cooperação, baseado no contrato e na concorrência, a produção e o consumo não exigem a intervenção oficial. A oferta, a procura e o desejo que cada um tem de ganhar os meios de subsistência própria satisfazendo as necessidades de outrem determinam espontaneamente o maravilhoso sistema que torna possível numa grande cidade a diária aquisição imediata dos alimentos, quer nos mercados, quer às portas das casas, e que a todos permite obter prontamente o vestuário, o alojamento, a mobília, o combustível e até o pão do espírito, representado ora pelo jornal, que nas ruas e praças se vende por um soldo a toda a hora, ora pela publicação semanal de diversos romances e de livros de instrução, estes últimos menos abundantes, mas ainda assim numerosos e de baixo preço. Com uma supervisão estatal limitada ao que a eficiência exige, a produção e a distribuição exercem-se activamente, e o fornecimento de quanto é necessário à vida realiza-se sem o concurso de outro agente que não seja a procura do ganho.

Para conseguir o que hoje depende apenas da gente de negócio – ou seja, distribuir nas cidades, nas vilas e nas aldeias as coisas necessárias à vida das populações – que vasta administração não seria exigida! Faz vertigens pensar na complicada organização administrativa indispensável para obter todo o enorme trabalho que hoje executam os agricultores, os industriais e os comerciantes. Porque, naturalmente, haverá não só várias ordens de superintendentes locais, mas centros diversos, de maior ou menor importância, para o fornecimento oportuno de todos os objectos de consumo onde quer que eles sejam exigidos. E que diremos do aparelho administrativo encarregado da fiscalização dos trabalhos de minas, de caminhos-de-ferro, de estradas e de canais? Do numeroso pessoal que deverá regular a importação e exportação, e administrar a marinha mercante? Do pessoal preciso para fornecer às cidades não só o gás e a água, mas os trâmueis, os ónibus, a força motora, a electricidade e o resto? Juntemos a isto as actuais administrações dos correios, telégrafos e telefones, e ainda as da polícia e da força armada, que terão de impor a obediência aos decretos deste colossal mecanismo regulador; e esforcemo-nos, depois, por conceber quais serão, nesse sistema, as condições do operário de hoje em dia.

No continente, onde o mecanismo do Estado é muito mais complexo e coercivo que entre nós, erguem-se já incessantes clamores contra a tirania da burocracia – contra a brutalidade e a arrogância dos seus membros. Quais não serão esses defeitos, quando a autoridade burocrática se estender não só aos públicos, mas a todos os actos dos cidadãos? Que acontecerá quando os contingentes deste vasto exército de empregados, unidos pelos interesses da casta administrativa – isto é, os interesses dos reguladores versus os dos regulados – tiverem à sua disposição a força precisa para reprimir insubordinações e fazerem-se passar por "salvadores da sociedade"? Qual será a sorte dos actuais cavadores, mineiros, fundidores e tecelões, quando os chefes oficiais, uma vez constituídas as diversas classes, tiverem ao fim de algumas gerações conseguido ligar-se a indivíduos de postos congéneres, obedecendo a sentimentos análogos aos das classes de hoje? Quando, por este processo, formarem uma série de castas que, uma vez absorvido todo o poder, terão conseguido superiores vantagens na vida e formado uma nova aristocracia, mais complexa e melhor organizada que a antiga?

Não é difícil imaginar qual seria, nestas condições, o fado de um operário descontente – que julgasse não estar a receber uma quota proporcional ao seu trabalho; que considerasse estar-lhe a ser exigida tarefa superior às suas forças; que quisesse prestar serviços mais conformes com as suas aptidões, ainda que considerados inconvenientes pelos seus superiores; ou que, enfim, desejasse empreender uma carreira independente. Submeter-se ou partir para o exílio: eis o dilema posto diante desta unidade insatisfeita do imenso mecanismo. A mais benigna pena contra a desobediência será a excomunhão industrial. E se a forma socialista vier a ser a adotada na organização internacional do trabalho, então a exclusão de um país implicará a exclusão de todos os outros e, portanto, a fome.

Que as coisas terão de tomar este aspecto, é o que naturalmente se conclui não só das deduções lógicas ou dos exemplos do passado e das analogias fornecidas pelos organismos de toda a ordem, mas dos factos que diariamente observamos. As organizações regulamentares tendem constantemente a aumentar de poder, como o demonstra qualquer sociedade constituída, seja qual for o seu fim. O conselho directivo, quer seja permanente no todo ou em parte, é quem de facto manda e assume as rédeas da sociedade, não encontrando senão ténue resistência, mesmo quando a oposição parece numerosa: a repugnância dos subordinados por tudo o que pareça constituir uma rebelião basta, normalmente, para dominar os dissidentes.

É o que acontece nas sociedades por acções – nas dos caminhos de ferro, por exemplo. Os projectos do conselho administrativo são geralmente aprovados ao fim de uma curta discussão, quando chegam sequer a discutir-se; e, se alguma considerável oposição irrompe, os testas-de-ferro da administração encarregam-se de a dominar pelo número de votos. É preciso que os erros de gerência excedam todos os limites para que os accionistas se decidam a destituir o conselho da sociedade.

E não se passam as coisas de outro modo nas trade unions, associações de operários com especial apreço pelos interesses do trabalho. Nelas, como em todas as sociedades, o elemento dirigente adquire cada vez mais força e mais poder. Mesmo dissentindo da linha de conduta dos chefes, que aliás elegeram, os sócios costumam dobrar-se à sua autoridade; não podendo separar-se dos companheiros sem se tornarem seus inimigos e sem perderem todas as probabilidades de ocupação, preferem submeter-se. O último congresso revela-nos que, na organização geral das trade unions de recente formação, se começa já a deplorar a presença de intriguistas e caciques, bem como de dirigentes agarrados ao cargo.

Se a supremacia dos dirigentes é já tão manifesta em associações de origem moderníssima e formadas de homens que têm na sua maior parte o direito de afirmar a própria independência, que alturas não atingirá o poder dos chefes em sociedades já estabelecidas e vastamente organizadas, nas quais a autoridade dos reguladores não se estende somente a uma parte da vida dos subordinados, mas sim à sua existência por inteiro?

Excerto do ensaio Da Liberdade à Escravidão (1891), do biólogo e sociólogo inglês Herbert Spencer (1820-1903), em tradução livre de Júlio de Matos (1856-1922), publicada em 1904 pela Livraria Clássica Editora.

Revisão: Pedro Almeida Jorge.

Instituto +Liberdade

Em defesa da democracia-liberal.

  • Facebook
  • X / Twitter
  • Youtube
  • Instagram
  • Linkedin

info@maisliberdade.pt
+351 936 626 166

© Copyright 2021-2024 Instituto Mais Liberdade - Todos os direitos reservados

Este website utiliza cookies no seu funcionamento

Estas incluem cookies essenciais ao funcionamento do site, bem como outras que são usadas para finalidades estatísticas anónimas.
Pode escolher que categorias pretende permitir.

Este website utiliza cookies no seu funcionamento

Estas incluem cookies essenciais ao funcionamento do site, bem como outras que são usadas para finalidades estatísticas anónimas.
Pode escolher que categorias pretende permitir.

Your cookie preferences have been saved.