Socialismo e Comunismo, História, Excertos e Ensaios, Autoritarismo e Totalitarismo, Filosofia Política, Direito e Instituições
Uma irrevogável absolvição foi concedida à criminalidade comunista, e reconfirmada após cada novo amolecimento do seu processo, não somente pelos partidos comunistas ou o que deles subsiste, mas também, e com magnanimidade, pela esquerda não comunista e muitas vezes mesmo pela direita. «Não há razão para levantar esta questão» (da comparação entre comunismo e nazismo), diz um gaullista, talentoso homem político, Pierre Mazeaud, membro do Conselho Constitucional. O pretexto invocado para estabelecer esta «injustiça» não se altera, e é tristemente o mesmo, seja para Pierre Mazeaud ou para Robert Hue: «O comunismo foi desencaminhado.» Este eminente constitucionalista prestaria um bom serviço à ciência política se nos explicasse qual o prodígio que originou que uma doutrina intrinsecamente boa tenha em todo o lado e sempre invariavelmente encarnado o seu próprio desvio. Os socialistas transformam esta piedosa desculpa em agressiva acusação. Ao comentar a publicação de O Livro Negro, no Outono de 1997, o primeiro-secretário do Partido Socialista, François Hollande, interroga-se com subtileza: «Será que se procura preparar para amanhã alianças com a extrema-direita, procurando-se assim uma legitimação antecipada?» Teríamos esperado, teríamos compreendido que o primeiro-secretário tivesse dito: estes horrores nada têm em comum com a nossa concepção de socialismo. Mas não. O inelutável ritual ressurge: é preciso continuar a combater o anticomunismo e, portanto, a história rigorosa do passado, pois o inventário dos crimes comunistas, feito em nome de uma pretensa pesquisa científica, mascara na realidade, segundo Hollande, um projecto destinado a servir a extrema-direita, a reanimar o nazismo, que nos ameaça mais do que nunca, é evidente, e de contribuir, em França, para a apologia dos crimes de Vichy. É difícil cair mais baixo do ponto de vista intelectual e, sobretudo, fazer com que oitenta anos de sofrimento humano e de investigação histórica de nada valham. O comunismo é o progresso. Os seus verídicos historiadores são os inimigos do progresso. Dar-se-á conta Hollande de que, na sua determinação de falsificar a História, assim que ela prejudica a lenda soviética, se está a comportar como um herdeiro do modelo cultural soviético?
Entre os liberais e os democratas, que se limitam a desejar a expressão da verdade, toda a esquerda vigilante descobre um fascismo implícito que não perde ocasião para se mostrar. Reclamar a aplicação das leis cai sobre a mesma categoria de suspeita. Durante o governo Juppe, em 1996, quando os emigrantes ilegais ocuparam a Igreja de Saint-Bernard em Paris, para exigir a concessão de documentos válidos, a extrema-esquerda, seguida pelos verdes e uma boa parte dos vermelhos ou dos «humanitários», reprovava aos poderes públicos o recurso a métodos nazis e de reconstituir as grandes detenções do Vel' d'Hiv[1], porquanto os carros da polícia tinham evacuado estes clandestinos. Como os que disseram ou escreveram estas sandices não são todos imbecis, não há forma alguma de evitar incriminar a sua má-fé. Com efeito, os detidos durante a Segunda Guerra Mundial não eram expulsos da Alemanha com destino aos seus países de origem ou de residência (isso bem eles quereriam!), mas antes o contrário. De seguida, os expulsos de Saint-Bernard de forma alguma foram deportados para campos de concentração ou de morte. Enfim, a França, que eu saiba, aquando dos acontecimentos de Saint-Bernard, não estava minimamente ocupada por uma potencia estrangeira. O seu presidente, o seu parlamento, o seu governo emanavam do sufrágio universal livremente expresso pelos cidadãos. As instruções dadas à polícia tinham a sua origem em leis aprovadas nos termos de uma Constituição que tinha sido ratificada pelo povo. Desde logo, comparar as leis de Pasqua-Debré sobre a imigração às «leis de Vichy» é a mesma coisa que colocar em pé de igualdade uma democracia e ditadura (ainda por cima imposta pelo inimigo), o que revela a existência de uma grave debilidade na análise política, ou de uma desonestidade perigosa, por parte de quem utiliza tal argumento. Perigosa porque eivada de negacionismo antidemocrático. A instalação num país estrangeiro, sobretudo num que oferece aos seus habitantes uma segurança social onerosa, poderá ser objecto de decisão unilateral do imigrado, sem que as autoridades do país de acolhimento tenham uma palavra a dizer? Os partidários desta decisão explosiva, que deixo à reflexão as consequências que teria sobre a viabilidade da integração, amplamente mal sucedida desde 1980, não deveriam mais que tentar, se fossem democratas, fazer adoptar pelo parlamento uma lei nesse sentido, tomando de seguida sobre si, se fossem capazes, a responsabilidade de enfrentar as consequências. Mas não têm o mais pequeno direito de colocar o rótulo de fascista, racista ou adeptos de Vichy aos cidadãos que temem as repercussões caóticas e nefastas de uma regularização automática de todos os ilegais ou, dito de outra forma, a supressão de todo o controlo.
E mais, não enjeitemos as responsabilidades. Se um clandestino entra em França de forma fraudulenta e de seguida faz, sempre fraudulentamente, com que a sua ou as suas mulheres se lhe juntem, e no caso de terem filhos, nascidos em solo francês e, portanto, com as condições para serem franceses, quando os seus pais o não são, quem é responsável por este imbróglio jurídico? Não é a República Francesa, são sim aqueles que fizeram batota com as suas leis. A necessidade de esta situação absurda ser analisada com toda a humanidade possível no que diz respeito às pessoas não impede que a França, desde logo, não tenha responsabilidades. Nascer em França dá o direito de ser francês, o que não naturaliza retroactivamente todos os antepassados. Mais, como pode o Estado impor aos cidadãos de um país respeito pelas suas leis, se autoriza que os imigrantes as violem? Nunca existiram civilizações sem movimentos migratórios, mas estes, quando anárquicos, originam guerra nas ruas e zonas sem lei que corroem um país.
A defesa incondicional dos indocumentados é um dos numerosos subterfúgios tendentes a empurrar o democrata comum para o campo de Vichy, ao imputar-lhe por tudo e por nada uma reedição do genocídio anti-semita, quando este cidadão se limita a pedir o cumprimento da lei votada. É igualmente uma forma indirecta de ocultar a verdade sobre o exame do comunismo e, em geral, do passado da esquerda, ao alegar a urgência prioritária da «luta antifascista».
Nesta perspectiva, a fronteira entre os regimes políticos é clara: de um lado, está a democracia liberal acompanhada do fascismo ou do nazismo, do outro, a esquerda, da qual o comunismo sempre fez parte. Aos olhos da esquerda, os seus altos feitos não foram suficientes para o fazer expulsar da comunidade democrática, que, antes pelo contrário, resmunga para aí admitir a direita liberal, a toda a hora e fora de propósito apelidada de ideias afins a Vichy. O processo do comunismo não tendo, para a esquerda, aparentemente estabelecido a sua incompatibilidade essencial com a democracia, implica que se deixe de o criticar pelo seu passado (e pelo seu presente: Castro e tutti quanti) em função do papel importante que lhe está guardado para lutas futuras. Encontramos aqui uma desonestidade: o marxismo não deve ser julgado a não ser em função das suas promessas e não pela forma como as cumpriu.
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Enigma do nosso tempo: a esquerda do pós-comunismo coloca mais zelo a branquear o passado comunista do que aquele que os próprios dirigentes soviéticos utilizam. É patente, nas memórias de Sergo Beria, Beria mon père, que estes dirigentes, antes mesmo da confissão do relatório Khruchtchev, tinham todos «o sentimento de participarem num regime criminoso e de cometerem infâmias» (Françoise Thom, prefácio). Cada um possuía os processos dos crimes dos outros, de forma a poderem denunciá-los se alguma vez fossem acusados, bem entendido, com Lavrenti Beria em primeiro lugar, porquanto ele dirigia o NKVD, antecessor do KGB, desde 1938. François Hollande irá acusá-lo de ter «com isto preparado alianças com a extrema-direita»? De uma coisa pode estar certo: essas alianças foram desde cedo solidamente estabelecidas. Largos anos antes do pacto Hitler-Estaline, a URSS tinha começado a entregar à Gestapo comunistas alemães, agentes do Comintern, que se encontravam no seu território. Isto faz igualmente parte da História – de modo algum daquela história censurada que Hollande ameaça impor.
Tendo assim lavado o comunismo da sua criminalidade ou, pelo menos, tendo-o retocado e disfarçado com uma camada superficial de inocência, podemos encetar a segunda fase da operação «grande parada»: a reabilitação democrática do comunismo, a qual, como o exige toda a argumentação marxista habilmente pensada, passa pela sua reabilitação económica.
O comunismo conserva a sua superioridade económica porque combate o capitalismo, o mercado, o neoliberalismo e a sua consequência: a globalização ou, dito de outra maneira, a livre circulação planetária de mercadorias, capitais, pessoas, técnicas e ideias. Com certeza que a esquerda renunciou sustentar que as economias socialistas foram mais bem-sucedidas que as economias capitalistas, tese outrora corrente e defendida, durante os anos 50, por eminentes economistas «burgueses». Já não toca neste assunto. Limita-se a constatar que nem tudo vai pelo melhor no mundo actual. Nele encontram-se pobreza, desigualdades, crises, desonestidade, países que não progridem ou mesmo que se atolam no subdesenvolvimento. Ora, então a quem imputar estes fracassos? Não pode ser a mais nada senão ao capitalismo, dado que ele se apoderou do terreno desde que o socialismo real desistiu. Esta forma de raciocínio é para nós familiar: os comunistas prometiam uma sociedade perfeita, que não construíram; então decretam que o capitalismo é o mal absoluto, porque não permitiu a este fantasma ideológico tomar corpo. Assim concluem que os liberais são na realidade verdadeiros totalitários, prontos a usarem todos os métodos bárbaros de um «estalinismo de direita» (Jean-François Kahn) para impor o seu pretenso «pensamento universal», se bem que não seja nada único, pois, contrariamente às sociedades comunistas, as sociedades liberais admitem a contradição e implicam, pela sua própria natureza, a multiplicidade de opiniões. Mas, para a esquerda e extrema-esquerda, um regime é totalitário quando elas não são as únicas a poderem exprimir-se.
Atribuir a pobreza somente ao liberalismo assenta, alem disso, na hipótese ingénua de o mundo inteiro ser liberal. Ergo, a pobreza provém do liberalismo. Ora, a maioria dos países pobres tem sido, e numerosos dentre eles continuam a ser, dirigista. Com frequência arruinaram-se por terem copiado o modelo soviético: estatismo, colectivização da terra, indústrias deficitárias, corrupção dos dirigentes, aos quais a concentração do poder económico nas mãos do poder político permite a rapina institucional. As causas da miséria são frequentemente políticas, muito particularmente em África, onde, sobretudo, as incessantes guerras civis ou entre Estados, os genocídios intertribais, os massacres devidos ao fanatismo conseguiram tornar vã a ajuda internacional, de resto superior a qualquer outra parte, mas na sua quase totalidade desviada pelos governantes. Se é verdade que, grosso modo desde 1990, o fracasso do dirigismo proteccionista e o desenvolvimento da globalização obrigam a que pouco a pouco todas as economias se abram e se privatizem, esta recente e tímida evolução em direcção ao mercado não é nada ousada, e o liberalismo «totalitário» está longe de se impor soberanamente.
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A parte da esquerda que permanece fiel ao marxismo recebe então reforços provenientes de todos os quadrantes. Deixa de sustentar que o comunismo económico era bom por si próprio, em absoluto, nem que permanece como ideal a concretizar. A qualidade do comunismo é de qualquer modo relativa ao execrável capitalismo, seu velho adversário contra o qual luta e lutará até um fim dos tempos. Conquistou assim a vantagem definitiva de não ter mais necessidade de existir para ser verdade.
Daqui decorre uma consequência, e é a segunda premissa desta demonstração situada inteiramente no imaginário: não somente o comunismo tem razão no plano económico, como ainda hoje representa a única força realmente democrática. Aqui, ainda, o comunismo é a democracia não em si mesma, mas por contraste, pela sua oposição à essência fundamentalmente antidemocrática do liberalismo, do capitalismo e do mercado. A 30 de Abril de 1996, o PCF e os Verdes publicam uma declaração comum onde afirmam «a necessidade de pôr em causa as lógicas económicas e financeiras em nome das quais o presente e as gerações futuras são implacavelmente sacrificados (...) Trata-se da sobrevivência da humanidade» (não fazem a coisa por menos!). Este arrebatamento conduz a um apelo ao «aparecimento da democracia»[2], o que sugere que a existente nunca viu a luz do dia em parte alguma, ou, em todo o caso, que está ameaçada de morte pelo liberalismo. Como escreve o excelente historiador do comunismo Marc Lazar, «o comunismo é suposto instaurar um modelo superior de democracia, nomeadamente porque será dissociada do mercado[3]». Esta «suposição» é professada não só em França pelo PCF, extrema-esquerda e Verdes (os quais se revelam assim como um movimento menos ecológico do que ideológico), como também pela Rifondazione Comunista em Itália (a fracção dos comunistas que não aderiram ao PDS, Partido Democrático de Esquerda, denominação virginal do PCI «desmarxizado»), pelos comunistas dos Länder do Leste alemão e pela maioria dos partidos comunistas europeus mortos ou moribundos (escandinavos, belga, português, etc). Todos apontam um dedo mais do que nunca acusador à «ditadura do capitalismo» e ao «totalitarismo mercantil».
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Perante os crimes do comunismo, o caso de consciência americano difere apesar de tudo fundamentalmente do caso de consciência europeu. Nunca existiu nos Estados Unidos em relação aos crimes estalinistas ou maoístas a cumplicidade activa e aprovação maciça que lhes foi concedida na Europa. O erro americano, onde hoje desponta, é portanto teórico e de algum modo abstracto, e só o é para uma minoria intelectual, composta sobretudo por «liberais» (no sentido americano), enquanto, no nosso lado do Atlântico, é possível, como escreve também Marc Lazar em jeito de conclusão do seu artigo, «interrogarmo-nos se as opiniões europeias são capazes de reflectir sobre as suas tragédias passadas». Sobre a tragédia nazi, sim, mas em grande medida porque ela tece uma cortina de gás lacrimogéneo que impede de encarar de frente a tragédia comunista.
Na verdade, os negacionistas da história do comunismo, no fundo deles próprios, não ignoram as realidades que negam ou apresentam como acidentes não representativos. É assim que Sartre, bom conhecedor da matéria, escreve que «existe uma fé na má-fé». Entre a pura mentira e a crença cega estende-se uma bruma de consciência híbrida que comunga das duas sem que uma se imponha à outra. Quando os comunistas ou os seus amigos afirmam que desconheciam que os processos de Praga estavam viciados, eles mentem. Mas, ao mesmo tempo, reconhecem que os processos estavam viciados, o que de há muito se negavam a fazer. Da mesma forma que hoje admitem a existência do gulag, depois de terem tentado desacreditar Soljenitsine quando o Arquipélago foi publicado em 1973. Já não há ninguém que exalte a saúde florescente das populações que tanta admiração causava aos viajantes complacentes sobre as fomes genocidárias, cientificamente provocadas, da Ucrânia ou do Grande Salto em Frente chinês. Mas existe uma linha que não deve ser ultrapassada: não é necessário que a interpretação que decorre destes factos possa conduzir a uma condenação redibitória do comunismo enquanto tal e, sobretudo, possa servir para elogiar a superioridade do capitalismo democrático, em simultâneo enquanto civilização e enquanto sistema económico. (…)
O socialismo real igualmente reivindica no presente a não representatividade das suas perversidades, e o seu voto satisfaz um desejo tanto à direita como à esquerda. Desde que os ditadores classificados como fascistas (coronéis gregos de 1968 a 1974, Augusto Pinochet, generais argentinos após 1982, etc...) são tratados a justo titulo com reprovação, as mortes judiciais em Havana, os campos de concentração vietnamitas ou chineses, a fome provocada na Coreia do Norte, para não mencionar mais do que algumas façanhas recentes ou actuais, não tomam minimamente recomendáveis os ditadores que as cometeram. No entanto, eles tanto são convidados como recebem visitas aduladoras. A empresa pública autónoma dos transportes parisienses proporcionou a Castro presentes principescos, que, por sua vez, foram pagos pelos contribuintes franceses. Com efeito, pode ler-se em L’Humanité de 26 de Dezembro de 1995 o saboroso trecho que se segue: «Um bom presente de Natal para Cuba. Amanhã, vinte e cinco autocarros a cheirar a novos deixarão o porto do Havre a bordo de um cargueiro com destino a Havana. Esta solidariedade com este país das Antilhas, vítima do bloqueio (sic) imposto pelos Estados Unidos, e devida aos esforços conjuntos da RATP (Régie Autonome des Transports Parisiens) – que oferece os seus veículos – e da associação Cuba Coopération, notavelmente animada por Roger Grevoul, primeiro vice-presidente do Conselho Geral do Val-de-Marne. Estes autocarros serão acompanhados das suas peças sobressalentes bem como das ferramentas básicas para que lhes seja garantida a manutenção. É o Estado cubano que assegura o transporte, entre o porto do Havre até Havana, e a Cuba Coopération que se encarrega das taxas portuárias.»
Logo, a associação francesa de encorajamento aos assassinos de esquerda não abranda o seu zelo, apesar dos progressos devastadores do conhecimento histórico. Notemos de passagem a graça habitual sobre o «bloqueio». Ora, a melhor prova de que ele não existe... é os autocarros terem chegado ao destino. Sem ter consciência disso, L’Humanité fornece, no mesmo artigo, a mentira e a refutação da mentira.
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Pode então concluir-se que a esquerda consente num reconhecimento pelo menos parcial da verdadeira história do comunismo, embora amputada do seu significado. Os factos são encarados como se cada um fosse um caso isolado e não como partes de um quadro de conjunto, cujo significado só pode então ser alcançado quando se tem uma visão global. Esta é a razão por que a defesa do comunismo evita toda a globalização, toda a reintegração dos fracassos e dos crimes nas sequências das quais são elementos e donde só uma apreensão sinóptica permitiria reconstituir a sua lógica profunda. Daí o ódio eruptivo contra O Livro Negro, que, pelo efeito cumulativo da sua montanha de informações, proíbe que a história do comunismo seja segmentada numa justaposição de fenómenos isolados uns dos outros e sem ligação com o seu tronco comum.
As variações no acolhimento por parte da esquerda ocidental da obra de Soljenitsine já tinham ilustrado o funcionamento deste princípio: sim às críticas, se forem dirigidas a casos «lamentáveis» que possam ser apresentados como «falhas» do sistema; não, se elas levarem a concluir que é o próprio socialismo que é intrinsecamente destruidor do homem. Em 1962, é Pierre Daix, então chefe de redacção do hebdomadário literário do PCF, Les Lettres françaises, quem consagra a sua energia e talento a realçar o valor de Um Dia na Vida de Ivan Denisovitch, tanto como documento histórico como obra de arte. É verdade que Nikita Khruchtchev tinha autorizado a sua publicação na URSS, pois a narração de Soljenitsine vinha confirmar o seu relatório «secreto» de 1956 sobre os crimes de Estaline. É o próprio embaixador da URSS em Paris quem, agindo de acordo com instruções do seu patrão, pressionou o PCF a empenhar-se para fazer publicar Ivan Denisovitch o mais rapidamente possível. A esquerda não comunista sentiu-se então autorizada a incensar o autor. O tom mudou assim que, sob Brejnev, a partir de 1964, Soljenitsine voltou a ser alvo de ataques e de censura na URSS sem que tenha perdido em França o apoio de Pierre Daix, o qual, por este facto, perdeu ele mesmo progressivamente o apoio do PCF, que acabou por abandonar, após o encerramento do Les Lettres françaises, em 1972. Soljenitsine acabou por se transformar em pestilento aos olhos da esquerda depois da publicação de O Arquipélago Gulag. Com efeito, se as infelicidades de Ivan Denisovitch podiam ser classificadas na categoria de «erros» do regime, o Arquipélago mostrava que era o próprio regime que era um erro. Soljenitsine torna-se assim no inimigo. De Ivan Denisovitch a O Arquipélago Gulag houve a passagem de um pecado que se poderia qualificar como anomalia a um sistema político cujo universo concentracionário surgia como uma das suas condições. É esta conclusão geral que a esquerda não podia suportar e continua a repelir mesmo após a queda do comunismo.
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De qualquer das formas, o partido ainda resmunga para reconhecer, durante toda a sua história, a completa falta de autonomia em relação a Moscovo. Esta dependência absoluta, ferozmente negada pelos comunistas e de boa vontade «relativizada» pela esquerda não comunista, e até pela direita, foi definitivamente demonstrada graças à abertura dos arquivos soviéticos[4]. O seu conteúdo arruína o sistema de defesa do PCF, que, segundo quer fazer acreditar, não estava nem informado nem tinha sido cúmplice das atrocidades de Lenine, de Estaline e dos seus sucessores. Estamos de novo em presença do jogo das escondidas da semiconfissão: o PC reconhece, no final de contas, a existência dos crimes, mas já não reconhece o apoio que deu aos criminosos quando se colocou ao serviço da sua propaganda mentirosa nos países ocidentais, não ignorando de forma alguma a verdade.
Da mesma forma, no domínio económico, o reconhecimento do fracasso é aceite da boca para fora, mas permanece ambíguo e embrulhado. Em todo o caso, se existe fracasso, ele não releva em nada de uma ineptidão fundamental do comunismo em matéria económica. Segundo Marc Lazar, «a catástrofe económica, conforme alguns partidos – o espanhol, o grego e o português – acabam por sugerir, fica em muito a dever-se à assimilação por Gorbachev e por numerosos outros dirigentes dos países de Leste de valores do capitalismo: dito de outro modo, a queda dos regimes comunistas não se ficou na realidade a dever ao facto de serem comunistas , mas sim por terem renunciado ceder à tentação das sereias do capitalismo, o qual assim se tornou o responsável pelo seu fim.»
Seria necessário reflectir: o fracasso do comunismo prova o fracasso do capitalismo. Os cépticos que torcem o nariz a esta engenhosa argumentação devem, de qualquer das formas, ser impedidos de explorar os dissabores das economias colectivizadas na ânsia perversa de enaltecer a superioridade ou, pelo menos, a menor perigosidade do liberalismo. Portanto, eles não têm voz na matéria, pois a esquerda quer guardar para si também o mérito de ter, em primeiro lugar, criticado o comunismo. Segundo o princípio que a esquerda não pode ser validamente criticada a não ser a partir do «seu interior» (e porquê?, será que o mesmo se aplica à direita, à mafia, à Gestapo? estranho privilégio!), ela pretende esquecer aqueles que a criticaram a partir do exterior e encarniçadamente os procura desacreditar, quando o fizeram em tempos em que a crítica não era isenta de riscos. Seria preciso dar-lhes retrospectivamente razão e reconhecer retrospectivamente o erro. Ela prefere então mantê-los em silêncio.
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O que quer que seja que tenha dado origem a essas escaramuças internas e sem importância, que continuam a presidir as divisões e aos reagrupamentos, e qualquer que seja também o passado, do qual a esquerda concede que nem sempre foi digno da História, o comunismo deve perpetuar-se porque permanece a fonte de protestos contra as injustiças sociais, a invasão ultraliberal, antidemocrática. Com os seus novos aliados da extrema-esquerda – neles compreendidos, apesar de tudo, os trotskistas! –, ele permanece o motor central da «resistência» ao liberalismo. As ideias anticapitalistas, conforme já constatámos, pairam sobre extensões muito mais amplas do que os marxistas assumidos, e serão então, segundo estes, as que conduzirão ao futuro.
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Eles acreditam e, portanto, será que podem acreditar? Estarão convencidos da sua crença? Bem vêem que o mundo evolui na direcção oposta àquela que preconizam. Constatam cada dia que passa que o seu apego ideológico, mesmo que lhes proporcione clientela e público, não pode modificar o sentido geral dos termos em que se tomam as decisões e se orientam as acções. Na prática, o mundo inteiro pede liberdade de empreendimento e de intercâmbio, mercado, privatizações. As únicas fontes de resistência a esta corrente são os privilegiados alimentados pelos dinheiros públicos, os «direitos adquiridos», dos quais Mendès-France dizia que eram na maior parte das vezes uma injustiça.
A própria Europa, por tradição tão dirigista, acaba por descobrir uma verdade demonstrada para a qual os analistas que tinham previsto as consequências nefastas das nacionalizações maciças se esforçavam em vão, de há meio século a esta parte, por chamar a atenção. Esta verdade é que serviço público e gestão pública não são sinónimos. A escolha não é, pelo menos na generalidade, entre serviços públicos decalcados do modelo administrativo e empresas privadas submetidas somente à lei do mercado. Pode haver lugar, aliás, existem sempre, empresas privadas oneradas por obrigações de serviço público, conciliando a eficácia económica e as missões de interesse geral. Ora, a despeito de todas as crises de nervos antiliberais, é neste sentido da liberalização que, em vista de catástrofes passadas, os serviços públicos evoluíram na Europa durante a última década do século. Ao lado dos serviços públicos de gestão pública, assistimos de novo ao alargamento de uma parte dos serviços públicos com gestão privada ou, se assim o quisermos, à liberalização dos serviços públicos privados, no sector dos transportes, nomeadamente aéreo, das telecomunicações, dos correios, da energia. Esta pesada tendência prevalece igualmente nos outros continentes. Perante este fenómeno, a esquerda não pode fazer muito mais que travar um combate retardante. O progresso do neobolchevismo cunhando sobre as ruínas do neoliberalismo só existe na imaginação da ultra-esquerda. A economia socialista, quer siga a primeira ou a terceira via, pode fazer e ainda faz muito mal. Ela tem e ainda terá por muito tempo um elevado custo para os contribuintes, mas continua a ser por todo o lado implacavelmente eliminada pelas suas insuficiências.
No entanto, é certo que a recusa das lições da História é acompanhada pela cegueira perante as realidades do presente. As mentalidades caminham mais devagar do que os factos. Um dos passes de mágica na arte de iludir o real consiste, conforme já vimos muitas vezes e haveremos de tornar a ver, em atribuir ao liberalismo as devastações próprias da economia administrativa. E esse passe não é só propriedade da esquerda, pois ela semeou a sua ideologia bem para lá das suas próprias fileiras. Assim titula Le Figaro (22 de Julho de 1999) uma reportagem sobre a Mongólia: «Os foguetes molhados do capitalismo.» Este país de uma economia muito primitiva, baseada quase exclusivamente na criação de gado, sofreu, além disso, sessenta e oito anos de comunismo soviético com os habituais efeitos esterilizantes. O jornalista constata que dez anos após o fim do comunismo, a Mongólia vegeta na pobreza. Atribui inteiramente esta triste situação à chegada do liberalismo. Ora, como dez anos de «democracia» e de «liberalização», aliás das mais teóricas, poderiam ser suficientes para provocar na Mongólia um milagre capitalista moderno? Como poderia este país, onde não se encontra nenhuma das condições culturais prévias nem as estruturas económicas necessárias ao desenvolvimento capitalista, este país há milhares de anos a viver num sistema de economia primitiva e onde o comunismo agravou a enfermidade, improvisar numa década um conjunto complexo de métodos e saberes que o Ocidente demorou sete seculos a construir, e partindo de um nível anterior bem mais elevado?
Não é mais o sentido, é contra-senso da História, que parece impor-se a tantas mentes desnorteadas como grelha de interpretação e bóia de salvação intelectual.
[1] 16-17 de Julho de 1942. Prisão dos judeus estrangeiros que ocorreu em Paris, por determinação das autoridades de ocupação alemãs e efectuada com a colaboração da polícia parisiense. Esta operação originou a prisão de 12 884 pessoas, sendo 5802 mulheres e 4051 crianças, a maior parte as quais foi agrupada no recinto do Vélodrome d’Hiver, enquanto aguardavam a deportação. (N. do T.)
[2] Sublinhados meus. Este texto é citado por Stéphane Courtois, «PCF: l’impossible redressement», Les Cahiers d'Histoire sociale, n.º 8 Primavera-Verão de 1997.
[3] «L’idéologie communiste n’est pas morte» in revista Esprit, Março-Abril de 1997.
[4] Ver, em particular, Annie Kriegel e Stephane Courtois, Eugen Fried, le Grand secret du PCF, Seuil, 1997. Nascido na Eslováquia, mandatado por Estaline, Fried foi durante os anos 30 e 40 o patrão oculto do PCF. Philippe Robrieux já havia descrito esta personagem e o seu papel na biografia que, em 1974, dedicou a Maurice Thorez. Os arquivos vieram tornar inatacável este processo.
Excertos do capítulo X da obra La Grande Parade (2000), do filósofo francês Jean-François Revel, na edição portuguesa da Editorial Notícias (A Grande Parada, 2001), com tradução de António Cruz Belo.
Colaboração na edição: Igor Veloso.
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