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Édito para a Supressão das Guildas e Corporações

A.R.J. Turgot

Empreendedorismo, Concorrência e Regulação, Excertos e Ensaios, Intervencionismo e Protecionismo, Liberalismo e Capitalismo, História

Português

 

ÉDITO REAL

Visando a supressão das Guildas e Corporações de Comércio, Artes e Ofícios

Feito em Versalhes no mês de Fevereiro de 1776

Registado no Parlamento a 12 de Março do mesmo ano


LUÍS, PELA GRAÇA DE DEUS REI DE FRANÇA E DE NAVARRA: A todos, presentes e vindouros: SAUDAÇÕES. Cabe-nos garantir a todos os nossos súbditos o gozo pleno e cabal dos seus direitos. E cabe-nos, sobretudo, garantir tal protecção àquela classe de homens que, dispondo apenas do seu trabalho e da sua indústria, maior necessidade e direito têm de empregar, em toda a sua extensão, os únicos meios de subsistência de que dispõem.

Temos assistido com mágoa aos constantes atropelos infligidos a este direito natural e comum pelas instituições antigas – antigas, decerto, mas que nem o tempo, nem a opinião, nem os próprios actos emanados da autoridade, que parece tê-las consagrado, conseguiram legitimar.

Em quase todas as cidades do nosso reino, o exercício das diferentes Artes e Ofícios está concentrado num pequeno número de Mestres organizados em corporações, capazes de por si só, excluindo os restantes cidadãos, fabricar ou vender os objectos comerciáveis de que têm o privilégio exclusivo. De tal modo assim é que aqueles dos nossos súbditos que, por gosto ou necessidade, queiram exercer artes e ofícios só o conseguirão acedendo a tal corporação, para o que terão que prestar provas tão longas e penosas quanto supérfluas e pagar direitos ou satisfazer exigências crescentes, onde uma parte dos fundos de que careceriam para montar o seu negócio ou oficina, ou até para a própria subsistência, serão esterilmente consumidos.

Os que não têm meios para cobrir estas despesas estão condenados a uma subsistência precária, sob a autoridade dos Mestres, e a definhar na indigência ou a levar para fora da sua pátria uma indústria que poderiam ter tornado útil ao Estado.

[No presente sistema,] nenhuma classe de cidadãos pode exercer o direito de escolher os operários que quer empregar e todas se encontram privadas das vantagens que a concorrência lhes traria pelo abaixamento dos preços e pela perfeição do trabalho. É raro conseguir que o trabalho mais simples seja feito sem recorrer a vários operários de diferentes corporações, e sem sofrer os atrasos, os incumprimentos, as exigências destinadas a garantir ou favorecer a existência ou as pretensões destas diferentes confrarias e os caprichos do seu regime arbitrário e interesseiro.

Assim, as consequências deste estado de coisas são, para o Estado, uma diminuição incalculável do comércio e da indústria; para uma parte significativa dos nossos súbditos, uma quebra nos salários e nos meios de subsistência; para a generalidade dos habitantes das cidades, a sujeição a privilégios exclusivos, com consequências em tudo idênticas às de um efectivo monopólio: monopólio este que aqueles mesmos que o praticam também dele são vítimas, sempre que, por sua vez, necessitam de mercadorias ou do trabalho doutra corporação.

Estes abusos foram surgindo gradualmente. Começaram por ser obra do interesse dos particulares que os impuseram ao público. Muito tempo passou até a autoridade, ora surpreendida, ora seduzida por uma aparência de legalidade, lhes conferir uma espécie de sanção.

A raiz do mal está na própria faculdade conferida aos oficiais de um mesmo ofício de se agruparem e criarem um corpo.

Terá sido quando as cidades começaram a libertar-se da servidão feudal e a constituir comunas que a facilidade em classificar os cidadãos de acordo com as respectivas profissões introduziu este uso até então desconhecido. As diferentes profissões passaram assim a formar como que comunidades particulares, as quais constituíam a comunidade geral: as confrarias religiosas, ao reforçarem os laços que uniam as pessoas de uma mesma profissão, proporcionaram-lhes  oportunidades mais frequentes de se reunirem e de, nessas reuniões, tratarem do interesse comum dos membros da sociedade em causa; interesse esse prosseguido activamente em detrimento dos interesses da sociedade em geral.

As comunidades, uma vez formadas, trataram de elaborar estatutos e, pretextando razões de bem público, conseguiram que estes fossem aprovados pela Autoridade.

Na base dos estatutos está, antes do mais, a faculdade de privar quem não seja membro da comunidade do direito de exercer a profissão; a ideia geral é a de restringir, o mais que puderem, o número de Mestres, e tornar a obtenção deste grau uma dificuldade quase inultrapassável para quem não seja filho de actuais Mestres. É esse o fito da multiplicidade de custas e formalidades de admissão, das dificuldades das provas finais sempre avaliadas arbitrariamente e da carestia e extensão inúteis das aprendizagens a que acresce o estatuto de servidão prolongada dos oficiais, estatutos estes (dos oficiais e dos ajudantes) que visam ainda propiciar gratuitamente aos Mestres o benefício, durante vários anos, do trabalho dos aspirantes.

As corporações trataram sobretudo de afastar do seu território as mercadorias e a produção dos forasteiros: invocaram a pretensa vantagem de banir do comércio as mercadorias supostamente mal fabricadas. Esta razão levou-as a pedir para elas próprias regulamentos de um novo tipo, destinados a estipular a qualidade das matérias-primas, o seu uso e o seu processo de fabrico. Estes regulamentos, cujo cumprimento os Oficiais das corporações passaram a garantir, conferiram-lhes uma autoridade que se tornou num meio de não somente afastarem mais firmemente os forasteiros, com a ameaça de multas, mas ainda de submeter os próprios Mestres da corporação ao domínio dos Chefes e forçá-los, pelo medo de lhes serem aplicadas multas, a nunca distinguirem os seus interesses dos da corporação, tornando-se, assim, cúmplices de todas as manobras que o espírito de monopólio pudesse inspirar aos principais membros da corporação.

De entre as disposições desproporcionadas e infinitamente diversificadas destes estatutos, sempre destinadas a salvaguardar o interesse dos Mestres de cada corporação, há as que excluem em absoluto todos os que não sejam filhos, ou tenham desposado as viúvas, dos Mestres.

Outras rejeitam todos os que designam de estrangeiros, ou seja, os que nasceram noutra cidade.

Em grande parte das corporações, basta casar para ser afastado da aprendizagem e  consequentemente de conseguir atingir o grau de Mestre.

O espírito monopolista que presidiu à elaboração destes estatutos chegou ao extremo de excluir as mulheres das profissões mais adequadas ao seu sexo, como o bordar, que não podem exercer por sua conta.

Não vamos continuar a enumerar as disposições bizarras, tirânicas, contrárias à humanidade e aos bons costumes, que enxameiam estas espécies de códigos obscuros, escritos pela avidez, adoptados sem escrutínio em tempos de ignorância e a que apenas faltou, para serem objecto de indignação pública, o serem conhecidos.

No entanto, estas corporações conseguiram ver reconhecidos em todas as principais cidades os seus estatutos e os seus privilégios, às vezes através de Cartas dos nossos antecessores, obtidas sob vários pretextos ou mediante o pagamento de taxas e cuja confirmação tiveram que ir conseguindo de reinado em reinado; frequentemente através de sentenças dos nossos tribunais, algumas vezes por simples decisões administrativas ou até pela consagração do costume.

Enfim, acabou por prevalecer o hábito de ver nestes entraves colocados à indústria um direito comum. O Governo habituou-se a ver neles uma fonte de financiamento resultante das taxas aplicadas a estas corporações e à multiplicação dos seus privilégios.

Deus, ao conferir necessidades aos homens, ao lhes tornar necessário o trabalho, fez com que o direito a trabalhar se tornasse propriedade de cada homem; a primeira, a mais sagrada e a mais imprescritível de todas as propriedades.

Por isso, estamos decididos a não confirmar e a expressamente revogar os privilégios concedidos pelos nossos antecessores às corporações de mercadores e artesãos e a estender esta revogação a todo o nosso Reino, pois cabe-nos administrar a justiça por igual a todos os nossos súbditos.

...

POR ESTAS CAUSAS e outras que tivemos em consideração; de acordo com o nosso Conselho e nossa ciência certa, total poder e autoridade real, por este Édito perpétuo e irrevogável dissemos, estatuímos e ordenámos; dizemos, estatuimos e ordenamos, queremos e desejamos o que segue:

 

Artigo Primeiro

Todas as pessoas, quaisquer que sejam a sua qualidade e condição, incluindo todos os Estrangeiros, mesmo que desprovidos das nossas Cartas de naturalização, são livres de abraçar e exercer em todo o nosso reino, nomeadamente na nossa boa cidade de Paris, toda a espécie de Comércio e toda a profissão de Artes e Ofícios que bem lhes aprouver; até acumular várias: em vista do que extinguimos e suprimimos e estamos a extinguir e a suprimir todos os Corpos e Corporações de Mercadores e Artesãos, assim como os Mesteres[1] e Guildas[2]. Abolimos todos os Privilégios, Estatutos e Regulamentos outorgados aos ditos Corpos e Corporações, com cujo fundamento nenhum dos nossos súbditos poderá ser incomodado no exercício do seu comércio e da sua profissão, quaisquer que sejam a causa ou o pretexto.

...


[1]MESTER Tal como a expressão “ofício” de que é sinónimo, “Mester” revestiu a partir do sec. XV dois sentidos diversos: o de profissão e o de agrupamento corporativo de várias profissões. Neste último sentido, corresponde às designações, também correntes, de corporações, bandeiras e grémios; é a ele que se refere Fernão Lopes ao definir a Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa como corpo representativo dos doze Mesteres da cidade. Os membros dos Mesteres designavam-se “mesteirais”. (Cf. Verbo-Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura)

[2]GUILDA Associação medieval de feição cristã, destinada a proteger, designadamente pela entreajuda, interesses meramente espirituais, ou espirituais e materiais dos seus membros. Pelo sec. XI, surgem as Guildas ditas de ofícios, dentro das quais se podem distinguir as Guildas de mercadores e as Guildas de artífices. Estas últimas, de carácter local, visavam a protecção e disciplina dos ofícios mecânicos (v.g. Guilda dos tecelões de Mogúncia, 1099). Já as de mercadores, cujos membros também se uniam para mutuamente se protegerem (nas suas actividades mercantis, dadas as condições de insegurança), obtiveram por vezes privilégios estatutários, tais como o monopólio do comércio local. As Guildas de mercadores transformaram-se, posteriormente, em agrupamentos de feição já capitalista, pelas crescentes necessidades de financiamento. Muitas destas Guildas aliaram-se então, constituindo poderosas Hansas – em face das quais (por reacção natural de sobrevivência), os pequenos comerciantes se associaram, por seu turno, em moldes cujo carácter de certo modo se assemelhava ao das Guildas primitivas (Cf. Verbo-Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura)

Aqui apresentamos a tradução de parte do preâmbulo e do primeiro artigo do famoso Édito para a Supressão das Guildas e Corporações, escrito e proposto por Anne Robert Jacques Turgot (1727-1781), Barão de l'Aulne, economista e Controlador Geral das Finanças de Luís XVI.

Turgot empreendeu grandes reformas liberais em matéria económica, inspiradas pelas doutrinas fisiocráticas –ainda que também ele tenha sido um pensador original, como se pode confirmar pelas suas famosas Reflexões Sobre a Formação e a Distribição das Riquezas (1766), dez anos anteriores à Riqueza das Nações de Adam Smith. Aboliu as alfândegas internas e quis estabelecer, por meio do presente Édito, a liberdade de comércio e indústria pela via da supressão dos Mesteres e das Guildas, que representavam o corporativismo económico da época.

Porém, esta sua iniciativa legislativa entrou em confronto com os grupos privilegiados e acabou por determinar a sua demissão no mesmo ano de 1776. Anos mais tarde, em plena Revolução, a Lei de Allarde (1791) acabaria por implementar semelhantes medidas, com directa referência ao Édito de Turgot. A obstinação dos privilegiados custou a cabeça ao rei...

Tradução: José Mendes Lopes

Narração: Mário Redondo

Edição: Pedro Almeida Jorge

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