História, Liberalismo e Capitalismo, Socialismo e Comunismo, Pobreza e Estado Social, Excertos e Ensaios
A defesa póstuma do comunismo tem por objectivo complementar pôr em causa o liberalismo dado que reabilitar o comunismo enquanto tal era uma tarefa difícil, senão mesmo impossível. Procurou-se então defender a sua causa de forma indirecta, mostrando que o seu contrário, o liberalismo, era ainda pior do que ele. Independentemente da nobreza das intenções que o inspiraram, o comunismo teve então o mérito de barrar a dominação única do liberalismo e de limitar os seus estragos. Agora que o dique comunista foi rompido, o mal liberal encontra-se à solta por todo o lado. Com o seu corolário da globalização, mergulha a humanidade na miséria ou, pelo menos, na injustiça.
Assim afirma-se, um ou dois anos após a desagregação da Europa comunista, um «pensamento único» segundo o qual, para retomar a frase de um socialista, membro do governo de Lionel Jospin, «o século XX terá visto o fracasso do liberalismo». A alguns ingénuos foi possível extrair da observação dos factos a vaga impressão que o século XX havia antes visto o fracasso das economias dirigidas. Segundo os testemunhos e os historiadores, as economias que mais tragicamente foram mal sucedidas foram, segundo parece, a da Rússia de Estaline e de Brejnev ou a da China do Grande Salto em frente. Entre os países em vias de desenvolvimento, os que se encontravam em pior estado pareciam ser aqueles que tinham copiado as receitas soviéticas ou maoístas. À primeira vista, estávamos inclinados a acreditar que a vida, após 1945, teria sido mais suportável na Holanda do que na Bulgária, em França ou em Itália do que na Roménia ou na Polónia; na Alemanha Ocidental do que na Alemanha de Leste; na Coreia do Sul do que na Coreia do Norte e mesmo na Índia do que na China.
Ora bem, temos de nos livrar das ciladas destas apreciações superficiais! O que a decomposição do comunismo provou é que o liberalismo não é viável. Em França qualifica-se geralmente de «pensamento único» o discurso dos partidários da moeda europeia e da globalização, logo de um certo liberalismo. Mas, a julgar pela quantidade das opiniões expressas em sentido contrário, o pensamento único não será antes o dos inimigos do liberalismo? Em todo o caso, raramente vimos publicados tantos livros e de serem exprimidas tantas opiniões que o condenam como nos anos que se seguiram ao fim do socialismo real e do dirigismo colectivista, devido à sua bancarrota. Nunca experiência alguma terminou num tão curto prazo e com um fracasso tão absoluto, tão autónomo, consequência apenas dos seus vícios internos e não de quaisquer factores externos – cataclismo natural, epidemia ou derrota militar.
A causa parecia tanto mais compreendida quanto as versões democráticas do socialismo ou fracassaram ou viram-se obrigadas a empreender uma revisão dilacerante. Foi o caso do trabalhismo britânico após 1980, da «ruptura com o capitalismo» à francesa após 1983, da social-democracia sueca entre 1985 e 1990.
Portanto, vinte anos depois da conversão da China ao mercado, dez anos após a queda do Muro de Berlim, oito anos passados sobre o fim da URSS, o maior ensinamento a tirar da História do século XX, parece ser, não a condenação do colectivismo, mas do liberalismo! Nos meios de comunicação, entre os intelectuais, nos meios políticos, o liberalismo torna-se, portanto, sistematicamente um ultraliberalismo, um liberalismo selvagem, diga-se desenfreado. Mesmo a direita clássica aceita e utiliza o lugar-comum segundo o qual o liberalismo seria uma «selva», de acordo com a expressão utilizada por Alain Juppé (declaração à RTL em 27 de Maio de 1997). Os mais liberais dos homens políticos franceses não ousam mesmo reclamarem-se de Margaret Thatcher, preferindo colocar-se sob a égide de Tony Blair. Em 1994, um médico politólogo, Jean-Christian Rufin, publica sem pestanejar nem fazer rir um livro intitulado La Dictadure libéral.[1] Em 1997, um dirigente gaullista, Philippe Séguin, volta o ridículo contra os socialistas: são eles, brada, que desencadearam a «ditadura do liberalismo». (...) Mesmo no domínio cultural, o mercado é o mal. Em Le Monde (15 de Fevereiro de 1997), Philippe Dagen apelida, mais coisa menos coisa, de nazi o maior historiador ainda vivo de literatura e arte do século XVII, Marc Fumaroli, o qual tinha ousado levantar-se contra a concepção de uma cultura inteiramente dirigida pelo Estado e financiado com os seus estipêndios. (…)
Não é só em França que estas frivolidades ocorrem. O ministro alemão do Trabalho da CDU, Norbert Blüm, declara: «A economia de mercado não é aceitável a menos que proporcione um equilíbrio entre a concorrência e a solidariedade» (Time de 7 de Julho de 1997). Isto é esquecer que os únicos Estados que tiveram a vontade e os meios para construir um Estado-providência real e eficaz com segurança social, prestações familiares, subsídio de desemprego, reformas, em suma, todo o arsenal de prestações substanciais e efectivamente pagas, são as grandes economias capitalistas. Portanto, as sociedades liberais nunca são «selvagens». Antes pelo contrário, são os únicos Estados de direito, os únicos onde a economia está enquadrada por princípios jurídicos severos e com aplicação efectiva. A ignorância histórica dos nossos contemporâneos torna-se por vezes abissal. Assim, o multimilionário George Soros, americano de origem húngara, condena o capitalismo num artigo publicado nos princípios de 1997 em The Atlantic, porque, segundo ele, durante a sua infância na Europa, ele assistiu ao liberalismo originar o desemprego e o desemprego originar o totalitarismo. Ora, o desemprego não se encontra na origem da instauração nem do bolchevismo russo em 1917-1918, nem do fascismo italiano em 1922. Desempenha um papel na chegada de Hitler ao poder em 1933, mas como sendo um de muitos outros factores bastante mais importantes. Não obstante, a crise económica e o desemprego dos anos 30 fizeram reagir em dois outros países não negligenciáveis um movimento não em direcção à extrema-direita, mas em direcção à esquerda: a França, com a Frente Popular de Léon Blum, os Estados Unidos, com a New Deal de Franklin Roosevelt. Enfim, as economias dessa época não eram mais do que parcialmente liberais, vivendo entrincheiradas por detrás de espessas e altas muralhas proteccionistas.
(…) Com efeito, qual é o segredo desta fobia do liberalismo que atormenta a União Europeia, com excepção do Reino Unido e da Irlanda? É que a Europa, em diversos graus consoante os países - sendo o mais tacanho a França -, atribui a um excesso de liberalismo, do qual este não tem culpa, os males que resultam na realidade do seu excesso de regulamentação, de superfiscalidade, de redistribuição, de protecção sectorial e de intervenção estatal. É um pouco como se um sedentário sobrealimentado atribuísse ao abuso de exercício físico o seu excesso de peso. Por exemplo, em L' Horreur économique (Fayard, 1996)[2], livro cujo imenso sucesso mostra até que ponto o público é preconceituoso, Viviane Forrester sustenta que a globalização e a liberalização destroem os postos de trabalho. Ora, acontece que, pelo contrário, criaram centenas de milhões de empregos desde 1980 salvo na Europa. É na Europa que o desemprego médio é, durante este período, o mais elevado e a taxa de criação de emprego a mais baixa. Porquê? Em lugar de colocar esta questão, os europeus preferem contar histórias, inventando que os empregos americanos ou britânicos são «biscates» que eles não quereriam por nenhum preço. Ora, mais vale então, agarrar um trabalho mal pago na esperança de mais tarde auferir um salário melhor do que ser um «excluído» que se afunda a pique, como na Europa existem milhões. E mais, o argumento não colhe perante os números: quando, como acontece nos Estados Unidos desde 1997, o desemprego cai para cerca de cinco por cento, a oferta de emprego ultrapassa a procura, o assalariado torna-se no patrão do mercado de trabalho. (…)
A maioria dos governos europeus, com as suas políticas ditas, por antífrase, «de emprego», obstinam-se em lançar à água um barco demasiado pesado para flutuar. Após o que se arruinam com os gastos em reboques, em reflutuações, em salvamentos para tentar trazer de novo o navio à superfície e em indemnizações aos náufragos. O pior dos cegos é aquele que não quer ver. Não somente recusa tomar conhecimento dos sucessos do liberalismo quando é caso disso, como também lhe imputa os males a que é alheio. (…)
É com certeza de grande utilidade fustigar os defeitos do liberalismo, os malogros e as injustiças do capitalismo democrático. Mas isso será inútil se o fizermos na esperança de voltar a colocar o socialismo à tona de água. O socialismo naufragou e não será dos seus salvados que se poderão extrair as curas para os males sociais, económicos e políticos do liberalismo. Todavia, os partidos socialistas do fim do século XX de socialistas já só têm o nome e uma certa perícia para travar o desenvolvimento da economia. Eles tiveram de renunciar a dar corpo ao socialismo no exacto sentido do termo, tal como foi inventado no século XIX e aplicado no presente século. Aquele socialismo, o único autêntico, está morto. Já não existem hoje senão formas diversas da prática capitalista, com mais ou menos mercado, com mais ou menos propriedade privada, com mais ou menos impostos e redistribuição. Assim a correcção dos vícios de funcionamento do liberalismo não poderá ser feita a não ser a partir do próprio liberalismo.
O saboroso paradoxo do antiliberalismo é a esquerda ter sabido utilizá-lo para forçar a direita a cometer suicídio ao renegar as suas convicções, ao mesmo tempo que ela própria, quando se encontrava no poder, se distanciou mediante pequenos passos do socialismo para adoptar sub-reptícia e insensivelmente a economia de mercado. Com certeza, esta evolução foi sempre muito lenta e feita com atraso relativamente às necessidades, deixando prolongar demasiadamente o estatismo redistribuidor, baseada no imposto confiscatório e no défice público. Mas a esquerda, constrangida e forçada, não deixou de enveredar pelo caminho liberal, enquanto a direita aterrorizada continuava a repisar a sua condenação do «modelo anglo-saxónico». (…)
Um outro dos ângulos da defesa retrospectiva do comunismo baseia-se sobre este erro histórico. Consiste em conferir um papel positivo ao comunismo não exatamente em si mesmo, tal como foi posto em prática, mas sim pelo seu papel como motor do progresso social onde ele não foi posto em prática. Numa palavra, se o comunismo de Estado foi um fracasso, o comunismo de oposição terá sido um factor de justiça. (…)
Surge-nos aqui a teoria segundo a qual só as «lutas», as greves, as ocupações de fábricas, ou seja, os tumultos teriam permitido o progresso social, que não teria sido alcançado se não tivesse sido arrancado à força aos proprietários dos meios de produção. Ora, trata-se de uma reconstrução da história feita pela imaginação marxista. Dezenas de anos antes do surgimento dos primeiros partidos comunistas e mesmo dos primeiros teóricos socialistas, foram os liberais do século XIX que levantaram, em primeiro lugar, o que se chamava então a «questão social», a que responderam com a elaboração de várias leis fundadoras do direito social moderno. É o liberal François Guizot, ministro do rei Luís Filipe quem, em 1841, fez votar a primeira lei destinada a limitar o trabalho infantil nas fábricas. É Frédéric Bastiat, esse economista genial que hoje em dia seria qualificado como ultraliberal arrebatado ou imoderado, é ele quem, em 1849, como deputado à Assembleia Legislativa, intervém, pela primeira vez na nossa História, para enunciar e exigir que fosse reconhecido o princípio do direito à greve. É o liberal Émile Ollivier quem, em 1864, convenceu o imperador Napoleão III a abolir o delito coligação (isto é: a proibição que incidia sobre os trabalhadores de se juntarem para defender os seus interesses), abrindo assim a via ao futuro sindicalismo. E o liberal Pierre Waldeck-Rousseau quem, em 1884, no dealbar da Terceira República, faz votar a lei que atribuía personalidade jurídica aos sindicatos. Será necessário sublinhar, para que conste, que os socialistas da época, segundo a sua lógica revolucionária (bem anterior ao aparecimento do Partido Comunista), manifestaram uma violenta hostilidade a respeito desta lei Waldeck-Rousseau? Portanto, discorria Jules Guesde, «sob a bandeira de autorizar a organização profissional da nossa classe operária, a nova lei só tem um objectivo: impedir a sua organização política». De seguida, contradizendo esta perspicácia adivinhadora, mostrará, exactamente ao contrário, que uma deveria ser favorável à outra. São os grandes sindicatos que serviram de alicerce e mesmo durante muito tempo de fonte de financiamento para o Partido Trabalhista britânico, o Partido Democrático americano, o Partido Socialista alemão, bem como a outros diversos partidos socialistas reformistas da Europa escandinava. É igualmente nestes países, na quase ausência de qualquer aguilhão comunista, que surgiram e se perpetuaram os sindicatos operários mais poderosos. O oposto aconteceu nos países, nomeadamente em França, onde os partidos comunistas adquirem um peso político importante que origina o enfraquecimento do sindicalismo à força de lhe imporem uma carga ideológica. Bem sabemos que os filiados nos sindicatos representam em França uma percentagem ínfima da população activa. Por outro lado, o sindicalismo francês, qualquer que seja a ideologia das suas várias centrais, rapidamente se tornou somente defensor de interesses sectoriais, essencialmente os dos agentes da administração pública e dos serviços públicos, trabalhadores já cumulados de privilégios em comparação com os assalariados do sector privado. Há já várias décadas que os sindicatos franceses não preenchem os requisitos de representatividade definidos legalmente no início dos anos 50 e, em particular, o critério segundo o qual um sindicato não pode viver a não ser das quotizações dos seus filiados. Os sindicatos franceses, desde os bons velhos tempos, não subsistem a não ser graças aos subsídios directos ou indirectos do Estado, o que significa graças ao dinheiro subtraído aos contribuintes, cuja imensa maioria não é sindicalizada. O papel de aguilhão do progresso que teria sido desempenhado pelos partidos comunistas não parece portanto ser demonstrável. Pode mesmo dizer-se que em muitos casos a presença na cena política de um forte partido comunista atrasou o progresso social em vez de o acelerar. Por exemplo, no final dos anos 50, princípios do anos 60, meteu-se na cabeça do PCF defender encarniçadamente a estúpida teoria da «pauperização absoluta» da classe operária. E isto no exacto momento em , pelo contrário, uma fase de desenvolvimento económico sem precedentes na História da França estava em vias de permitir à classe operária aceder a um nível de bem-estar com o qual ela nunca teria ousado sonhar no tempo da Frente Popular, vinte anos antes. De facto, a única pauperização absoluta da classe operária que o século XX nos deu ocasião de observar ocorreu nos países comunistas e somente nesses países.
Não penso, portanto, como escreve Bredin, que todos os que se regozijaram com a queda do comunismo sejam unicamente «aqueles que recearam, aqui ou lá, que uma noite sinistra os oprimidos não tomassem o poder, aqueles que o comunismo fez tremer menos pelas suas armas do que pela sua ideologia». Sem querer desagradar a Jean-Denis Bredin, escritor que estimo e de quem sou amigo, numerosos dos que se regozijaram com a queda do comunismo fizeram-no por solidariedade com a classe operária, por amor dos oprimidos enfim livres de um dos mais cruéis e mais ineptos despotismos de toda a História humana. Será isto também permitido sublinhar?
(…)
Desde os primeiros anos da era pós-comunista, um tema favorito do pensamento único antiliberal no Ocidente foi a denúncia dos malefícios caóticos do capitalismo nos países que tinham conhecido as estruturas tranquilizadoras e estáveis do socialismo real. Retiniram por toda a parte as imprecações para marcar com o ferrete a precipitação criminosa com que os «ideólogos da seita neoliberal» tinham infligido sem tardança a esses infortunados países uma dose maciça, para não dizer mortal, de economia de mercado.
Estes gritos de angústia e também de alegria, que marcaram uma prova suplementar, supérflua, da nocividade do mercado, extraíram o seu sopro profético de um duplo erro de observação, o que não nos causa admiração. O primeiro consistia em ignorar voluntariamente que o regresso ao mercado, nos limites permitidos pelas estruturas existentes, não dera genericamente maus resultados. Mesmo se situarmos à parte os casos particulares dos Länder de Leste, na Alemanha – pois nenhuma outra zona ex-comunista podia esperar obter de quem quer que fosse a ajuda colossal dada pelos Länder do Ocidente a essa pequena população de cerca de quinze milhões de habitantes –, mesmo efectuando a distinção deste caso académico, manifestou-se bastante rapidamente que a Polónia, Hungria e a República Checa não estavam em posição de serem mal sucedidas na sua transição liberal e democrática. (…)
O segundo erro sobre os cataclismos económicos pós-comunistas consistia em os atribuir ao sistema liberal ainda que fossem devidos à incapacidade de o aplicar. É preciso sofrer de alucinações para ver uma economia de mercado na economia nomenklaturo-mafiosa da Rússia, onde precisamente o mercado se encontra completamente falseado pela mão baixa feita à sociedade pela oligarquia política interessada nos negócios. O mercado pressupõe o direito. Teremos nós negócio numa economia de mercado onde os créditos concedidos, tendo em vista a reestruturação, pelo Fundo Monetário Internacional, pelo Banco Mundial, pelo Banco Europeu para a Reconstrução e Desenvolvimento, pelos bancos privados dos países grandes emprestadores, como a Alemanha, mal chegados a Moscovo, tornam a sair instantaneamente, aos milhões de dólares, para engrossar as contas secretas e pessoais, sediadas na Suíça ou noutros paraísos acolhedores? Será uma economia de mercado aquela onde os investidores estrangeiros se fazem espoliar e, se eles não pagam, são muitas das vezes assassinados pelos esbirros da nomenklatura mafiosa?
A impotência da economia russa e dos outros países da União de Estados Independentes para descolar, após a dissolução da União Soviética, não se deve a um excesso de liberalismo. Deve-se antes ao facto de o liberalismo não ter começado a ser aplicado. Ele pressupõe de facto regras jurídicas, estruturas políticas e conhecimentos económicos que os povos desses lugares do mundo não reconstruíram, porque os seus governos não achavam que isso fosse do seu interesse. Não vale a pena confundir capitalismo democrático com comunismo em decomposição. Foi porventura o que reconheceu Boris Ieltsin logo que, ao anunciar na televisão a sua demissão da Presidência, em 31 de Dezembro de 1999, «pediu perdão» ao povo russo, confessando o seu fracasso político e económico desde 1991 e tomou em consideração o facto de que «o que parecia simples mostrou-se doloroso e penoso».
Quando se constata que a economia de mercado não consegue curar instantaneamente as maleitas do comunismo, é necessário interrogarmo-nos se a culpa é da economia de mercado ou do comunismo. O comunismo em migalhas não é economia de mercado. A causa da bancarrota russa que atingiu o seu ponto paradoxal em Agosto de 1998, não é o mercado, mas a ausência de um verdadeiro mercado (para além do negro). Acontece que a economia russa continua submetida à dominação da velha classe política. É a razão por que a ajuda internacional, nestas condições, foi inútil. O fantasma do Plano Marshall mais não pôde a de esboroar-se contra as realidades de uma economia sem capacidade de assimilar de maneira criativa as ajudas que lhe são proporcionadas. Emprestar dinheiro sem limite a um país sem estruturas económicas, políticas ou jurídicas viáveis, como a Rússia no imediato pós-comunismo, é como encher de gasolina o depósito de uma viatura sem motor. Não é aumentando por três a dose de combustível que a faremos arrancar. Estas ajudas delapidadas e desviadas mais não serviram do que para retardar a hora da verdade. Mas elas não impediram que soasse.
O mesmo se irá em breve dizer relativamente ao «comunismo comercial» (a expressão é de Zbigniew Brzezinski) chinês. Os dirigentes da China, nos últimos vinte anos, foram tão longe quanto possível na sua tentativa de introduzir o capitalismo no seio da economia sem fazer explodir o sistema totalitário do partido único. Mas assim seguramente não serão capazes de aumentar o nível de vida do conjunto da população, da qual actualmente quatro quintos são os desamparados de uma descrença fortemente epidérmica. Será necessária uma total reestruturação política, de preferência um Estado de direito, de abertura ao exterior, liberdade de informação e democratização. A crise que a China enfrentará, no vencimento do prazo, será não aquela do mercado, como não deixarão de assinalar os pensadores únicos, mas será antes a da incompatibilidade do mercado, para além de um certo ponto, com monolitismo e a corrupção totalitários.
A pateada de êxtase que saudou o «fim do capitalismo», quando estalou a crise asiática de 1997, não exprimia uma clarividência muito superior àquela com que nos havia brindado com a sua luz fulgurante a propósito dos exemplos que acabo de evocar. Pois nem a Indonésia, onde a economia foi gerida durante trinta anos pelo monopólio dos negócios da família Suharto e do seu clã de amigos; nem a Malásia, desde 1987 subjugada pelo golpe dirigista de um autocrata megalómano, Mahathir Mohamad, correspondem aos critérios da liberdade económica enquadrados pelo Direito. Nestes países não existiam nem leis de mercado nem simplesmente leis, a menos que delas se considerem dispensados os usurpadores do poder. Ao tornar os «especuladores» responsáveis pelo s males que lhe são imputáveis (queda de quarenta e cinco por cento da bolsa de Kuala Lumpur, em Janeiro de 1998, e de quarenta e seis por cento da moeda nacional, o ringgit, em seis meses), Mahathir revela-se um brilhante virtuoso do pensamento único. Nos outros países asiáticos, Coreia, Tailândia e, sobretudo, no Japão, a crise tem as suas origens no endividamento excessivo das principais empresas junto da banca, que, obedecendo a instruções políticas às quais a corrupção não era alheia, lhes concederam durante anos empréstimos a descoberto para além do limite da razoabilidade. O mercado não existe para os bancos privados concederem crédito sem terem em conta os riscos. E exactamente o contrário. O «modelo» do Crédit Lyonnais da era de Mitterrand não é liberalismo, mas, sim, o estatismo falido. A economia japonesa desde há muito que assentava numa malformação orgânica: ao redor de algumas multinacionais extremamente rentáveis, e alimentadas pelas demências bancárias já referidas, as outras empresas encontravam-se tão imobilizadas como os conglomerados comunistas. (…)
Mas, após dois anos, o entusiasmo dos pensadores únicos sobre a crise asiática e a oração fúnebre do capitalismo revelaram-se prematuros. Se, em 2000, a situação asiática não está completamente recomposta, surge como estando no bom caminho para melhorar. Nada tem a ver com a agonia russa. O afundamento do sistema capitalista mundial não ocorreu. Pelo contrário, perdoem-nos por provocar uma profunda mágoa, a economia pós-crise está ainda mais aberta do que antes da crise. As lições do acidente foram aprendidas. Novas regras legais e práticas mais transparentes vão permitir aos mercados funcionarem com menos sobressaltos. Mas uma coisa garantimos: isso não desviará o pensamento único da sua ideia fixa antiliberal.
[1] Edição portuguesa: A Ditadura Liberal: Razões da Consagração dos Sistemas Democráticos do Século XX, tradução de Nuno Miguel Cordeiro, Publicações Europa-América, Mem Martins, 1995, Colecção Estudos e Documentos.
[2] Edição portuguesa: O Horror Económico, tradução de Ana Barradas, Terramar, Lisboa, 1997.
Excertos do capítulo III da obra La Grande Parade (2000), do filósofo francês Jean-François Revel, na edição portuguesa da Editorial Notícias (A Grande Parada, 2001), com tradução de António Cruz Belo.
Colaboração na edição: Catarina Moreira.
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