Milton Friedman , Rose Friedman
Excertos e Ensaios, Economia, História, Liberalismo e Capitalismo, Intervencionismo e Protecionismo, Nível Introdutório, Liberalismo no Feminino
Desde o estabelecimento da primeira colónia de europeus no Novo Mundo que a América tem sido um íman para os que procuram aventura, fogem da tirania, ou simplesmente tentam proporcionar aos seus uma vida melhor.
A pequena afluência inicial aumentou depois da Revolução Americana e da criação dos Estados Unidos da América, e tornou-se numa corrente continua no século XIX, quando milhões de pessoas atravessaram o Atlântico, e um número menor o Pacífico, fugindo da miséria e tirania, atraídos pela promessa de liberdade e abundância.
Quando chegaram, não encontraram ruas cobertas de ouro, não encontraram uma vida fácil. Encontraram, sim, a liberdade e uma oportunidade para aproveitar as suas aptidões. Através do trabalho árduo, do engenho, da parcimónia e da sorte, a maior parte deles conseguiu realizar os seus sonhos e ambições, encorajando os amigos e familiares a reunirem-se-lhes.
A história dos Estados Unidos é a história de um milagre económico e outro político, que só foram possíveis por terem sido postos em prática dois conjuntos de ideias – ambos, por curiosa coincidência, formulados em documentos publicados no mesmo ano, 1776.
Um dos conjuntos de ideias é expresso em A Riqueza das Nações, a obra-prima que fez do escocês Adam Smith o pai da economia moderna. Analisa a maneira como um sistema de mercado pode combinar a liberdade dos indivíduos que têm determinados objectivos com a colaboração extensiva e cooperação necessária ao campo económico, para produzir a nossa alimentação, vestuário e habitação. A opinião de Adam Smith é que, numa troca, ambas as partes podem beneficiar e que, desde que a cooperação seja estritamente voluntária, a troca só se verificará quando as duas partes beneficiarem. Não é necessária força exterior, coacção ou violação da liberdade para conseguir a colaboração dos indivíduos quando o objectivo a atingir os beneficia. É por isso que, tal como Adam Smith diz, um indivíduo que «só está a pensar no seu próprio ganho» está «a ser guiado por uma mão invisível a atingir um fim que não fazia parte das suas intenções. Nem nunca será muito mau para a sociedade que ele não fizesse parte das suas intenções. Ao tentar satisfazer o seu próprio interesse, promove frequentemente de uma maneira mais eficaz o interesse da sociedade do que quando realmente o pretende fazer. Nunca vi nada de bom feito por aqueles que se dedicaram ao comércio pelo bem público.»
O segundo conjunto de ideias está expresso na Declaração de Independência escrita por Thomas Jefferson para exprimir o sentimento geral dos seus compatriotas. Proclamava uma nova nação, a primeira na história assente no princípio de que todas as pessoas têm o direito de defender os seus próprios valores: «Estas verdades são evidentes, todos os homens são iguais, o seu Criador deu-lhes direitos inalienáveis, entre os quais estão a vida, a liberdade e a procura de felicidade.»
Ou, tal como quase um século mais tarde exprimiu de forma mais extrema John Stuart Mill:
O único fim em que é legítimo que a humanidade, individual ou colectivamente, interfira com a liberdade de acção de outrem, é a autodefesa... O poder só é legitimamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra sua vontade, quando estiver em causa o bem-estar dos outros. O seu próprio bem-estar, seja físico ou moral, não é motivo suficiente... A única parte da conduta de uma pessoa em relação à qual ela é responsável perante a sociedade é no que diga respeito aos outros. Na parte que somente diga respeito a si própria, a sua independência é, por direito, absoluta. O indivíduo é soberano em relação a si próprio, à sua cabeça e ao seu espírito. (On Liberty)
Muita da história dos Estados Unidos gira à volta da tentativa de levar os princípios da Declaração da Independência à prática, pela luta contra a escravatura, finalmente resolvida com uma sangrenta guerra civil, até à subsequente tentativa de promover a igualdade de oportunidades, e à mais recente tentativa de conseguir igualdade de resultados.
A liberdade económica é um requisito essencial para a liberdade política. Permitindo às pessoas cooperar umas com as outras sem coacção ou direcção central, é reduzida a área sobre a qual o poder político é exercido. Além disso, através da dispersão do poder, consegue-se que o mercado livre sirva de contrapeso a qualquer concentração de poder que apareça. A combinação de poder económico e político nas mesmas mãos é uma receita certa para a tirania.
A combinação de liberdade económica e política teve como resultado uma era dourada tanto nos Estados Unidos como na Grã-Bretanha, no século XIX. Os Estados Unidos prosperaram ainda mais do que a Grã-Bretanha. Começou com um programa claro: poucos vestígios de classes e status; poucas medidas restritivas do Governo; um campo mais fértil para a energia, transportes e inovação; e um continente vazio para conquistar.
A fecundidade da liberdade é demonstrada dramática e claramente na agricultura. Quando a Declaração da Independência foi promulgada, pouco menos do que três milhões de pessoas de origem europeia e africana (excluindo os índios nativos) ocupavam uma estreita franja ao longo da costa leste.
A agricultura era a principal actividade económica. Eram precisos 19 de 20 trabalhadores para alimentar os habitantes do país e garantir um extra para exportar em troca de mercadoria estrangeira. Hoje [1980] são precisos menos do que 1 em cada 20 trabalhadores para alimentar os 222 milhões de habitantes e para garantir um excedente que faz com que os Estados Unidos sejam o maior exportador de alimentação do mundo.
Como se explica este milagre? Certamente que não é a direcção central de um governo – nações como a Rússia e seus satélites, China, Jugoslávia e Índia, que hoje assentam na direcção central, empregam entre um quarto e metade dos seus trabalhadores na agricultura, e no entanto apoiam-se frequentemente na agricultura dos Estados Unidos para evitar a subalimentação maciça. Durante a maior parte do período da rápida expansão agrícola nos Estados Unidos, o Governo desempenhou um papel de negligência. Eram disponibilizadas terras – mas terras que se encontravam improdutivas. Depois de meados do século XIX, criaram-se universidades onde se ensinava agricultura e se disseminava informação e tecnologia, através de financiamentos de organismos governamentais. Não há dúvida, contudo, que a principal fonte da revolução agrícola foi a iniciativa privada que operava num mercado livre aberto a todos – com excepção para a vergonha da escravatura. E o crescimento mais rápido verificou-se depois da abolição da escravatura. Os milhões de imigrantes de todo o mundo puderam passar a trabalhar para si próprios, como lavradores independentes ou homens de negócios, ou passaram a trabalhar para outrem por mútuo acordo. Eram livres de experimentar novas técnicas – o risco era seu se as experiências falhassem, e os lucros também, se fossem bem sucedidos. Recebiam pouca assistência da parte do Governo. E, ainda mais importante, também não encontravam grandes interferências da sua parte.
O Governo começou a desempenhar um papel mais importante na agricultura durante e depois da Grande Depressão dos anos 1930. A princípio a sua função era restringir a produção de forma a manter os preços artificialmente altos.
O crescimento da produtividade agrícola dependia do acompanhamento da Revolução Industrial, estimulado pela liberdade. Depois vieram as novas máquinas que revolucionaram a agricultura. Contrariamente, a Revolução Industrial dependia da disponibilidade da força humana, dispensada pela revolução agrícola. Indústria e agricultura caminhavam de mãos dadas.
Já Smith e Jefferson tinham concluído que o poder governamental concentrado era um grande perigo para o homem comum: viram que a protecção do cidadão contra a tirania do Governo era uma necessidade constante. Esta era a meta da Declaração de Direitos de Virgínia (1776) e da Bill of Rights dos Estados Unidos (1791); o propósito da separação de poderes na Constituição norte-americana; a força que se movia por trás das mudanças na estrutura legal britânica desde a Magna Carta, do século XIII até ao fim do século XIX. Para Smith e Jefferson, o papel do Governo era o de árbitro, não o de participante. O ideal de Jefferson, tal como o expressou no seu discurso inaugural (1801), era «um Governo sensato e frugal que impedirá os homens de se prejudicarem mutuamente, que os deixará, por outro lado, livres para regular os seus próprios desígnios de indústria e desenvolvimento».
Ironicamente, o verdadeiro êxito da liberdade económica e política fez diminuir o interesse dos pensadores posteriores. O Governo limitado dos fins do século XIX possuía pouco poder concentrado que pusesse em perigo o homem comum. O reverso da medalha era que possuía pouco poder que permitisse às boas pessoas praticar o bem. E num mundo imperfeito existiam ainda muitos males. Claro que o verdadeiro progresso da sociedade fazia parecer ainda mais abjectos os males residuais. Como sempre, as pessoas tomavam como certo o desenvolvimento favorável. Esqueciam o perigo para a liberdade que era um Governo forte. Em vez disso, eram atraídas pelo bem que um Governo mais forte podia trazer – isto se o poder governamental estivesse nas «mãos certas».
Estas ideias começaram a influenciar a política governamental na Grã-Bretanha no princípio do século XX. Foram ganhando apoio entre os intelectuais dos Estados Unidos, mas tiveram pouco efeito na política governamental até à Grande Depressão, no começo dos anos 30. Tal como se mostra no capítulo III, a depressão foi provocada por um fracasso do Governo numa área – o dinheiro – onde sempre, desde o início da República, exercera a sua actividade. Contudo, a responsabilidade do Governo na depressão não foi reconhecida – nem então, nem agora. Em vez disso, a depressão foi largamente interpretada como um falhanço do mercado livre capitalista. Esse mito levou o público a juntar-se aos intelectuais numa mudança de perspectiva em relação às responsabilidades relativas dos indivíduos e do Governo. A ênfase na responsabilidade do indivíduo pelo seu próprio destino foi substituída pela ênfase do indivíduo enquanto peão empurrado por forças que não consegue controlar. O ponto de vista de que o papel do Governo é funcionar como árbitro para impedir os indivíduos de exercerem coacção uns sobre os outros foi substituído pelo ponto de vista de que o papel do Governo é funcionar como um tutor encarregado de obrigar alguns a ajudar os outros.
Estes pontos de vista dominaram os desenvolvimentos dos Estados Unidos durante o último meio século. Levaram a um crescimento do Governo a todos os níveis, assim como a uma transferência de poder dos governos e controlos locais para os governos e controlos centrais. O Governo tem levado a cabo a tarefa de tirar a alguns para dar a outros, tudo em nome da segurança e da igualdade. Estabeleceu-se uma política governamental atrás de outra, de forma a «regular» os nossos «desígnios de indústria e desenvolvimento», utilizando as palavras de Jefferson.
Estes desenvolvimentos ficaram a dever-se a boas intenções com uma grande dose de interesse próprio. Mesmo os mais acérrimos defensores do Estado paternal e de bem-estar concordam que os resultados têm sido desapontantes. Na esfera governamental, à semelhança do mercado, parece também haver uma mão invisível, mas que opera precisamente na direcção oposta da mão invisível de Adam Smith: um indivíduo que tenciona unicamente servir o interesse público através da intervenção governamental é «levado por uma mão invisível a promover» interesses privados, «que não faziam parte da sua intenção». Esta conclusão é provada inúmeras vezes quando examinamos, nos capítulos seguintes, as diversas áreas em que o poder governamental tem sido exercido – seja para atingir a segurança (cap. IV), ou a igualdade (cap. V), para promover a educação (cap. VI), proteger o consumidor (cap. VII), ou o trabalhador (cap. VIII), ou para evitar a inflação e promover o emprego (cap. IX).
Até aqui, nas palavras de Adam Smith, «o esforço constante, uniforme e ininterrupto de todo o homem com vista a melhorar a sua condição, o princípio de onde a opulência pública e nacional, assim como a privada, derivam» tem sido «suficientemente forte para manter o progresso natural das coisas em relação ao desenvolvimento, apesar tanto da extravagância dos Governos como dos maiores erros de administração. Tal como o princípio desconhecido da vida animal restaura frequentemente a saúde e o vigor da constituição, apesar não só da doença mas também das prescrições absurdas do médico». Quer dizer que a mão invisível de Adam Smith tem sido suficientemente poderosa para ultrapassar os efeitos mortíferos da mão invisível que opera na esfera política.
A experiência de anos recentes – o crescimento lento e o declinar da produtividade – levantam a dúvida de se o engenho privado conseguirá continuar a ultrapassar os efeitos mortíferos do controlo do Governo, se continuarmos a entregar a este último cada vez mais poder e a autorizar a «nova classe» de funcionários públicos a gastar cada vez maiores fracções do nosso rendimento, supostamente em nosso próprio benefício. Mais cedo ou mais tarde – e talvez mais cedo do que muitos de nós esperam – um Governo ainda mais forte destruirá tanto a prosperidade que devemos ao mercado livre como a liberdade humana tão eloquentemente proclamada na Declaração da Independência.
Ainda não chegámos ao beco sem saída. Ainda somos, enquanto povo, livres para escolher se queremos continuar a percorrer «o caminho para a servidão», como Friedrich Hayek intitulou o seu profundo livro, ou se queremos limitar o Governo e confiar mais fortemente na cooperação voluntária entre os indivíduos livres, de forma a conseguirmos atingir os nossos vários objectivos. Irá a nossa era dourada atirar-nos para a tirania e miséria que sempre tem sido, e continua a ser, o estado da maior parte da Humanidade? Ou teremos a sensatez, a visão, a coragem de mudar o nosso rumo, de aprender com a experiência e de tirar partido do «renascer da liberdade»?
Se quisermos escolher sensatamente, temos de compreender os princípios fundamentais do nosso sistema: tanto os princípios económicos de Adam Smith, que explicam como um sistema complexo, organizado, e perfeitamente funcional pode desenvolver-se e florescer sem direcção central, e como uma coordenação se pode conseguir sem recorrer a coacção (cap. I); como os princípios políticos expressos por Thomas Jefferson (cap. V). Temos de entender porque é que as tentativas de substituir a cooperação pela direcção central podem tornar-se tão nefastas (cap. II). Temos de compreender também a relação íntima que existe entre a liberdade política e a liberdade económica.
Felizmente, a maré está a mudar. Nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha, nos países da Europa Ocidental e em muitos outros países do mundo há um reconhecimento crescente dos perigos de um Estado grande e uma insatisfação crescente com as políticas que têm sido seguidas. Esta mudança tem-se reflectido não só na opinião mas também na esfera política. Está a tornar-se politicamente vantajoso para os nossos representantes cantar num tom diferente e talvez agir também de modo diferente. Estamos a assistir a uma nova mudança na opinião pública. Temos a oportunidade de encaminhar a mudança de opinião para uma confiança maior na iniciativa individual e na cooperação voluntária, mais do que para o outro extremo do colectivismo total.
No nosso capítulo final, expomos as razoes por que, num sistema político supostamente democrático, os interesses especiais prevalecem sobre o interesse geral. Expomos o que devemos fazer para corrigir aquilo que no nosso sistema é responsável por este resultado, como podemos limitar o Governo, permitindo-lhe contudo desempenhar as suas funções essenciais de defender a nação de inimigos externos, de nos proteger da coacção exercida por outros cidadãos, de servir de juiz nas nossas disputas e de nos permitir chegar a acordo sobre as regras que devemos seguir.
Introdução ao clássico liberal Free to Choose, de Milton e Rose Friedman, que "converteu" milhares de pessoas à defesa da liberdade económica desde o seu lançamento no final dos anos 70.
Tradução de Ana Maria Sampaio, incluída em Liberdade Para Escolher, Publicações Europa-América, 1980.
Colaboração na transcrição: Ana Santos Fernandes.
Revisão: Pedro Almeida Jorge.
Uma nova edição em português encontra-se disponível em ebook na editora Lua de Papel.
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