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O Federalista N.º 51

James Madison

Clássicos, Excertos e Ensaios, Filosofia Política, Direito e Instituições, Governo, Finanças Públicas e Tributação, Escolha Pública, Direitos Civis e Privacidade

Português

Estrutura do Governo Deve Fornecer os Freios e Contrapesos (Checks and Balances) Adequados entre os Diversos Departamentos

6 de Fevereiro de 1788

Ao Povo do Estado de Nova Iorque.

Então, a que meio devemos afinal recorrer, para manter na prática a necessária repartição de poder entre os diversos departamentos, tal como é estabelecido na Constituição? A única resposta que pode ser dada é que, como todas essas disposições exteriores se mostraram inadequadas, a insuficiência deve ser suprida imaginando a estrutura interna do governo de tal modo que as suas partes constituintes possam, através das suas relações mútuas, constituir os meios de se manter umas às outras nos devidos lugares. Sem a presunção de intentar um desenvolvimento completo desta importante ideia, arriscarei algumas observações gerais, que talvez a possam aclarar, e nos dêem a capacidade de formar um juízo mais concreto dos princípios e estrutura do governo planeado pela Convenção.

Com o intuito de lançar os adequados alicerces para esse exercício separado e distinto dos diferentes poderes de governo que, em certa medida, é admitido por todos como sendo essencial para a preservação da liberdade, é evidente que cada departamento deverá ter uma vontade que lhe seja própria e, consequentemente, deverá ser constituído de tal maneira que os membros de cada um tenham tão pouca intervenção quanto possível na nomeação dos membros dos outros. Se este princípio fosse rigorosamente adoptado, ele exigiria que todas as nomeações para as supremas magistraturas, executiva, legislativa e judicial, proviessem da mesma fonte de autoridade, o povo, através de canais que não tivessem nenhuma espécie de comunicação uns com os outros. Talvez um tal plano de construção dos diversos departamentos fosse menos difícil na prática do que aparenta ser quando o contemplamos. No entanto, a sua execução seria acompanhada de algumas dificuldades e alguma despesa adicional. Por conseguinte, têm de ser admitidos alguns desvios ao princípio. Em particular na constituição do departamento judicial, pode ser pouco expedito insistir rigorosamente no princípio. Primeiro, porque os seus membros precisam de qualificações especiais, a primeira consideração devia ser seleccionar o modo de escolha que melhor assegura essas qualificações; em segundo lugar, porque a posse permanente dos mandatos nesse departamento bem cedo deve destruir toda a sensação de dependência da autoridade que as confere.

É igualmente evidente que os membros de um departamento deverão ser tão pouco dependentes quanto possível dos membros dos outros, no que toca aos emolumentos anexos aos seus cargos. Se o magistrado executivo ou os juízes não fossem independentes da legislatura neste aspecto particular, a sua independência em todos os outros aspectos seria meramente nominal.

Mas a grande protecção contra uma concentração gradual dos diversos poderes no mesmo departamento consiste em dar àqueles que administram cada departamento os meios constitucionais e os motivos pessoais necessários para resistir à usurpação pelos outros. A providência para a defesa deve, neste caso como em todos os outros, ser comensurável com o perigo do ataque. Deve fazer-se com que a ambição contrabalance a ambição. O interesse do homem deve estar ligado aos direitos constitucionais do cargo. Pode resultar de uma reflexão sobre a natureza humana, que tais dispositivos sejam necessários para controlar os abusos do governo. Mas o que é o governo em si próprio senão a maior de todas as reflexões sobre a natureza humana? Se os homens fossem anjos, nenhuma espécie de governo seria necessária. Se fossem os anjos a governar os homens, não seriam necessários controlos externos nem internos sobre o governo. Ao construir um governo em que a administração será feita por homens sobre outros homens, a maior dificuldade reside nisto: primeiro é preciso habilitar o governo a controlar os governados; e, seguidamente, obrigar o governo a controlar-se a si próprio. A dependência do povo é, sem dúvida, o controlo primário sobre o governo, mas a experiência ensinou à humanidade a necessidade de precauções auxiliares.

Esta política de suprir, por meio de interesses opostos e rivais, a falta de melhores motivos, pode ser reconstituída ao longo de todo o sistema dos assuntos humanos, tanto privados como públicos. Vemo-la particularmente exibida em todas as distribuições subordinadas de poder, onde o alvo constante é dividir e combinar os diferentes cargos de uma maneira tal que cada um possa ser um controlo do outro e que o interesse privado de cada indivíduo possa ser uma sentinela dos direitos públicos. Estas invenções da prudência não podem ser menos indispensáveis na distribuição dos poderes supremos do Estado.

Mas não é possível dar a cada departamento um poder igual de autodefesa. No governo republicano, a autoridade legislativa predomina necessariamente. O remédio para este inconveniente é dividir a legislatura em diferentes ramos, e torná-los, por meio de diferentes modos de eleição e diferentes princípios de acção, tão pouco ligados uns aos outros quanto o admita a natureza das suas funções comuns e a sua dependência comum da sociedade. Pode até ser necessário protegê-los de perigosas usurpações por meio de ainda mais precauções. Tal como o peso da autoridade legislativa exige que ela seja assim dividida, a fraqueza do executivo pode exigir, por outro lado, que ele deva ser fortalecido. Um veto absoluto sobre a legislatura parece, à primeira vista, ser a defesa natural com que o magistrado executivo devia estar armado. Mas talvez isso não seja completamente seguro nem suficiente por si só. Em ocasiões normais ele pode não ser exercido com a indispensável firmeza, e em ocasiões extraordinárias pode abusar-se perfidamente dele. Não pode esta imperfeição de um veto absoluto ser suprida por meio de alguma ligação condicional entre este departamento mais fraco e o ramo mais fraco do departamento mais forte, através da qual o último pode ser levado a apoiar os direitos constitucionais do primeiro, sem ficar desligado em demasia dos direitos do seu próprio departamento?

Se os princípios em que se fundam estas observações estiverem certos, como estou convencido de que estão, e se forem aplicados como critério às várias Constituições dos Estados e à Constituição federal, ver-se-á que se a última não corresponde perfeitamente a eles, as primeiras são infinitamente menos capazes de suportar um teste desse tipo.

Há ainda mais duas considerações particularmente aplicáveis ao sistema federal da América, que colocam esse sistema sob um ponto de vista muito interessante.

Primeiro. Numa república simples, todo o poder entregue pelo povo é submetido à administração de um único governo, e as usurpações são prevenidas por uma divisão do governo em departamentos distintos e separados. Na república composta da América, o poder entregue pelo povo é primeiramente repartido por dois governos distintos, e, depois, a parte atribuída a cada um deles é por sua vez repartida entre departamentos distintos e separados. Surge deste modo uma dupla segurança para os direitos do povo. Os diferentes governos controlar-se-ão mutuamente ao mesmo tempo que cada um deles será controlado por si próprio.

Segundo. Numa república é de grande importância não só defender a sociedade contra a opressão dos seus governantes, mas defender cada parte da sociedade contra a injustiça da outra parte. Existem necessariamente diferentes interesses em diferentes classes de cidadãos. Se uma maioria estiver unida por um interesse comum, os direitos da minoria ficarão pouco seguros. Há apenas dois métodos de providenciar contra este mal: um, criando na comunidade uma vontade que seja independente da maioria, isto é, da própria sociedade; o outro, abrangendo na sociedade tantos tipos distintos de cidadãos que se torne muito improvável, ou mesmo impraticável, um conluio injusto de uma maioria do todo. O primeiro método prevalece em todos os governos que possuem um poder hereditário ou autocrático. Esta é, no máximo, apenas uma segurança precária, porque um poder independente da sociedade pode abraçar igualmente os pontos de vista injustos do partido maioritário, ou os justos interesses do minoritário, e pode talvez ser virado contra ambos os partidos. O segundo método será exemplificado pela república federal dos Estados Unidos. Embora toda a sua autoridade deva ser derivada e depender da sociedade, a própria sociedade estará fragmentada em tantas partes, interesses e classes de cidadãos, que os direitos dos indivíduos, ou da minoria, correrão pouco perigo de quaisquer conluios de interesses da maioria. Num governo livre a protecção dos direitos civis deve ser a mesma que a dos direitos religiosos. Ela consiste, num caso, na multiplicidade de interesses, e no outro, na multiplicidade das seitas. O grau de protecção em ambos os casos dependerá da quantidade de interesses e seitas, e isto pode presumir-se como dependente da extensão do país e da quantidade de pessoas abrangidas por um mesmo governo. Este ponto de vista sobre o assunto deve recomendar particularmente um sistema federal justo a todos os amigos sinceros e ponderados do governo republicano. Dado que mostra que, na exacta proporção em que o território da União possa ser constituído por Confederações ou Estados mais circunscritos, os conluios opressores da maioria ficarão facilitados, a melhor segurança possível sob a forma republicana para os direitos de todas as classes de cidadãos ficará diminuída. E consequentemente, a estabilidade e independência de qualquer membro do governo, a única outra garantia, tem de ser aumentada proporcionalmente. A justiça é o objectivo do governo. É o fim da sociedade civil. Ela sempre foi, e será, procurada até que seja obtida, ou até que a liberdade seja perdida nessa porfia. Numa sociedade sob cujas formas uma facção mais forte pode facilmente unir-se e oprimir a mais fraca, pode dizer-se com verdade que nela reina a anarquia, tal como num estado de natureza em que o indivíduo mais fraco não está protegido da violência do mais forte. E tal como neste último estado até os indivíduos mais fortes são impelidos, pela incerteza da sua condição, a submeter-se a um governo que possa proteger os fracos bem como eles próprios, também, no primeiro daqueles estados, as facções ou partidos mais poderosos serão gradualmente induzidos por um motivo idêntico a desejar um governo que proteja todos, tanto os fracos como os mais poderosos. É difícil duvidar de que, se o Estado de Rhode Island fosse separado da Confederação e abandonado a si mesmo, a desprotecção dos direitos sob a forma popular de governo dentro de limites tão acanhados manifestar-se-ia por tantas opressões reiteradas de maiorias facciosas que depressa seria convocada alguma autoridade totalmente independente do povo pelo clamor das próprias facções cujo desgoverno tinha provado a necessidade dela. Na vasta república dos Estados Unidos, e entre a grande variedade de interesses, partidos e seitas que ela abrange, uma coligação da maioria da sociedade raramente poderá ter lugar com base em quaisquer princípios que não sejam os da justiça e do bem geral. E havendo menos perigo para um partido minoritário, vindo de um maioritário, deverá haver também menos pretextos para providenciar a protecção do primeiro através da introdução no governo de uma vontade não dependente do último ou, por outras palavras, uma vontade independente da própria sociedade. É tão certo quanto importante, apesar das opiniões contrárias que têm sido apresentadas, que quanto maior a sociedade, contanto que se mantenha dentro de uma esfera praticável, mais devidamente capaz ela será de autogoverno. E felizmente para a causa republicana, a esfera praticável pode ser alargada a uma grande extensão, através de uma judiciosa modificação e mistura do princípio federal.

PUBLIUS

Ensaio do constitucionalista americano James Madison (1751-1836), publicado sob o pseudónimo de Publius em 1788 e incluído nos famosos Federalist Papers, fundacionais da ordem política dos Estados Unidos da América.

A presente tradução, publicada em 2011 pela Fundação Calouste Gulbenkian, é da autoria de Viriato Soromenho-Marques e João C. S. Duarte.

 

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