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Desenvolvimento Humano Através da Globalização

Vernon L. Smith

Economia, Excertos e Ensaios, Nível Introdutório, Mercado de Trabalho, Liberalismo e Capitalismo

Português

Hoje a minha mensagem é otimista. É sobre o comércio e os mercados, que nos permitem desenvolver a especialização de conhecimento e de tarefas. É essa especialização que constitui o segredo de toda a criação de riqueza e a única fonte de desenvolvimento humano sustentável. É essa a essência da globalização.

O desafio vem do facto de todos funcionarmos, simultaneamente, em dois mundos de trocas sobrepostos. Primeiramente, vivemos num mundo de trocas pessoais e sociais, baseado em reciprocidade e regras compartilhadas em pequenos grupos, famílias e comunidades. A frase “fico a dever-te uma” é uma expressão humana universal em muitas línguas, na qual as pessoas, voluntariamente, se reconhecem em dívida por um favor. Desde tempos primitivos, as trocas interpessoais permitiram a especialização de tarefas (caça, colheita, fabricação de instrumentos) e estabeleceram as bases para a melhoria da produtividade e do bem-estar. Essa divisão de trabalho possibilitou que os homens primitivos migrassem por todo o mundo. Desse modo, a especialização deu início à globalização muito antes do surgimento de mercados formais.

Mas, por outro lado, vivemos também num mundo de trocas impessoais no mercado, onde a comunicação e a cooperação se desenvolveram gradualmente por meio do comércio de longa distância entre estranhos. Em atos de troca interpessoal, geralmente pretendemos fazer o bem a outras pessoas. No mercado, essa perceção costuma perder-se, na medida em que cada um de nós tende a focar-se no ganho pessoal. Contudo, as nossas experiências laboratoriais demonstram que os mesmos indivíduos que se esforçam para cooperar em trocas interpessoais também lutam para maximizar o seu ganho individual num mercado mais amplo. Sem que seja essa a sua intenção, nas suas interações de mercado eles acabam também por maximizar os benefícios obtidos pelo grupo como um todo. A que é que isso se deve? Aos direitos de propriedade. Nas trocas interpessoais, as regras emergem do consentimento voluntário das partes. Nas trocas impessoais do mercado, as regras (tais como os direitos de propriedade, que proíbem tirar sem dar algo em troca) encontram-se codificadas num enquadramento institucional. Assim, os dois mundos das trocas funcionam de maneira semelhante: é necessário dar para receber.

As bases da prosperidade

Os mercados de bens e serviços, que são a base da criação de riqueza, determinam a extensão da especialização. Em mercados organizados, os produtores lidam com custos de produção relativamente previsíveis e os consumidores encontram uma oferta relativamente previsível dos bens a que dão valor. Essas atividades de mercado, em constante repetição, são incrivelmente eficientes, mesmo no caso de relações de mercado deveras complexas, que envolvem a troca de múltiplas mercadorias.

As nossas experiências de mercado também nos levaram a descobrir que as pessoas geralmente refutam a ideia de que algum tipo de modelo consiga prever os seus preços de troca finais e o volume de bens que vão comprar e vender. Na verdade, a eficiência do mercado não requer um grande número de participantes, nem “informação completa”, nem conhecimento de economia, nem qualquer tipo de sofisticação específica. Afinal de contas, as pessoas já realizavam trocas de mercado bem antes de existirem economistas para estudar o processo de mercado. Tudo o que precisam de saber é se estão a ganhar mais ou menos dinheiro e se têm a possibilidade de modificar as suas ações.

A marca distintiva dos mercados de bens e serviços é a diversidade – diversidade de gostos, de habilidades humanas, de conhecimento, de recursos naturais, de solo e de clima. Mas diversidade sem liberdade de comércio implica pobreza. Nenhum ser humano, mesmo que dotado abundantemente de uma única habilidade ou recurso, consegue prosperar sem comércio. Através dos mercados livres, dependemos de outros indivíduos que não conhecemos, reconhecemos ou sequer entendemos. Sem mercados, seríamos sem dúvida pobres, miseráveis, brutos e ignorantes.

Os mercados requerem a aplicação consensual de regras de interação social e de intercâmbio económico. Ninguém o disse melhor que David Hume, há mais de 250 anos atrás – há apenas três leis naturais: o direito de propriedade, a transferência por consentimento e o cumprimento de promessas. São essas as bases fundamentais que possibilitam a ordem dos mercados e a prosperidade.

As leis naturais de Hume provêm dos antigos mandamentos: Não roubarás, não cobiçarás as posses do vizinho e não levantarás falso testemunho. O jogo da “espoliação” consome riqueza e desencoraja a sua reprodução. Cobiçar a propriedade alheia convida a que um Estado coercivo redistribua a riqueza, ameaçando assim os incentivos de produzir a colheita de amanhã. Levantar falso testemunho enfraquece a comunidade, a credibilidade das administrações, a confiança dos investidores, a rentabilidade de longo prazo e as trocas interpessoais que são tão humanizadoras.

Somente os mercados entregam as encomendas

O desenvolvimento económico está correlacionado com sistemas económicos e políticos alicerçados no primado da lei e no direito de propriedade privada. Os regimes musculados de planeamento central, onde quer que tenham sido tentados, não conseguiram entregar o que lhes foi encomendado. Temos, no entanto, vários exemplos de países, tanto grandes como pequenos (da China à Nova Zelândia e à Irlanda), onde os governos removeram pelo menos algumas barreiras à liberdade económica. Esses países testemunharam níveis impressionantes de crescimento económico, simplesmente por permitirem que as pessoas procurassem melhorar a sua própria situação económica.

A China tem rumado de forma considerável em direção à liberdade económica. Há pouco mais de um ano, a China reviu a sua constituição para permitir que as pessoas possuam, comprem e vendam propriedade privada. Porquê? Um dos problemas com que o governo chinês se deparava era que o facto de as pessoas estarem a comprar e a vender bens apesar de tais operações não serem reconhecidas pelo governo. Isso representava um convite para os funcionários e dirigentes locais extorquirem quem incumpria a lei por fazer negócios. Ao reconhecer o direito de propriedade, o governo central está a tentar enfraquecer a fonte de poder que fomenta a corrupção burocrática a nível local, a qual é muito difícil de monitorizar e controlar centralmente. Esta alteração constitucional é, a meu ver, uma maneira prática de limitar a corrupção e a interferência política desenfreada do governo através de desenvolvimento económico.

Embora esta alteração não tenha resultado de qualquer predisposição política a favor da liberdade, ela pode muito bem abrir o caminho para uma sociedade mais livre. Os benefícios imediatos já são observáveis: 276 empresas do ranking Fortune 500 estão a investir num enorme parque de investigação e desenvolvimento próximo de Pequim, tendo por base contratos de arrendamento a 50 anos com termos bastante favoráveis concedidos pelo governo chinês.

O caso da Irlanda ilustra o princípio de que não é preciso ser um país grande para se enriquecer através da liberalização das políticas económicas do governo. No passado, a Irlanda foi um grande exportador de pessoas. Isso beneficiou principalmente os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, que receberam inúmeros imigrantes irlandeses talentosos que fugiam da vida estupidificante da sua terra natal. Há apenas duas décadas, a Irlanda estava atolada em pobreza do Terceiro Mundo, mas, hoje em dia, já ultrapassa o seu antigo senhor colonial em termos de rendimento per capita, tornando-se um relevante player a nível europeu. De acordo com estatísticas do Banco Mundial, a taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) da Irlanda deu um salto de 3,2% em 1980 para 7,8% na década de 1990. A Irlanda passou recentemente a ter o oitavo maior PIB per capita do mundo, enquanto a Grã-Bretanha se encontra na décima-quinta posição. Ao incentivar o investimento direto estrangeiro (incluindo capital de risco) e ao promover os serviços financeiros e a tecnologia da informação, a Irlanda experimentou uma formidável inversão da fuga de cérebros: os jovens estão a regressar a casa.

Os jovens estão a regressar devido às novas oportunidades possibilitadas pela expansão da liberdade económica na sua terra natal. Eles são um bom exemplo de empreendedores desenrascados, com muito foco no conhecimento, que criam riqueza e desenvolvimento humano não só para o seu país natal, mas também para os Estados Unidos e para todos os restantes países pelo mundo fora. As histórias dessas pessoas demonstram como as más políticas governamentais podem ser alteradas eficazmente de forma a criar novas oportunidades económicas que levam a inversões formidáveis da fuga de cérebros de um país.

Não temos nada a temer

Uma parte essencial do processo de mudança, crescimento e melhoria económica consiste em permitir que os empregos de ontem sigam o caminho da tecnologia de ontem. Impedir as empresas nacionais de fazerem outsourcing não vai impedir os concorrentes estrangeiros de o fazerem. Por meio do outsourcing, os concorrentes estrangeiros serão capazes de reduzir custos, de usar essas economias para reduzir os preços e atualizar a sua tecnologia, conquistando assim uma grande vantagem no mercado.

Um dos exemplos mais conhecidos de outsourcing foi a transferência da indústria têxtil de Nova Inglaterra para o Sul dos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, em resposta aos salários mais baixos nos Estados sulistas. (Como seria de esperar, isso aumentou os salários no Sul, pelo que a indústria acabou por ter de voltar a mudar-se para áreas de baixo custo na Ásia). Porém, os empregos não desapareceram na Nova Inglaterra. O negócio têxtil foi substituído por indústrias de alta tecnologia: informação digital e biotecnologia. Isto resultou em enormes ganhos líquidos para a Nova Inglaterra, ainda que tenha perdido aquela que outrora fora uma indústria importante. Em 1965, Warren Buffett obteve o controlo da Berkshire-Hathaway, uma das indústrias têxteis decadentes de Massachusetts. Ele usou o grande, mas decrescente fluxo de caixa da empresa como plataforma para reinvestir o dinheiro numa série de empreendimentos subvalorizados. Os investimentos obtiveram um sucesso que fez a fama de Buffett, e, 40 anos mais tarde, a sua empresa tem uma capitalização de mercado de 113 biliões de dólares. A mesma transição está a acontecer hoje com a K-Mart e a Sears Roebuck. Nada dura para sempre: à medida que empresas antigas entram em declínio, os seus recursos são desviados para novos empreendimentos.

O National Bureau of Economic Research (Gabinete Nacional de Estudos Económicos) acaba de divulgar um novo estudo sobre investimento doméstico e estrangeiro por parte das multinacionais americanas. O estudo demonstra que, por cada dólar investido num país estrangeiro, essas empresas investem três dólares e meio nos Estados Unidos. Eis a prova de que existe uma relação de complementaridade entre investimento estrangeiro e investimento doméstico: quando um aumenta, o outro também aumenta. A McKinsey and Company estima que, por cada dólar que as empresas americanas terceirizam para a Índia, $1,14 é acrescido em benefício dos Estados Unidos. Cerca de metade desse benefício é devolvido aos investidores e aos clientes, e a maior parte do restante é investido nos novos empregos que são criados. Em contraste, na Alemanha, cada euro investido no exterior gera um benefício de apenas 80% para a economia nacional, principalmente porque o grande número de regulamentações governamentais faz com que a taxa de reemprego dos trabalhadores alemães substituídos seja muito mais baixa.

Estou convicto que, enquanto os Estados Unidos continuarem em primeiro lugar no índice de inovação mundial, não temos nada a temer a respeito do outsourcing, mas muito a temer se os nossos políticos conseguirem opor-se-lhe. De acordo com o Institute for International Economics, mais de cento e quinze mil empregos de elevada remuneração foram criados na área do software durante o período de 1999 a 2003, enquanto setenta mil empregos foram eliminados devido ao outsourcing. Da mesma forma, no setor dos serviços, doze milhões de novos empregos foram criados enquanto dez milhões de empregos antigos estavam a ser substituídos. Este fenómeno de rápida mudança tecnológica e a substituição de empregos antigos por novos é o cerne do desenvolvimento económico.

Ao fazerem outsourcing para o estrangeiro, as empresas americanas poupam dinheiro que lhes permite investir em novas tecnologias e novos empregos, com o objetivo de se manterem competitivas no mercado mundial. Infelizmente, não podemos desfrutar dos benefícios sem incorrer nas dores da transição. Não há dúvida de que mudança é dolorosa. É dolorosa para quem perde o emprego e precisa de mudar de carreira. É dolorosa para quem arrisca investir em novas tecnologias e falha. Mas os benefícios obtidos pelos vencedores geram muitas e novas riquezas para a economia como um todo. Esses benefícios, por sua vez, consolidam-se por todo o mercado através do seu processo de descoberta e da experiência de aprendizagem competitiva.

A globalização não é nenhuma novidade. É uma palavra moderna que descreve um fenómeno humano já muito antigo, uma palavra para a busca de desenvolvimento humano por meio das trocas e da expansão da especialização a nível mundial. É uma palavra pacífica. Nas sábias palavras do grande economista francês Frédéric Bastiat, se os bens não atravessarem fronteiras, os soldados fá-lo-ão.

Palestra proferida em 2005 pelo economista americano Vernon L. Smith, laureado com o Prémio Nobel da Economia em 2002 pelas suas investigações pioneiras ao nível da economia experimental.

O ensaio original pode ser encontrado no livro The Morality of Capitalism ou no site da Foundation for Economic Education.

Tradução: Pedro Almeida Jorge e Guilherme Costa Matos.

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