Filosofia Política, Direito e Instituições, Governo, Finanças Públicas e Tributação, Excertos e Ensaios, Liberalismo e Capitalismo
O desmantelamento do estado através da democracia direta
Tenho simpatia total pelo desejo manifestado por Bruno Frey de uma democracia mais direta através da realização de referendos seguindo o modelo do sistema político suíço. No entanto, um teórico liberal cuidadoso que leia o trabalho de Frey pode facilmente chegar à conclusão de que, para ele, a democracia é um fim em si mesmo e que, por isso, é importante melhorar a participação democrática direta dos cidadãos. Embora seja verdade que o sistema suíço de referendos tem vantagens interessantes, que Bruno Frey explica adequadamente colocando-o em contraste com os sistemas mais alargados de democracia direta, defenderei que o nosso objetivo principal enquanto liberais deverá ser, no futuro, o reforço do liberalismo e do mercado livre e não da democracia per se. Ou, dito de outro modo, se a democracia direta tem algum mérito, é precisamente o de permitir uma aproximação (ainda que imperfeita) ao nosso ideal de mercado livre e governo limitado.
Os políticos contra os votantes
É verdade que a generalidade dos políticos não tem particular apreço pelos referendos. Um caso paradigmático poderia ser o da elite de políticos espanhóis que acordaram e escreveram a Constituição Espanhola de 1978, atualmente em vigor no país. O artigo 92 da constituição de Espanha só permite referendos não vinculativos para o governo (ou seja, referendos puramente consultivos). A Constituição Espanhola é provavelmente (em conjunto com a sueca) a mais restritiva da Europa no que diz respeito às condições, ao âmbito e aos efeitos dos referendos. Como resultado, e seguindo a análise de Frey, na Espanha é quase impossível quebrar o monopólio exercido pelos políticos da mesma forma que foi quebrado, por exemplo, na Suíça, quando a população suíça rejeitou a adesão ao Espaço Económico Europeu no referendo de 6 de dezembro de 1992 (embora seja verdade que este resultado foi pelo menos parcialmente revertido no referendo de 22 de maio de 2000, em que 67,2 por cento dos votantes da Suíça aprovaram os acordos bilaterais da Suíça com a União Europeia). A falta de uma democracia direta baseada em referendos na Espanha dá um pretexto contínuo aos assassinos estalinistas pertencentes ao grupo terrorista basco ETA, que se autodenominam “separatistas” e muito provavelmente perderiam o apoio sociológico implícito de que gozam (que estimaríamos em cerca de 10 por cento da população basca) se pudesse ser organizado um referendo com todas as garantias democráticas sobre a separação do País Basco da Espanha. Embora este referendo seja politicamente impossível para já, estou seguro de que: em primeiro lugar, a maioria dos cidadãos do País Basco (cerca de dois milhões de pessoas) rejeitaria a separação; e, em segundo lugar, independentemente do resultado final, o referendo poderia ser um elemento importante para a solução definitiva dos problemas de terrorismo do País Basco. Por isso, nesta matéria, também concordo com Bruno Frey quando este conclui no seu artigo (Parte IV, 4) que a democracia direta pode resolver matérias separatistas com «menos conflitos e derramamento de sangue do que normalmente acontece nas democracias em que os referendos não são comuns, ou são apenas usados sob a forma de "plebiscito"».
No entanto, não deixa de ser verdade que, em última análise, o conteúdo liberal da decisão política tomada é muito mais importante do que o procedimento democrático específico seguido para chegar à referida decisão. De facto, nenhum liberal se sentiria confortável, por exemplo, com um País Basco independente convertido numa espécie de estado socialista albanês separado do resto da Espanha e da União Europeia, cada uma das quais relativamente muito mais liberal. Este princípio obriga-nos a procurar procedimentos políticos muito mais eficazes na limitação do governo e no desenvolvimento de um verdadeiro mercado livre. A democracia direta poderá ser um destes procedimentos, desde que se combine sempre com o direito de qualquer grupo social à autodeterminação e à secessão da organização política em que está inserido.
A condição necessária para a democracia direta: o direito de secessão
Bruno Frey dedica a parte mais curta do seu artigo (a Parte III, “Referendum and Federalism”) ao que considero ser o aspeto mais importante: as ligações entre a democracia direta e a descentralização da tomada de decisões políticas. Para a democracia direta, «o pequeno é bonito e eficiente»[1] e o professor Frey explica claramente que o conhecimento de que se necessita para tomadas de decisão informadas é mais fácil de obter em comunidades políticas mais pequenas (de facto, não é mera coincidência que a tradição de referendos seja muito maior na Suíça dos cantões, com pouco mais de sete milhões de habitantes, do que em países tradicionalmente centralizados como a Espanha e a França, com 40 e 60 milhões de habitantes respetivamente). A este respeito, é preciso lembrar a seguinte lei económica: nas mesmas circunstâncias, quanto mais pequeno for o estado a que uma comunidade política se encontre associada, mais difícil será para o estado impor políticas prejudiciais de cariz intervencionista e protecionista e mais se verá obrigado a aceitar a liberdade de comércio e o liberalismo. Tudo isto porque, quanto mais pequeno for o estado em questão, mais os habitantes sofrerão e sentirão os custos se forem estabelecidas regulações e barreiras que impeçam o livre acesso aos mercados internacionais e a completa liberdade de comércio e de investimento. Além disso, Bruno Frey assinala (seguindo Tiebout, Buchanan e outros) que o aumento das possibilidades de que os cidadãos “votem com os pés”, emigrando das unidades políticas mais pequenas, «tende a minar os monopólios regionais dos políticos», pelo que podemos concluir que, num contexto político baseado nos princípios liberais de autodeterminação, o comércio livre e a liberdade de emigração e imigração (sujeita às leis de propriedade privada), uma constelação de pequenos estados impulsionará enormemente não só a liberdade mas também a prosperidade e o desenvolvimento cultural.[2]
Do ponto de vista liberal, existe, porém, um aspeto essencial em falta no artigo de Frey. Trata-se da possibilidade real de que, através de um ato de democracia direta (ou seja, referendo), uma maioria possa impor uma regulação que prejudique uma minoria. A democracia direta é, no melhor dos casos, uma forma melhorada de democracia, mas não dá nenhuma garantia de que se impedirá, em todas as circunstâncias, o uso do poder político e da coação institucionalizada contra as minorias. Por isso, para um liberal, é da máxima importância combinar os procedimentos políticos relacionados com a democracia direta com a existência do direito efetivo de secessão por parte de qualquer minoria que se sinta explorada como resultado de qualquer referendo. Assim, a minha conclusão é mais radical do que a de Bruno Frey: mais do que considerar o federalismo simples como um pré-requisito para tornar a democracia direta real (Parte III do artigo de Frey), os nossos ideais liberais deverão exigir que a democracia (mesmo a democracia “direta”) seja limitada pelo uso efetivo do direito de secessão, o que significa que qualquer grupo ou associação de indivíduos deverá ter a liberdade de decidir em qualquer momento se pretende ou não estar incluído num estado ou numa unidade política, criar um novo ou associar-se a outro previamente existente.
O desmantelamento do estado através da democracia direta e do direito de secessão
A explosão da revolução tecnológica no contexto atual da economia global está a criar novas possibilidades para a democracia direta e a secessão, que, para já, são ainda inimagináveis. Num mundo integrado de eleições realizadas através da Internet, em que se utilizassem, por exemplo, senhas individuais criptográficas, praticamente todos os assuntos poderiam ser submetidos a democracia direta com custos muito baixos. No mundo atual, os estados-nações estão a tornar-se cada vez mais anacrónicos. Um processo político baseado numa combinação efetiva de democracia direta e direito de secessão poderia criar ao longo do século XXI «um mundo que consistiria em dezenas de milhares de países, regiões e cantões diferentes e em centenas de milhares de cidades livres e independentes tais como os atuais Mónaco, Andorra, São Marino, Liechtenstein, Hong Kong e Singapura, com o consequente aumento substancial de oportunidades de migração por razões económicas.»[3] Este seria um mundo de pequenos governos liberais economicamente integrados através do mercado livre e de uma divisa-mercadoria privada, como o ouro, e tornar-se-ia um mundo com um crescimento económico sem precedentes e de prosperidade nunca antes vista. Neste novo mundo que muitos liberais imaginam para o século que agora começou, não seria sequer necessário votar sempre “com os pés” para assegurar a liberdade (por exemplo para evitar qualquer “ilha” de tirania ou opressão) se acabasse por se desenvolver, mais ou menos espontaneamente, um sistema de Jurisdições Funcionais Sobrepostas e Competitivas (JFSC) [em inglês, Functional Overlapping Competing Jurisdictions], baseadas na democracia direta e nos referendos. Estas Jurisdições, que se sobreporiam e teriam uma natureza governamental, embora não se restringissem a nenhuma área geográfica historicamente determinada, poderiam competir umas com as outras, e foram imaginadas e explicadas num artigo brilhante apresentado pelo Professor Bruno Frey no encontro regional da Sociedade Mont Pèlerin em Barcelona,[4] e que recomendo a todos os leitores.
O anarco-capitalismo como ideal assintótico da democracia direta
Não podemos, como é óbvio, explicar aqui ao pormenor o sistema de Jurisdições Funcionais Sobrepostas e Competitivas de Frey. A minha principal crítica a este sistema (bem como ao sistema de estados mínimos e cidades livres de Hoppe) é a de que todas estas jurisdições continuariam a ter, em última análise, caráter governamental, pelo que poderiam continuar a coagir os cidadãos através do sistema fiscal, de regulações intervencionistas, etc. Assim, a minha principal pergunta é a seguinte: porque não melhorar ainda mais a democracia direta tornando estas jurisdições completamente voluntárias? Se assim fosse, alcançaríamos a mais perfeita "democracia direta” imaginável, ou seja uma situação já descrita por Frank Albert Fetter em 1913, quando definiu o mercado como uma espécie de democracia em que cada cêntimo dá direito a um voto,[5] ou pelo destacado antigo membro da sociedade Mont Pèlerin, William Hutt, que utilizou pela primeira vez o conceito de “soberania do consumidor”.[6] É certo que estas expressões e comparações não são inteiramente perfeitas porque, mais do que comparar o mercado com o denominado “ideal democrático”, a comparação deveria ser feita sempre em sentido inverso: seria muito mais correto afirmar que a democracia direta é um sistema que confere aos cidadãos a mesma supremacia no âmbito da esfera política que a economia de mercado já lhes concede nas outras áreas económicas e sociais.[7] Se assim for, a forma mais perfeita de democracia direta só se alcançará depois de o mercado livre se alargar às áreas que atualmente estão reservadas aos governos através de uma constelação de agências, associações e empresas privadas voluntárias em competição e sobreposição.[8] Assim, encontraríamos a forma de eliminar completamente os políticos e os respetivos monopólios que atuem contra os cidadãos comuns, atingindo a mais perfeita “democracia” imaginável no século XXI: a constituída pelo processo baseado na propriedade privada e no mercado livre (anarcocapitalismo).
Esta é a comunicação que apresentei no encontro regional da Sociedade Mont Pèlerin que teve lugar em Santiago do Chile entre 24 e 27 de novembro de 2000. Fiz uma apresentação conjunta com James M. Buchanan e Bruno S. Frey sobre o futuro da democracia, sendo a minha tarefa comentar o artigo de Frey “The Future of Democracy: ln Search of Greater Citizen Participation through Direct Democracy”, no qual Frey defendia o alargamento do sistema suíço de referendos a todos os países.
[1] Hans-Hermann Hoppe, “Small is beautiful and efficient: the case for secession”, Telos, nº 107, 1996, p. 107.
[2] Jesús Huerta de Soto, “A theory of liberal nationalism” e “A libertarian theory of free immigration”, capítulos 7 “Teoria do nacionalismo liberal” e 8 “Teoria liberal sobre a imigração” do presente livro.
[3] Hans-Hermann Hoppe, ob. cit., p.101.
[4] Bruno Frey, “A Utopia? Government without territorial monopoly”, The Independent review, VI, nº 1, verão de 2001, pp. 92-112.
[5] Frank A. Fetter, The Principles of Economics, Nova Iorque, 1913, pp. 394 e 410.
[6] William Hutt, “The concept of consumer’s sovereignty”, Economic Journal, março 1940, pp. 66-77; Murray N. Rothbard, Man, Economy, and State, Nash Publishing, Los Angeles, Califórnia, 1970, pp. 561-566.
[7] Mises, Human Action, ob. cit., p.471.
[8] Murray N. Rothbard, For a New Liberty, Macmillan, Nova Iorque, 1973; David Friedman, The Machinery of Freedom, Open Court, Illinois, 1989.
Capítulo 14 da obra Teoria da Eficiência Dinâmica, publicada em Portugal em 2016 pela editora Bnomics, com tradução de Nuno Carvalho.
Agradecemos ao autor e à editora a sua gentil permissão para a divulgação do presente texto.
Transcrição: David Rito.
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