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Sobre os Deveres dos Ricos para com os Pobres

Jaime Balmes

Filosofia, Ética e Moral, Pobreza e Estado Social, Liberalismo e Capitalismo, Filosofia Política, Direito e Instituições, Excertos e Ensaios

Português

No mundo social, assim como no mundo físico, tudo está admiravelmente ordenado pela mão da Providência; há, no entanto, esta diferença: que no mundo físico, composto de seres privados de razão, e portanto de liberdade, tudo obedece a leis invariáveis, tudo está submetido à inflexível necessidade; enquanto que no mundo social, em que se exerce o livre arbítrio do homem, nada se opõe ao exercício desta faculdade: pode-se escolher o bem ou o mal, a vida ou a morte.

Não estando pois o universo entregue à mercê do acaso, mas achando-se colocado sob a direção desta mão omnipotente, que sem esforço se estende dum ao outro extremo e que tudo dispõe com força e suavidade, é evidente que a sociedade deve estar sujeita a certas leis estabelecidas pelo Criador, independentes da razão e da vontade do homem. Sem dúvida estas leis podem ser violadas, pois que impondo-no-las Deus não quis que ficássemos despojados da nossa liberdade, e deixou-nos a escolha de caminho; reservou-se porém o direito de restabelecer o equilíbrio destruído pela infração destas leis, o que faz punindo esta infração, seja o culpado um indivíduo, uma classe ou a sociedade inteira.

Do mesmo modo que o indivíduo começa já nesta vida a experimentar as funestas consequências da sua má conduta, pela perda da sua saúde, da sua felicidade ou fortuna, ou por torturas morais a que inteiramente se acha entregue; assim também a sociedade, desviando-se do caminho que a sabedoria infinita e inesgotável bondade do Criador lhe traçou, não tarda a experimentar o castigo de seu crime; primeiramente experimenta uma vaga inquietação, depois desordens mais ou menos funestas, mais ou menos prolongadas; e quando se obstina em seus extravios, quando não se dá pressa em entrar no caminho da retidão, logo contra ela se manifesta a cólera do Céu, e a justiça divina cai sobre as gerações culpadas como as torrentes duma lava inflamada.

No número das leis impostas pelo Criador à sociedade, há uma que não se poderá desconhecer, nem obscurecer, nem contestar: é a que impõe às classes elevadas o dever de trabalhar para bem das classes pobres por todos os meios que estejam ao seu dispor. Lei colhida na própria natureza, ditada pelas luzes da razão, formalmente ensinada pelo cristianismo, acrisolada, sancionada, divinizada por esta sublime religião, que faz consistir a lei e os profetas em amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a nós mesmos por amor de Deus. Lei formulada por uma palavra sublime, que o mundo em sua cegueira e seu orgulho se dedigna de empregar, e de que em vão procura representar o profundo sentido pelas palavras humanidade e filantropia; porque esta palavra misteriosa abrange as coisas do céu e da terra, não pode ser encerrada nos estreitos limites da vida presente e estende-se até às regiões da eternidade, palavra suave e doce quando se pronuncia junto dum berço, cheia de consolação e esperança quando soa ao pé dum leito de morte, palavra que passa como uma brilhante cintila através das trevas do túmulo, que liga os vivos e Jerusalém terrestre com a cidade de Deus vivo, as gerações atuais com as que as precederam e que se seguirão, palavra divina que tende a dar a todo o género humano um só coração, uma só alma, mergulhando-o num oceano de luz e de amor no seio do próprio Deus; esta palavra é caridade.

Percorrei as páginas da história, recolhei as lições da experiência, vereis constantemente que as classes que adquiriram riqueza, comodidades, honras, influências e prerrogativas numa sociedade, adquiriram todas estas vantagens como recompensa de serviços prestados; aí vereis igualmente que logo que esqueceram a causa e o fim de sua elevação, começaram a decair e não tardaram a desaparecer.

Aqui, assim como noutros muitos pontos do mundo civilizado, a força e o ascendente do elemento popular, quando não está ligado por benefícios, e ainda mais por virtudes, precipita-se contra todas as alturas sociais, e às vezes passa sobre elas um verdadeiro nível. É por isso que entre certos povos só se encontram alguns vestígios da antiga aristocracia, antes semelhantes aos destroços esparsos duma velha armadura, objeto de curiosidade para o arqueólogo e o sábio, mas impróprios para revestir os membros dum soldado.

E todavia existe ainda uma verdadeira aristocracia, que em verdade não data de época muito antiga, e que pretende fundar a sua superioridade sobre títulos bem diferentes dos que invocam as antigas aristocracias. Já se deixa ver que pretendemos falar da que nasce do comércio ou da indústria, isto é, da aristocracia do ouro. O seu brasão é tanto mais brilhante quanto os seus capitais são mais consideráveis; os seus pergaminhos são as notas do banco; em vez de vos mostrar uma sala antiga, toda coberta de armas e de bandeiras que são como o testemunho do valor e dos feitos de seus antepassados, vos mostra com complacência, como um título irrecusável de nobreza e distinção, o cofre de ferro em que se acha encerrado o seu numerário.

Porém, resulta da própria natureza das coisas, resulta da organização atual da sociedade, que a existências desta aristocracia financeira se tornou como uma necessidade pública; é este um facto contra que nada podem os levantamentos duma classe qualquer, menos ainda as declamações dos jornais e retóricos. Aplicai os princípios mais injustos, procedei em nome das mais absurdas teorias, ensaiai os sistemas mais insensatos, nivelai a fortuna de todos os cidadãos, que todos tenham uma parte igual nos bens acumulados outrora nas mãos dos ricos, fazei reinar a igualdade mais absoluta; pois bem, quando mesmo chegásseis a realizar, por impossível, este criminoso sonho, a dar-lhe ao menos uma existência momentânea, no dia seguinte, que digo eu, um momento depois, esta igualdade teria completamente desaparecido; a prodigalidade duma parte, a avareza doutra, a ignorância e a sagacidade, a incúria e o trabalho, a desordem e a prudência, o jogo e outras abjetas paixões teriam restabelecido o reino das distinções e da desigualdade.

Todas as medidas adotadas para impedir esta desordem seriam estéreis para o conseguir; as riquezas teriam logo mudado de mãos, muitos dos antigos ricos cairiam em extrema pobreza, muitos subiriam à sua antiga hierarquia e a ultrapassariam talvez; porém, em todos os casos, abstraindo-se as pessoas, as coisas ficariam mais ou menos no estado em que hoje estão: haveria sempre pobres e ricos.

Tudo isto prova uma coisa: é que não se deve buscar o remédio dos males da sociedade em certas doutrinas que a abalam por seus fundamentos, e que afinal não propõem outro meio para a sarar senão destruí-la. Quaisquer que sejam as teorias segundo as quais as diferentes escolas explicam o direito de propriedade, quaisquer que sejam as leis e as modificações que as leis e os costumes tenham trazido ao exercício deste direito, o que é certo é que ele existe, que é inviolável e sagrado, que sempre e em todos os países ele foi reconhecido, que é fundado na lei natural, sancionado pela lei divina, invariavelmente inscrito em todas as legislações positivas, imperiosamente reclamado pelos mais caros interesses do indivíduo e da sociedade.

Assim, quando se trata de mudanças, de reformas, de inovações de qualquer natureza que seja, é mister ter sempre os olhos fixos sobre este direito fundamental, ter o maior cuidado em que ele não seja ofendido; porque uma vez posto o pé no inviolável limite que o separa de toda a injustiça, acha-se colocado num pendor resvaladiço e rápido, em que ninguém poderia dar garantias de se conservar.

Porém, a própria importância do direito de propriedade, quero dizer, a grandeza do trono em que se assenta a mais alta personificação da justiça, melhor nos faz compreender e mais vivamente sentir quanto é necessário que ao lado desta divindade severa venha sentar-se uma divindade mais doce, mais amável, mais benfazeja: a caridade. Deus não deu a existência ao género humano, não cobriu a terra que habitamos com tantas riquezas indispensáveis à vida ou simplesmente úteis ou agradáveis, para que um pequeno número de seus filhos se aproveite exclusivamente destas vantagens, sem cuidar daqueles que a Providência despojou destes bens. Os que possuem têm sem dúvida direito de justiça a conservar as suas propriedades; porém, têm um dever não menos rigoroso a preencher que é o de socorrer os seus semelhantes.

A religião cristã adiantou muitos séculos à filosofia no que diz respeito ao amor que devemos a nossos irmãos e à proclamação da fraternidade universal. Sempre se pronunciou, pronuncia e pronunciará até à consumação dos séculos contra toda a ofensa feita ao direito sagrado da justiça; mas ao mesmo tempo inculca aos ricos, duma maneira não menos formal e não menos permanente, a obrigação em que estão constituídos de dar parte dos seus bens aos pobres por intermédio da caridade. Ela diz àqueles que se acham na desgraça e na indigência: Sofrei sem murmurar; diz aos que vivem no seio das riquezas: Dai conforme os vossos bens. Se o rico não obedece a esta ordem, a religião jamais incitará o pobre contra ele, nem o induzirá à usurpação e vingança; volta-se então para o homem sem entranhas, lembra-lhe que o seu juiz está no céu, que há um Deus vingador, cujo ouvido está atento aos desejos do pobre, que os clamores do desgraçado, do indigente, do enfermo, que carece de consolação e socorros, se levam até ao trono do Omnipotente, que o Omnipotente recolhe com amor misturado de indignação os gemidos do infortúnio e se reserva para punir, na outra vida, as almas sem piedade, se é que já na vida presente lhes não faz experimentar os terríveis efeitos da sua cólera, desencadeando sobre elas horríveis catástrofes.

A luta entre as classes pobres e as classes ricas não é um facto particular da nossa época: é de todos os tempos e de todos os países; somente hoje brilha duma maneira mais explícita, por causa da liberdade que há de levantar a voz contra a opressão e a injustiça, e de se queixar altamente das injustiças que se sofrem ou se imaginam sofrer. Outra causa existe deste brilho e nasce dos princípios que se têm espalhado hoje em dia, e que têm por efeito inculcar incessantemente aos homens os sentimentos de igualdade, de tal sorte que não mais possam esquecer o que possa trazer à lembrança as antigas distinções sociais.

Daí vem que os pobres não podem consentir em ver nos ricos nem títulos de nascimento, nem prerrogativas e posição, nem privilégios adquiridos, nem costumes particulares que possam impedir a mistura dos nobres com os plebeus. O pobre não vê entre o rico e ele outra diferença que a do ouro; quando percorre com a vista os diferentes graus que formam a hierarquia social, não pode compreender que esta hierarquia tenha tido outro fundamento que o da sorte; vive na persuasão de que, se amanhã uma fortuna qualquer o puser em posse duma grande riqueza, passaria dum só jato, sem outros preparativos, sem outros títulos de nenhuma outra espécie, da classe mais humilde à classe mais elevada. Uma tal opinião mantém no espírito das classes necessitadas um incessante desejo de adquirir fortuna com uma espécie de inveja contra aquele que já a possui; e como os sentimentos de respeito e de submissão têm sido profundamente alterados no coração dos povos, facilmente passam da inveja ao desprezo, ao rancor, ao ódio.

Quando as classes elevadas se veem sustentadas na sua posição pelas próprias ideias da época, pela organização social, pelo sistema de governo, talvez por algum tempo possam negligenciar os seus deveres para com as classes inferiores, sem por isso serem ameaçadas de imediata ruína. Os numerosos pontos de apoio que têm podem suprir, por mais ou menos tempo, a força intrínseca de que são despojados por sua culpável negligência; porém, se todos estes pontos de apoio chegam a faltar-lhes, quando as classes se achem em presença uma da outra, sem mediador para as conter, sem barreira que as separe, sem outro laço possível que o dos seus interesses respetivos, será preciso que elas apertem estes últimos nós, que façam aliança entre si, que reanimem enfim o espírito de fraternidade, a força de recíprocos benefícios.

É evidente que a impulsão deve principalmente partir das classes ricas, pois elas têm na mão os meios necessários para a dar; ao passo que as classes pobres, privadas de recursos, unicamente ocupadas em procurar o alimento diário, não podem cuidar em formar projetos de melhoramentos, menos ainda de os executar. Seria de desejar que, nas grandes cidades, entre os homens inteligentes e honrosos que sempre possuem em número considerável, se achem alguns que quisessem examinar com cuidado o verdadeiro estado das coisas, para ver se existiriam meios justos e pacíficos de fazer o bem às classes pobres, prevenindo assim convulsões tão funestas a estas como às ricas.

Nisso estaria especialmente interessado todo o governo que tomasse a peito em velar pela felicidade pelo menos pela tranquilidade do povo. As lamentáveis lacerações que a nossa capital tem experimentado teriam podido ser evitadas, segundo cremos, se se houvesse querido remontar à sua origem, e isto nos era tanto mais fácil quanto entre nós as classes pobres, ainda que sofrendo certas privações inseparáveis da sua desgraça, estavam longe ainda de se acharem mergulhadas nesta espantosa miséria que pesa sobre outros países e que incessantemente os coloca entre o embrutecimento da fome e o furor do desespero. Até ao presente, a Providência tem-nos poupado desta espantosa alternativa; e é por isso que importa muito aproveitar que sendo a vida dos pobres menos penosa e menos molesta, acharemos os seus espíritos mais dispostos escutar os conselhos da prudência. Um governo sábio e previdente sempre deveria tomar a iniciativa em semelhante matéria, fundando estabelecimentos e instituições próprias para conduzir ao fim desejado; o seu dever seria sempre pelo menos fomentar e proteger a caridade dos particulares e as obras de beneficência que esta caridade lhes inspira. Porque não basta subjugar com a força das armas; é necessário exercer ascendente sobre os espíritos, convencendo o entendimento, cativando o coração e obrigando-o a reconhecer os beneficios recebidos, por serem em grande e crescente número.

Mas se é honroso para os governos prestar toda a atenção a um assunto tão grave e prover por todos os meios possíveis a semelhantes necessidades, não o seria menos para as classes elevadas, tão profundamente interessadas nos resultados, entrar com tanto ardor como generosidade na via que lhes seria aberta ou, melhor ainda, empreender por seu motu proprio a obra da salvação comum. Se a impulsão não parte senão do governo, é de temer que participe dos inconvenientes das coisas que se fazem por ordem e sem liberdade, é de temer que um pensamento muito salutar em si mesmo não seja realizado senão duma maneira incompleta, incerta e portanto passageira e estéril.

Seria pois de desejar que a classe rica se acostumasse a nada esperar doutrem e contasse unicamente com seus próprios recursos para adotar e por em prática as medidas de prudência e de humanidade que seu dever lhe dita e que a situação lhe aconselha. Há uma verdade que já formulámos noutra ocasião e que ainda hoje devemos repetir: o dever e o interesse dos ricos em relação ao pobres consistem em os tornar melhores fazendo-lhes bem. Tornam-se melhores propagando entre eles princípios de moralidade, mas duma moralidade real, prática, e esta não poderá ser tirada senão das convicções religiosas. Fazem-lhes bem, patenteando-lhes um espírito de desinteresse e compaixão, fazendo-se em seu favor sacrifícios que a caridade reclama e que a posição permite, obedecendo, tanto quanto ser possa, a estes sentimentos ternos e generosos que espontaneamente nascem em nosso coração à vista do infortúnio. Procedei de modo que o pobre, pensando em vós, se lembre ao mesmo tempo dos socorros de vós recebidos durante suas doenças, dos sacrifícios que fizestes para assegurar a educação e o futuro dos seus filhos; tornai visível o interesse que tomais pelo trabalhador enfermo, pelo órfão sem arrimo, pelo velho já incapaz de granjear meios de subsistência, e não perdereis o fruto duma tal conduta. Verdade é que há ingratos pelo mundo; porém a ingratidão não é a lei da humanidade.

Ensaio do filósofo e teólogo espanhol Jaime Balmes, em tradução livre da autoria de João Vieira, retirada da obra Miscellanea religiosa, philosophica e litteraria, publicada originalmente em 1877. O original em espanhol pode ser lido neste volume das obras completas de Balmes.

Revisão: Pedro Almeida Jorge.

Colaboração na edição: Alexandre de Sá e Inês Gregório.

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