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Mao Tsé-Tung: O escritorzinho vermelho

Jean-François Revel

Socialismo e Comunismo, Excertos e Ensaios, História, Filosofia, Ética e Moral

Português

Mao Tsé-Tung escreveu em 1930 um panfleto intitulado Contra o Culto do Livro, que originalmente e ainda agora é o mais obnubilante culto do livro que se apoderou de alguma civilização desde o Corão.

Recitado, comentado, exibido por milhões de chineses, utilizado como breviário lido vezes sem fim, o Livro Vermelho, foi, por outro lado, este ano um best-seller em França. As razões políticas para este sucesso são claras. Segundo parece, são numerosos em França os leitores (quando não os eleitores) que pensam que a América é a única beneficiária da coexistência pacífica e que a transição para o socialismo não se realizará em parte alguma sem recurso a uma revolução violenta.

No entanto, qual o valor intelectual, qual o conteúdo filosófico deste livro, o qual dizem ser «a versão chinesa» do marxismo-leninismo?

De facto, para averiguar se Mao tem um pensamento original, melhor fora que nos debruçássemos sobre os textos integrais em vez de nos atermos ao Pequeno Livro Vermelho. Este é um catecismo, de capital importância como documento histórico, mas cheio de citações vagamente agrupadas por temas, sem qualquer ordem cronológica ou lógica. Não apela à reflexão de leitor.

A nota dominante é o marxismo-leninismo extremamente condensado, tendo pelo meio conselhos morais de carácter proudhoniano, tais como «progride-se quando se é modesto», «o que é difícil é agir bem ao longo de toda a vida», ou verdades de La Palice: «Um exército sem cultura é um exército de ignorantes», «o exame unilateral consiste em não saber encarar as questões sobre todos os seus aspectos».

Quanto ao exame multilateral dos textos completos, ele revela que Mao não é um teórico e muito menos um criador. Os raros escritos teóricos, «Sobre a prática», «Sobre a contradição», limitam-se a simplificar o Materialismo e Empirocriticismo de Lenine. Eles são, portanto, como todos os seus textos, escritos de circunstância, de combate, destinados a veicular uma pressão política concreta sobre uma determinada tendência particular no seio ou fora do PC Chinês. De facto, a ideologia leninista-estalinista, adoptada de uma vez por todas, nunca foi repensada enquanto tal por Mao. Quando aparentemente produz ideologia, é na realidade táctica.

Somente, como todos os comunistas, veste de fraseologia abstracta os mínimos detalhes. Tratar-se-ia, em 1929, de conseguir que o Exército Vermelho em descanso não se fosse divertir para as cidades, mas que permanecesse nos campos, onde era mais útil? Mao redige uma resolução: «Eliminação das concepções erradas dentro do partido.» Entre essas concepções erradas encontram-se, entre o «subjectivismo» e os «resquícios do golpismo», o «individualismo», cuja componente principal é o «gosto pelos prazeres», o qual se manifesta essencialmente pelo fenómeno de «as nossas tropas se encaminharem para as grandes cidades».

A própria teoria das cem flores, por mais... florida que seja na sua formulação, nem por isso se torna numa verdadeira teoria. Destinava-se, em 1957, a acalmar aqueles que exigiam mais liberdade de discussão no seio do partido e invocavam nomeadamente os acontecimentos da Hungria para condenarem o autoritarismo. Mao aprova a repressão ao levantamento de Budapeste e fez concessões retóricas aos descontentes, mas imediatamente depois repreende-os, aplicando-lhes invariavelmente um idêntico raciocínio ortodoxo.

No discurso onde fala das Cem Flores, intitulado «Da justa solução das contradições no seio do povo» (1957), como em textos mais antigos: «Da ditadura democrática popular» (1949) ou «Contra o estilo estereotipado dentro do Partido» (1942), o raciocínio, sempre mesmo, é o seguinte: a discussão é livre no interior do partido, mas, na prática, as objecções contra o partido têm origem em duas fontes: nos adversários da Revolução, os quais não devem ter o direito de se exprimir, e nos partidários sinceros da Revolução, os quais na verdade nunca estão em desacordo com o partido. Portanto, os métodos autoritários são «centralismo democrático», sem dúvida legítimo, e, para o povo, «liberdade é correlativa de disciplina».

O mesmo esquema em matéria de filosofia. Será possível criticar o marxismo? Certamente, pois o «marxismo não teme a crítica», «se os seus argumentos pudessem ser rebatidos pela crítica, não serviria para nada». Portanto, ele não é questionável a não ser em vão, porque é invulnerável. Porquê então as preocupações?

Quanto às artes e à literatura, podem as cem flores de igual forma desabrochar intelectualmente, mas como importa preservar que as «olorosas flores» se misturem com as «ervas daninhas», Mao regressa de imediato ao dirigismo cultural idêntico ao de Jdanov[1]. A ideia do «exército cultural» é muito antiga em Mao. Ainda aqui, não inova: a cultura é sempre o reflexo da realidade política e social. Uma vez realizada a revolução económica, é necessário fazer alinhar por ela a cultura. Esta visão é inteiramente conforme ao leninismo militante, sem lhe ser introduzida a menor variante pessoal.

Sejamos claros: não faço aqui qualquer julgamento político sobre a China, e eu talvez seja «chinês», quem sabe? Mas o estudo dos textos obriga a dizer que, filosoficamente, não existe «versão chinesa» do marxismo, não existe maoísmo.[2]


[1] Andrei Aleksandrovitch Jdanov (1896-1948), homem de Estado soviético, membro do Politburo (1939), que dirigiu a política cultural da era estalinista e fixou as normas do realismo socialista. (N. do T.)

[2]  Le Petit Livre rouge: Citations du Président Mao Tse-Toung (Seuil, 190 páginas); Écrits choisis en trois volumes (Maspero, cada volume com 190 páginas).

Originalmente publicado como editorial do L'Express de 28 de Agosto de 1968.

Anexo ao capítulo VIII da obra La Grande Parade (2000), do filósofo francês Jean-François Revel, na edição portuguesa da Editorial Notícias (A Grande Parada, 2001), com tradução de António Cruz Belo.

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