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O Balanço da Revolução

Victor Kravchenko

Direitos Civis e Privacidade, Autoritarismo e Totalitarismo, História, Pobreza e Estado Social, Socialismo e Comunismo, Excertos e Ensaios

Português

Desde que me filiara no Partido, um certo constrangimento presidia às minhas relações com o meu pai. Quando me encontrava na sua presença, era instintivamente levado a justificar e enaltecer aqueles mesmos métodos que intimamente repelia e condenava. A sua rectidão moral, a elevação dos seus sentimentos humanitários e a incorruptibilidade do seu carácter exasperavam-me ligeiramente. Olhando para trás, percebo com clareza o que então apenas suspeitava: o meu pai tornara-se uma incarnação viva da minha própria consciência; a incompreensão verificada entre nós era o resultado dos meus próprios conflitos interiores.

Por ocasião das minhas visitas a casa, o meu pai falava-me sobre o “desaparecimento” de homens que tínhamos conhecido na fábrica de Dniepropetrovsk e tinha a impressão de que ele me responsabilizava, na minha qualidade de membro do Partido, por qualquer uma daquelas injustiças. Quanto a mim, nada lhe dizia acerca de factos similares ocorridos em Nikopol, sobre os trabalhos forçados, sobre a espionagem a que vinha sendo submetido.

Esse impulso instintivo de esconder do meu pai factos essenciais irritava-me e enchia-me de vergonha. Parecia que queria enganar-me a mim mesmo...

Não tinha muito interesse em que viesse visitar-me a Nikopol; temia ler nos seus olhos sinceros uma censura ao luxo que me rodeava. Entretanto, continuava a insistir para que viesse passar alguns dias comigo, ao que finalmente acedeu. Percorrendo com ele a minha luxuosa residência, o jardim, a horta, a garagem, sentia-me tomado de um embaraço crescente.

“Vives como um fidalgo”, foi o seu único comentário.

Quando me pediu para visitar a fábrica, o mesmo embaraço desarrazoado assaltou-me. Porém, não podia recusá-lo, e entreguei-lhe uma série de salvo-condutos assinados. Durante alguns dias, raramente o vi. Arranjou amigos em toda a parte; as suas maneiras simples e francas colocaram-no à vontade entre os operários, que o trataram imediatamente como um dos seus. Muitos meses depois desta visita, homens e mulheres interessavam-se ainda por notícias suas.

Certa tarde, reunira alguns colegas no meu escritório para estudarmos algumas plantas novas. Subitamente, apercebi-me de um ligeiro tumulto na minha sala de espera e distingui a voz da minha secretária.

“Pergunto-lhe apenas, cidadão, para que quer ver o camarada Kravchenko?"

“É da sua conta?” – a voz do meu pai sobrepôs-se à dela. “Que miserável burocracia é esta, que exige salvo-condutos para tudo?”

“Não posso permitir-lhe a entrada, cidadão. Ordens são ordens.”

“Eis o que penso das suas ordens!” bradou o meu pai, abrindo com um safanão a porta do meu escritório.

Um pouco desconcertado ao encontrar outras pessoas na minha companhia, não pôde todavia conter o ímpeto da sua cólera.

“Que espécie de regulamentos são estes, Vitya? Por Deus, mesmo no tempo dos Romanovs, um homem sempre teve o direito de falar ao seu patrão... Desculpa-me, porém. Julguei encontrar-te só.”

Apresentei o meu pai aos outros, dispensando-os em seguida. Ele mostrava-se embaraçado.

“Reconheço que me excedi; desculpa-me. Todo este cerimonial irrita-me os nervos.”

Depois de conseguir sossegá-lo, pediu-me um favor. Gostaria de percorrer os registos de trabalho da fábrica sob a minha orientação. Depois de observar durante vários dias o andamento das operações, queria comparar o ordenado de ferreiros, torneiros, electricistas e outros tipos de operários; queria verificar quantos haviam gozado férias e outros privilégios análogos. Visto que não se tratava de dados secretos, dei ordem ao guarda-livros para que o atendesse.

Quando cheguei a casa, de regresso da fábrica, já o encontrei à minha espera. Durante o jantar pareceu-me preocupado. Conversámos à toa sobre banalidades. Percebi que reservava as suas forças para uma conversa “séria”, mais tarde, o que me confirmou sugerindo que desse folga a Pasha naquela noite. “Agora diga-me, pai: o que é que o preocupa?"

“Há muito tempo, filho, que te quero falar francamente. Tu és-me muito querido, não apenas como um filho, mas também como um ser humano, a cujo desenvolvimento há trinta anos assisto de perto. No entanto, com o decorrer dos tempos, torna-se cada vez mais difícil usarmos de franqueza um com o outro. Isto é triste e bem sintomático no ambiente de terror em que vivemos actualmente.”

“Sinto muito, meu pai. Às vezes pergunto-me, porém, se não continuará a viver num clima de outra era.”

“Admito, Vitya, que estejas muito mais a par da política contemporânea do que eu. Tens mil e quinhentos homens sob as tuas ordens e superintendes uma produção que põe em circulação dezenas de milhares de rublos. Ainda assim, creio poder afirmar conhecer melhor do que tu a vida do povo, dos operários, dos camponeses. O poder traz consigo o isolamento, o afastamento. Gozas de todo o conforto, tens dinheiro à vontade, automóveis, criados...”

“Não creio que mereça essas censuras, meu pai. Afinal, nada disso foi roubado, não é verdade? O regime presenteia-me com esses favores e em troca trabalho mais intensamente do que qualquer um dos meus operários.”

“Não tenho intenção de censurar-te; por favor não me interpretes mal. Apenas não posso deixar de perguntar a mim mesmo se terás perdido todo o contacto com o povo; se, para falar mais claramente, estarás tão satisfeito como os demais burocratas em figurar entre os opressores do miserável povo russo.”

“Francamente, não sei o que espera de mim. Não sou mais do que um pequeno elo de uma imensa engrenagem. A verdade, meu pai, é que o meu trabalho me absorve tão intensamente que não tenho tempo nem força para me preocupar com considerações sentimentais.”

“Em suma, estás a proceder como a avestruz: mergulhas a cabeça na areia e julgas que os problemas desaparecem. Dizes que a culpa não é tua... Sim, também nos velhos tempos havia outros como tu. O sofrimento da pátria já não significa nada para ti.”

“Escute, pai, não vá julgar que eu desconheço a situação ou que me submeti totalmente ao regime. Afinal de contas, o senhor não pode saber o que se passa no meu íntimo, no íntimo de milhares de outros comunistas. Diga-me, que posso fazer? Sair para a rua e gritar: “Socorro! Assassinos!”? Além disso, há factos concretos a considerar. Novas fábricas, novos caminhos de ferro...”

“Por certo, Vitya, por certo. Porém, as revoluções não são feitas para fábricas e caminhos de ferro. São feitas para o povo. O seu verdadeiro motivo é o estabelecimento dos direitos e liberdades individuais. Sem estes, sem dignidade humana, o homem será sempre um escravo, por mais industrializada que seja a sua prisão. Quando os comunistas se põem a gabar os novos empreendimentos industriais, é o bem-estar do povo que destacam. Pois bem, diz-me, esse bem-estar existe?”

“Penso que sim, se o compararmos à existência miserável que levavam sob os czares.”

“Vitya, para que tentas enganar-te a ti próprio? Recorda a tua própria infância. Não éramos ricos, mas nunca nos faltou o necessário para comer e vestir, e tu e os teus irmãos tinham até uma governanta. Olhando para trás, a nossa existência de então parece quase luxuosa em contraste com a vida de hoje de uma família da classe operária. Naquele tempo, apenas uma pequena minoria levava a vida desgraçada e miserável que constitui hoje a norma geral.
Tinha os meus motivos para pedir as estatísticas da tua fábrica. Desejava confrontá-las com as cifras anteriores à revolução, que tenho bem presentes na memória. Um ferreiro de Nikopol ganha hoje 145 a 200 rublos mensais. Antes de 1917, não recebia mais de 35 a 50 rublos. Um técnico enrolador ganhava então 45 a 85 rublos; hoje ganha 200 a 350 rublos. Se incluirmos torneiros, fundidores, operadores de guindastes eléctricos, a folha de pagamento soma hoje 240 rublos, onde antigamente teria somado 55.
Até aí, tudo muito bem. Mas que valor tem o rublo actual? Antes da revolução, um quilo de pão custava 5 copeques. Quanto custa hoje? Entre um rublo e 20 copeques e 2 rublos. Um quilo de carne custava entre 15 e 20 copeques; hoje, sendo possível encontrá-la, paga-se cerca de 12 rublos – Ou seja, sessenta vezes mais! Quanto pagaste pelo fato que tens no corpo?”

“Oitocentos rublos.”

“Oitocentos rublos – o equivalente a três ou quatro meses de ordenado de um técnico fundidor! Sabes quanto teria custado o mesmo fato, noutros tempo? 15 rublos, no máximo 20. Portanto, eis o espectáculo com que nos deparamos: a elevação despropositada dos salários, tomada como índice de grande prosperidade económica. No entanto, o custo da vida subiu não cinco mas quinze, quarenta, cinquenta vezes. O ferreiro que ganhava 50 rublos por mês era tido como um operário de vida folgada; hoje, ganha 200 rublos e vive miseravelmente.”

“Não se esqueça das vantagens gratuitas que aufere: férias remuneradas, assistência médica, creches para os filhos...”

“Seja. Examinemos essas vantagens. Dizes que são 'gratuitas', mas não ignoras que provêm de pesados descontos nos salários. Se contarmos as taxas do sindicato, os empréstimos forçados e o resto, teremos de reduzir entre 20 a 25% cada ordenado. Ora, com 20 a 25% do seu salário, um operário do meu tempo pagaria toda a assistência médica e as férias que precisasse, sem ter de depender do Governo.
Porque precisamos de creches? Porque são poucas hoje em dia as mulheres que podem ficar em casa a cuidar dos filhos. Outrora, com 50 rublos mensais um homem podia sustentar folgadamente a família. Hoje, com 200, é obrigado a mandar a mulher e os filhos crescidos para as oficinas, para poderem subsistir. Quanto à espécie de assistência médica que recebem, quanto menos falarmos a esse respeito, melhor. Quando estás doente, Vitya, vais ao hospital do Estado?"

"Não, mando chamar o Dr. Gorkin em privado."

"Obviamente. Tal como qualquer pessoa que tenha dinheiro para isso. Sabes tão bem como eu que a única maneira de obter um tratamento decente é pagando por ele. A assistência médica, como tudo o resto, está podre de burocracia e apatia. Mas e essas belas instituições para repouso e férias de que tanto se orgulha a imprensa comunista, por acaso saberás quantos as frequentaram no ano que passou, dentre os 1.500 operários da tua fábrica?”

“Suponho que algumas centenas.”

“Enganas-te. Ainda hoje consultei as estatísticas. Apenas 57 em toda a fábrica. Os 1.500 homens pagaram por esse privilégio e apenas 57 o obtiveram. Claro que as casas estavam sempre ocupadas – por directores, funcionários do Partido, stakhanovistas eminentes e outros privilegiados do regime. Naturalmente, eu sou a favor da segurança social, da assistência médica e de tudo o resto, contanto que sejam retirados do lucro que o Estado tira das fábricas que lhe pertencem e que ele explora – lucro que anteriormente ia beneficiar os capitalistas – e não dos salários dos próprios operários. Era este o ponto essencial da revolução.
Entretanto, onde estão esses lucros? A indústria e a economia não os produzem e é a nós, os cidadãos, que compete cobrir esses “déficits”. Ainda que para mim os factos políticos espirituais tenham mais valor do que os da esfera material, tomei-os como padrões de comparação precisamente por serem eles o principal objecto da propaganda do regime.”

“Nesse caso, se tudo era tão perfeito, meu pai, porque é que se envolveu na revolução?”

“Não digas tolices! Bem sabes que de nada me arrependo e que, se preciso fosse, recomeçaria tudo. Nós combatíamos males reais. Arriscávamos a vida para derrubar a tirania política e a opressão económica, e não havemos de enaltecer os mesmos males, pelo facto de terem mudado de rótulo.”

“Mas tudo agora pertence ao povo. Já não há capitalistas nem exploradores.”

Com o prosseguimento da discussão crescia o meu aborrecimento, precisamente porque, no meu íntimo, concordava em inúmeros pontos com o meu pai.

“Não te faças tolo, Vitya. Ao trabalhador, pouco se lhe dá que o explore o proprietário privado ou o Estado. Ao ser arrastado para a prisão ou para o exílio, o facto de o fazerem em seu nome pouco consolo lhe oferece. Afinal, se o patrão capitalista não me pagava o suficiente ou não me assegurava condições decentes de trabalho, eu tinha a possibilidade de mudar de emprego. Ninguém me impedia de espalhar a notícia entre os companheiros de trabalho, de convocar comícios de protesto, incitar greves, filiar-me em partidos políticos, publicar folhetos de oposição. Experimenta agir assim hoje em dia e terminarás num campo de concentração ou coisa pior. Acredita no que te digo: as nossas possibilidades eram maiores quando lidávamos com cem mil patrões capitalistas do que hoje com um único patrão, o Estado. Porquê? Porque o Estado conta com um exército, uma polícia secreta e é dotado de poderes ilimitados. Durante toda a minha vida tenho lutado contra o capitalismo e continuo a repudiá-lo; porém, isso não implica aplaudir o socialismo de mentalidade policial.”

Eu calava-me, limitando-me a franzir o sobrolho.

“Pelo menos tínhamos o direito de pensar livremente. Existiam partidos políticos, facções, correntes de opinião. Por mais estrito que o julgássemos, o absolutismo de então até parece liberal se o compararmos ao actual. Não nego que a polícia do Czar espancasse e até fuzilasse revolucionários; porém, a escala era infinitamente mais reduzida. Contavam-se os prisioneiros políticos aos milhares; não como hoje, aos milhões. E qualquer injustiça provocava protestos, manifestações, comícios populares. Que vemos hoje? Um silêncio sepulcral.
Toma como exemplo os nossos sindicatos. Que são eles senão meros instrumentos de reforço das decisões governamentais e de imposição de novos e pesados deveres? Já houve um tempo em que as organizações trabalhistas actuavam realmente como porta-vozes das classes operárias; eram verdadeiras escolas políticas onde aprendíamos a reivindicar os nossos direitos e a lutar por eles. Hoje, quem ousará protestar contra o que quer que seja? A imprensa, que se arvora em espelho da opinião pública, é hoje propriedade do Partido e do Estado; as opiniões que reflecte são as deles.
Outra coisa, filho. Bem sabes que nunca fui um crente. No entanto, sempre respeitei a liberdade de culto. Que resta hoje dessa liberdade? Bem sabes que, só por frequentar igrejas, um indivíduo se arrisca a sacrificar o emprego e a carreira.
Mesmo nos piores tempos da tirania dos Romanovs podia-se sair livremente do País. Hoje, vivemos encarcerados e aqueles que tentam cruzar a fronteira são fuzilados como cães. Como pensar, aliás, em sair do País, se o regime prende o operário à máquina e o camponês à terra como escravos?”

“O pai fala como se tudo isso fosse obra minha.”

“Desculpa-me, Vitya; porém, como comunista não podes fugir à tua parte de responsabilidade.”

“Por acaso pertenço ao NKVD ou ao Politburo? Com todo o seu espírito de objectividade, o pai parece não perceber que mesmo os mais graduados dentre nós se encontram reduzidos à mesma impotência que o povo em geral; talvez até mais.”

“Naturalmente, Vitya, não quero ser injusto. Não pretendo que te ponhas a chamar por socorro e a denunciar os criminosos. Porém, gostaria ao menos de sentir que a educação que te ministrei não redundou num fracasso integral – que pelo menos não ignoras a gravidade da situação.”

“Não, não a ignoro. Na verdade, conheço-a bem mais de perto do que o pai pode supor. Entretanto, não quero abandonar de todo a esperança. Acerca da nova Constituição, por exemplo... É possível que nos conceda realmente alguma liberdade."

“Gostaria de partilhar da tua confiança. Porém, que valor podem representar algumas palavras impressas enquanto a polícia secreta agir arbitrariamente, enquanto existir um partido único com a sua imprensa própria, com um único deus-Estaline — com tribunais de justiça parciais, onde toda a opinião dissidente é encarada como crime? Estou demasiado velho para viver de ilusões. Serei o primeiro a aplaudir o menor sintoma de relaxamento desta situação de terror; por enquanto, porém, não vejo o menor sinal de alívio no horizonte. Quando leio as tuas vanglórias e a tua nova Constituição, não consigo deixar de pensar nos versos de Voltaire:

Nenhuma outra mão tão generosa encontrarão
A dar aos homens bolas de sabão.

Não penses que me agrada ter de falar deste modo. Não me posso orgulhar de que um filho meu figure entre os novos opressores do povo, mesmo que involuntariamente... Talvez ainda chegue o dia em que havemos de nos compreender melhor...”

Esse dia chegou mais depressa do que suspeitávamos.

Excerto do Capítulo 13, "Mais Depressa, Mais Depressa!", do livro Escolhi a Liberdade: a Vida Privada e Política de um Funcionário Soviético, de Victor Kravchenko (1905-1966), republicado em 2022 pela Alêtheia Editores em parceria com o Instituto Mais Liberdade.

Tradução: Maria Helena Senise.

Revisão: Pedro Almeida Jorge.

Apoio na edição: Alêtheia Editores e João Costa.

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