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O Desejo de Totalitarismo

Jean-François Revel

Autoritarismo e Totalitarismo, Excertos e Ensaios, Filosofia Política, Direito e Instituições, Socialismo e Comunismo, Direitos Civis e Privacidade

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Existirá em nós um desejo de sermos governados de maneira totalitária? É uma hipótese que explicaria muitas atitudes, muitos discursos e muitos silêncios. No seio do que designarei provisoriamente como «a esquerda» dos países não comunistas, todos os defeitos das sociedades liberais são exagerados pelas suas críticas a tal ponto que elas são apresentadas como a máscara de uma realidade fundamentalmente totalitária, e os defeitos das sociedades totalitárias minimizados a tal ponto que elas parecem liberais na essência, quando não na aparência. Parte-se do princípio de que são boas por natureza embora passageiramente não respeitem os direitos do homem, e que as sociedades liberais são más por natureza, embora os homens aí sejam casualmente menos infelizes e mais livres. Lendo numerosos comentários publicados nos países, muito raros, onde se pode publicar livremente, uma sociedade comunista, mesmo reduzida a um imenso campo de concentração povoado por indivíduos que lutam penosamente para sobrevier, é uma sociedade em vias de melhoramento. Uma sociedade capitalista liberal, à parte toda avaliação da vida que aí se leva, é uma sociedade a destruir.

Esta desigualdade de tratamento é talvez, em primeiro lugar, o resultado mecânico da diferença de regimes políticos: nas sociedades em que é permitida a autocrítica, a denúncia contínua das injustiças acumula rapidamente uma montanha de censuras, enquanto, por outro lado, o silêncio imposto às sociedades totalitárias impede no dia a dia a notação do seu passivo. Este passivo, evidentemente, é revelado de tempos a tempos, mas por observadores exteriores e evadidos, o que não produz o mesmo efeito que o incómodo provocado por uma oposição interna fazendo ela própria parte do sistema que ataca e que não tem o mesmo peso que um voto, onde uma fracção importante dos Polacos ou dos Romenos, por exemplo, no decurso de eleições livres, se pronunciassem, à vista de todos, contra o socialismo. Na prática, portanto, as falências e os crimes do capitalismo liberal e social-democrata são quase diariamente revelados e sem piedade. Por fim, só existem estas sociedades cujo processo é permanentemente instruído pelos próprios homens que nelas se inserem.

Estes homens adquirem, pois, uma visão dos regimes sociais e políticos do planeta desfavorável ao seu próprio sistema e conducente a destruí-lo, enquanto a mesma tendência para a difamação crítica, correctora ou destruidora, não se pode manifestar nas sociedades comunistas, onde a mensagem corrosiva é constantemente extirpada à nascença ou troncada na sua difusão pelo poder burocrático. Tudo se passa, pois, como num jogo de futebol onde só seriam inscritos no quadro de resultados os pontos perdidos por uma das duas equipas.

Porém, se explica sem dúvida o pró-comunismo de certos países do terceiro mundo onde as massas são mal informadas e, sobretudo, nunca conheceram o liberalismo político, esta disparidade não bastaria para dar conta da crescente insistência levada a cabo no Ocidente para declarar negligenciável a liberdade, em benefício de uma justiça que, por outro lado, os países comunistas já não procuram. É aí pois que está o absurdo. Se existissem provas concretas de que renunciando à liberdade e à dignidade se alcança a justiça, a escolha seria dolorosa, mas haveria escolha. Este não é o caso, e todos o sabem, mas raramente o têm em conta.

O intrigante paradoxo do «diálogo» Este-Oeste parece residir mais na recusa do que na incapacidade da esquerda ocidental de tirar as conclusões políticas, económicas e morais do quadro das sociedades socialistas, ou até de o compreender, excepto em breves momentos. Pelo contrário, a testemunha que denuncia esta opressão é ela própria frequentemente considerada reaccionária. Além do mais, não têm os fascistas os mesmos propósitos que ela? Se um tinhoso denunciou a peste, todos os que denunciam a peste são tinhosos. A censura espontânea da informação é a longo prazo mais eficaz do que uma censura oficial. Como diz um antigo professor da universidade de Praga: «Satisfeito, condescendente, escutando a sua própria voz, o Ocidente repete para si o seu próprio elogio do socialismo... o não vivido arvorado em dogma[1]» Como nem sempre é possível ignorar totalmente e de maneira prolongada a realidade dos países do Leste europeu, da China e de certos «socialismos» do terceiro mundo, a recusa em os julgar deve traduzir provavelmente a decisão de os aprovar contra tudo e contra todos.

É por isto que não é de ignorar que o móbil de um tal esquecimento voluntário seja, por parte de uma importante minoria ocidental, um desejo inconfessado de viver no sistema estalinista, não obstante o que ele é, mas por causa do que é. Uns, para saciar um apetite de exercer a tirania, de que nenhum de nós está isento; outros, por necessidade de se submeterem à sujeição, aspiração inquietante de que ninguém tão-pouco talvez esteja isento. No fim de contas, se a tirania nunca encontrasse a cumplicidade das suas vítimas, a história do nosso tempo e de muitos outros não teria sido o que foi.

O eventual apelo à psicologia das profundezas não é aliás talvez necessário para explicar a indulgência que rodeia o totalitarismo. A psicologia vulgar explica de uma maneira muito satisfatória que a minoria que actualmente dirige os partidos e os sindicatos comunistas no Ocidente aspira estender o seu poder a toda a sociedade. Certas características só se revelam quando o absolutismo se exerce. Uns sentem-se incapazes de alcançar as primeiras linhas ou uma qualquer linha do poder, por mais obscura que ela seja, numa sociedade onde o zelo ao serviço da tirania não se substituiria ao talento; outros, providos, pelo contrário, de um grande talento, não podem suportar que a autoridade daí resultante tenha limites ou um fim. O anormal, na história dos homens, é a aceitação do pluralismo e não o desejo de lhe escapar. De resto, o que aceitamos – quando aceitamos – nunca é o pluralismo, mas os inúmeros golpes diariamente infligidos ao nosso poder e ao nosso orgulho, é, no abstracto, o sistema que torna o pluralismo inevitável. Escolhemos por uma questão de razão e moralidade a regra da limitação mútua e estatutária das vontades de poder. Mas, por natureza, qual seria o homem que não escolheria a omnipotência, se estivesse seguro de um sistema no qual ela sempre lhe pertencesse e nunca a outrem? Afirmar-se isento deste desejo não passa de hipocrisia.

Quanto à massa daqueles que, num eventual sistema totalitário, serão excluídos do poder e submetidos à dominação da minoria burocrática e da polícia secreta oficial, que sabem eles, antes de nela entrarem, dessa experiência futura?

Nas sociedades mais bem informadas existe um terceiro mundo interno da informação. À força de ouvir dizer que as sociedades liberais do Ocidente industrializado constituem o paradoxismo histórico da opressão, da miséria, que qualquer que seja a mudança esta é preferível à atrocidade do presente, os eleitores dos partidos comunistas ocidentais optam pelo regime totalitário não certamente com o desejo do estalinismo, que ignoram, mas das reformas e dos benefícios que julgam não poderem ser obtidos sem ele. E, uma vez que as massas possam julgar por experiência directa o sistema estalinista, perderão por este facto a possibilidade se lhe subtraírem, caso em que a sua opinião sobre este assunto mudaria. O característico e a função da passagem para um regime totalitário é não existir possibilidade de recuo, salvo cataclismo mundial, ou uma guerra intercontinental, por exemplo. A partir do momento em que aqueles que nele vivem e o vivem estão aptos a julgá-lo com conhecimento de causa, deixam de ser capazes de o abolir, de o criticar, de o transformar, ou mesmo de lhe fugir. Em seguida, após uma geração, um povo submetido ao totalitarismo não tem quase nenhum meio de comparar a sua própria sociedade com qualquer outra. Mais decididamente rigorosos que os regimes autoritários tradicionais, simplesmente ditatoriais, os poderes totalitários interditam não só que os seus membros viajem livremente no estrangeiro, como os estrangeiros de viajar à vontade no seu território. Estando a informação completamente afastada em benefício da propaganda, torna-se impossível para os habitantes dos países totalitários manter ou conceber a imagem duma sociedade oposta à sua. A faculdade não só de pensar, mas também de sonhar estiola. Bombardeada pela propaganda política, enfraquecida pelo isolamento cultural, vê-se amputada da sua faceta nostálgica assim como da sua faceta utópica. Estes povos deixam de poder imaginar quer o passado quer o futuro.

Nenhuma experiência palpável justificou até agora as esperanças que a esquerda liberal baseia incansavelmente numa evolução dos comunistas a favor da democracia pluralista e para uma aceitação da «alternância no poder», quer dizer um comprometimento em se deixar desapossar por um voto regular, se tal vier a acontecer.

A particularidade característica do regime comunista, a sua própria definição, a sua razão de ser, é destruir as condições da sua contestação, portanto, de retirar às massas, como aliás à própria minoria dirigente, qualquer ocasião de mudar de ideias, uma vez passado o momento inicial em que este regime se constituiu. O comunismo não teria sentido se tolerasse, ao fim de uma «discussão franca e cordial» com parceiros liberais, que se juntasse ao sistema uma pequena cláusula estipulando que o pluralismo seria admitido e que o poder seria abandonado, se tal fosse o desejo de uma maioria de cidadãos, uma vez conquistado. A forma comunista de governo, ao subscrever tal cláusula, agiria de maneira tão contrária à sua natureza como uma firma multinacional capitalista cujo presidente desse aos seus concorrentes o direito de o expropriar a todo o momento. Aliás, todas as liberalizações nos países comunistas foram, por esta razão, rejeitadas pela lógica do sistema.

O que caracteriza, efectivamente, os sistemas democráticos pluralistas, baseados no sufrágio, é que os erros de direcção são, em princípio pagos pelos governos, enquanto, nos sistemas comunistas o são, em princípio, pelo povo. Quando digo pagos, não quero dizer, naturalmente, que os povos, nas democracias, não sofram, para nossa infelicidade, as consequências das faltas dos governantes. Contudo, a sanção, prevista pelo sistema, do fracasso de uma política é a substituição no poder de uma maioria por outra. Pelo contrário, a lógica do comunismo, ao fim de um período de fracassos, mesmo se se derem destituições individuais no seio da oligarquia, é reforçar o controlo do povo por esta oligarquia. Em gíria estalinista, é o que se chama «normalização».

Eis o sentido da forma comunista de governo. Quanto ao comunismo de oposição, nas democracias ocidentais, é incoerente e não justifica a disciplina que impõe aos seus dirigentes e militantes, visto que o fim da sua actividade é o poder absoluto e definitivo. Eliminando esta finalidade tudo o mais se torna absurdo. Porquê usar tácticas politicamente pouco eficazes e humanamente odiosas no imediato, se se trata apenas de conquistar um poder exclusivo? Os comunistas italianos, como é do conhecimento geral, podem permitir-se ser mais tolerantes que, por exemplo, os franceses, porque são mais numerosos e as suas oportunidades de se apoderarem democraticamente do poder constitui uma via realista, o que não é o caso da França. Mas seriam incoerentes se não visassem a etapa logicamente seguinte: depois de se terem tornado um dos partidos no poder, eliminar os outros partidos. Se não a visassem, seriam convertidos em sociais-democratas.

O fim dos comunistas é a tomada do poder pelo Partido Comunista. É, evidentemente, o fim de todos os partidos políticos. Mas o que o distingue dos outros partidos, é a sua maneira de utilizar o poder quando o possui. E, como em todos os partidos políticos, é preciso distinguir entre as justificações que os comunistas dão à sua actuação e a utilização efectiva que fazem do poder quando o têm, naturalmente, e onde o têm – nem em toda a parte, nem em todo o momento.

A ilusão dos pró-comunistas liberais de esquerda consiste em pensar que existe outro comunismo que não seja o estalinista. Ora, o estalinismo é a essência do comunismo. O que varia, não é o sistema estalinista, é o rigor maior ou menor com o qual é aplicado. Não se pode fuzilar ou internar eternamente toda a gente. Não se é todos os dias obrigado a enviar blindados para restabelecer a ordem estalinista num país amigo. O que conta é o resultado. Nos períodos em que a dissuasão aliada a um acréscimo do consumo basta para evitar as revoltas, a repressão nada tem de espetacular: é rotineira e quotidiana. Não deixa de ser menos estalinista. Kruchtchev e Brejnev não foram menos estalinistas que Estaline, na medida em que mantiveram a sua ordem. Enviaram tropas aos países satélites quando foi necessário. Foram simplesmente menos sanguinários que Estaline, e puseram fim aos assassínios disfarçados em processos. Mas o aparelho policial, as prisões arbitrárias, os campos de concentração, todo o sistema totalitário de controlo das pessoas e das ideias continuou. Não podia ter sido de outra forma. Fosse em Moscovo, em Pequim ou em Hanói, um comunismo que não fosse estalinista destruir-se-ia a si próprio. A «independência», muito relativa, da política externa romena em relação à U.R.S.S., traduziu-se por um reforço do estalinismo no interior da Roménia, e isto para não fornecer um pretexto de intervenção às tropas soviéticas, no caso do socialismo poder parecer estar a ser ameaçado em Bucareste. Talvez agradável para o ego dos dirigentes, esta política externa arrasta pois, para o povo romeno, uma intensificação do totalitarismo. Todavia, a Roménia não é vítima da proximidade dos Estados Unidos e do «embargo imperialista», razões pelas quais se justifica habitualmente o totalitarismo cubano. O próprio titismo gerou uma certa liberdade de acção de Tito em relação a Moscovo, muito maior que a dos Jugoslavos em relação a Tito. No fim de contas, uma experiência histórica presentemente tão vasta permite concluir, de forma alguma pela especulação, mas pela mera constatação, que nunca existiu nem existe regime comunista não estalinista. Não confundamos as tentativas com os sistemas, nem os livros que se escrevem com as sociedades em que se vive.

Assim, o desejo de totalitarismo contém duas componentes.

Uma, que é popular, não é efetivamente um desejo de totalitarismo, visto repousar na ignorância dos sistemas comunistas, natural em países em que ninguém jamais os viveu. É uma expressão política particular da luta de classes, da luta pela justiça económica e melhoria da vida em geral, sem uma visão precisa do regime futuro que implica esta escolha política. Nesta componente popular, a solução de alternativa comunista é concebida simplesmente como o inverso dos defeitos da sociedade na qual se vive.

Em contrapartida, a outra componente, a componente elitista do desejo de totalitarismo, faz-se acompanhar da consciência nítida de uma escolha de sociedade, a despeito dos vícios notórios deste tipo de sociedade, e a despeito da repugnância em admitir que estes vícios lhe são verdadeiramente inerentes e não constituem desvios acidentais. Depende, pois, duma explicação psicossocial mais complexa.


[1] Yannakakis, citado por C. Jelen, Les Normalisés, Paris, 1975, Albin Michel.

Capítulo 2 da obra La Tentation Totalitaire (1976) do pensador francês Jean-François Revel, na edição portuguesa da Livraria Bertrand (A Tentação Totalitária, 1976), com tradução de Maria da Graça L. Gomes, Fernanda Barão e Noémia Seixas.

Colaboração na edição: Mónica Miguêns.

Narração: Pedro Almeida Jorge.

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