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O Imperativo Moral dos Mercados

Friedrich A. Hayek

Excertos e Ensaios, Economia, Liberalismo e Capitalismo, Nível Introdutório, Socialismo e Comunismo

Português

Em 1936, ano em que (inteiramente por coincidência) John Maynard Keynes publicou A Teoria Geral, apercebi-me subitamente, ao preparar o meu discurso presidencial para o London Economic Club, que os meus trabalhos anteriores em diferentes ramos da economia tinham uma raiz comum. Essa raiz consiste na ideia de que o sistema de preços é, na verdade, um instrumento que permite a milhões de pessoas ajustar os seus esforços a acontecimentos, exigências e condições das quais não têm conhecimento directo e concreto, e que a coordenação de toda a economia mundial se deve a certas prácticas e costumes que se desenvolveram inconscientemente. O problema que já tinha identificado nos meus primeiros estudos sobre as flutuações industriais – a saber, que os falsos sinais de mercado desorientam as acções humanas – foi o mesmo ao qual depois havia dado seguimento noutros ramos da disciplina.

A inspiração de Ludwig von Mises

Neste âmbito, o meu pensamento foi inspirado em grande medida pela concepção de Ludwig von Mises sobre o problema de coordenar uma economia planificada. As minhas investigações anteriores sobre as consequências da intervenção no mercado de arrendamento haviam-me mostrado, mais claramente do que qualquer outra coisa, como a interferência do governo no sistema de preços perturba por completo as acções humanas na esfera económica. Todavia, demorei bastante tempo até desenvolver aquela que, na verdade, é uma ideia simples. Intrigava-me que o Socialismo de Mises[1] - que, no meu caso, se havia revelado tão convincente e que parecia finalmente demonstrar porque é que o planeamento central não podia funcionar - não tivesse convencido o resto do mundo. Perguntei-me por que razão isso acontecia.

Os preços e a ordem económica

Aos poucos, fui-me apercebendo que a tarefa básica da ciência económica é explicar o processo de adaptação da actividade humana a dados sobre os quais ela não dispõe de informação. Assim, toda a ordem económica assenta no facto de que, ao utilizarmos os preços como guias, ou como sinais, somos levados a recrutar os poderes e as capacidades e a servir a procura de pessoas sobre as quais nada sabemos. Só fazendo uso e dependendo de um sistema que nunca chegámos a compreender nem a planear é que nos tornámos capazes de produzir a riqueza necessária para sustentar um enorme aumento da população mundial, e de começar a realizar as nossas novas ambições de distribuir esta riqueza de forma mais justa. Basicamente, a percepção de que os preços são sinais que levam à coordenação imprevista dos esforços de milhares de indivíduos – e que coincide, em certa medida, com a teoria moderna da cibernética - tornou-se na principal ideia por detrás da minha obra.

Isso obrigou-me inevitavelmente a investigar a relação entre as crenças políticas actuais e a preservação do sistema do qual depende a riqueza de que tão descomedidamente nos orgulhamos. Embora Adam Smith, tal como [Alfred] Marshall 150 anos mais tarde, tenha basicamente compreendido que o sucesso do nosso sistema económico resulta de um processo não planeado de coordenação das actividades de uma miríade de indivíduos, nunca conseguiu, por completo, convencer desta verdade os líderes da opinião pública.

Fazê-lo tornou-se a minha principal tarefa, e demorei cerca de 50 anos para ser capaz de a expor tão brevemente e em tão poucas palavras como aqui acabei de ensaiar; ainda mesmo há 10 anos atrás não a conseguiria ter exposto de forma tão sucinta. Parece óbvio, uma vez afirmado, que o pilar fundamental da nossa civilização e da nossa riqueza é um sistema de sinais que nos informa, ainda que imperfeitamente, dos efeitos de milhões de acontecimentos que ocorrem no mundo, aos quais temos de nos adaptar e sobre os quais é possível que não tenhamos informação directa.

Melhorar o Sistema de Mercado

Esta percepção tem consequências extraordinariamente importantes, uma vez nos convençamos da sua verdade. Ou nos limitamos a criar um quadro institucional no qual o sistema de preços funcionará da forma mais eficiente possível, ou somos levados a perturbar a sua tarefa. Se for verdade que os preços são sinais que nos permitem adaptar as nossas actividades a procuras e acontecimentos desconhecidos, será evidentemente um disparate acreditar que podemos controlar os preços. Não se pode melhorar um sinal se não se souber o que ele sinaliza.

Não é incoerente admitir que o sistema de preços, mesmo na teoria de um mercado perfeitamente competitivo, não tem em conta todas as coisas que gostaríamos que fossem tidas em conta. Mas se não nos é possível melhorar o sistema através da interferência directa nos preços, podemos tentar encontrar novos métodos de fornecer informação ao mercado que não tenham sido anteriormente tidos em conta.

Há ainda muito espaço para progredir nesta direcção. Para além do que o mercado já faz por nós, há ainda uma ampla oportunidade de utilizar organizações deliberadas para "preencher" o que o mercado não consegue oferecer. Só tiramos o melhor partido do mercado se tentarmos melhorar o enquadramento em que este opera. Quanto às pessoas que não estão em posição de cuidar de si próprias, teremos de tomar providências exteriores ao sistema de mercado (através do governo e de outras organizações).

Socialismo: um erro intelectual

Esta linha de argumentação levanta problemas intelectuais e morais muito sérios. Em primeiro lugar, parece-me que as ambições do socialismo são mais o reflexo de erro intelectual do que de uma diferença de valores. O socialismo baseia-se numa incompreensão daquilo a que devemos a riqueza que os socialistas esperam redistribuir. Esta objecção levanta algumas outras questões que esbocei inicialmente numa palestra que dei em 1978 na London School of Economics.[2] O seu problema central era o conflito entre as nossas emoções inatas a respeito de leis que são herança de uma pequena sociedade primitiva, onde pequenos grupos de pessoas serviam semelhantes conhecidos com fins em comum, e as mudanças na moral que tiveram de ocorrer para tornar possível a divisão do trabalho a nível mundial.

Na verdade, esse pequeno desenvolvimento, que a Humanidade demorou mais de 3000 anos a colocar gradualmente em prática, envolveu em grande parte uma supressão deliberada de sentimentos e emoções muito fortes que todos nós sentimos no nosso íntimo e dos quais não nos conseguimos livrar por completo. Ilustrá-lo-ei brevemente com referência à ideia que ainda prevalece sobre a solidariedade.

Um acordo quanto a um objectivo comum no seio de um grupo de pessoas que se conhecem entre si é claramente uma ideia que não se pode aplicar a uma grande sociedade que inclui pessoas que não se conhecem umas às outras. A sociedade moderna e a economia moderna cresceram através do reconhecimento de que essa ideia, que foi fundamental para a vida num pequeno grupo, numa sociedade “cara-a-cara”, é simplesmente inaplicável a grandes grupos. A base essencial do desenvolvimento da civilização moderna é permitir que as pessoas prossigam os seus próprios fins com base nos seus próprios conhecimentos e não estejam vinculadas aos objectivos de outras pessoas.

A Miragem da Justiça Social

O mesmo dilema aplica-se ao desejo básico do socialismo de uma distribuição [de riqueza ou de rendimento] de acordo com princípios de justiça. Para que os preços sirvam de guia eficaz para o que as pessoas devem fazer, não se pode recompensar as pessoas pelo que são ou foram as suas boas intenções. Tem de se permitir que os preços sejam determinados de modo a que digam às pessoas onde podem dar a sua melhor contribuição para o resto da sociedade - e infelizmente a capacidade de fazer boas contribuições aos seus semelhantes não está distribuída de acordo com quaisquer princípios de justiça.

As pessoas encontram-se numa posição muito desigual face às exigências dos seus semelhantes e têm de escolher entre oportunidades muito diferentes. Portanto, para que lhes seja permitido adaptarem-se a uma estrutura que desconhecem (e cujos factores determinantes desconhecem), temos de permitir que os mecanismos espontâneos do mercado lhes digam o que devem fazer.

Foi um triste erro na história da ciência económica aquele que impediu os economistas, particularmente os economistas clássicos, de verem que a função essencial dos preços é dizer às pessoas o que deverão fazer no futuro e que os preços não se podem basear no que fizeram no passado. A nossa contribuição moderna é que os preços são sinais que informam as pessoas do que devem fazer para se ajustarem ao resto do sistema.

Estou agora profundamente convencido daquilo que apenas insinuei anteriormente: que o conflito entre os defensores de uma sociedade livre e os defensores do sistema socialista não é uma disputa moral, mas sim uma disputa intelectual. Nesse sentido, os socialistas foram levados, por uma circunstância muito peculiar, a reavivar certos instintos e sentimentos primitivos que, ao longo de centenas de anos, tinham sido praticamente reprimidos pela moral comercial ou mercantil, que em meados do século passado [séc. XIX] havia chegado a governar a economia mundial.

O declínio da moral comercial

Até há 130 ou 150 anos atrás, toda a gente naquela que é hoje a parte industrializada do mundo ocidental crescia familiarizada com as regras e necessidades da chamada moral comercial ou mercantil, pois todos trabalhavam em pequenas empresas onde se encontravam igualmente interessados e expostos à conduta uns dos outros. Quer enquanto mestres ou servos ou membros de família, todos aceitavam a necessidade inevitável de se adaptarem às alterações da procura, da oferta e dos preços no mercado. Mas algo começou a mudar em meados do século passado. Onde anteriormente talvez apenas a aristocracia e os seus empregados eram estranhos às regras do mercado, o crescimento de grandes organizações nos negócios, no comércio, nas finanças e, por fim, no governo, aumentou o número de pessoas que cresciam sem que lhes fosse ensinada a moral do mercado, que havia sido desenvolvida no decurso dos 2000 anos anteriores.

Provavelmente pela primeira vez desde a antiguidade clássica, uma parte cada vez maior da população do estado industrial moderno cresceu sem aprender na sua infância que era indispensável responder, tanto enquanto produtor como enquanto consumidor, a todas as coisas desagradáveis que o mercado em constante mudança requer. Este desenvolvimento coincidiu com a difusão de uma nova filosofia, que ensinava às pessoas que não deviam submeter-se a qualquer princípio moral que não pudesse ser racionalmente justificado.

Penso ser verdade que, com excepção de alguns homens como Adam Smith (e no seu caso apenas de forma limitada), ninguém antes de meados do século XIX poderia realmente ter respondido à pergunta: Porque é que haveríamos de obedecer a estes princípios morais que nunca foram racionalmente justificados? A recusa de um grande número de pessoas de aceitar os princípios morais que constituem a base do sistema capitalista foi apoiada por uma nova tendência intelectual que lhes ensinou que estes princípios morais não tinham qualquer justificação racional.

Ideais versus Sobrevivência

Esta dicotomia explica a crescente oposição ao sistema de mercado, que se tem vindo a acentuar muito para lá dos partidos estritamente socialistas do século passado. Ao longo da História, quase todos os passos no desenvolvimento da moral mercantil tiveram de enfrentar e contestar a oposição de filósofos morais e professores religiosos - uma história suficientemente conhecida nos seus contornos. Hoje, encontramo-nos perante uma situação extraordinária em que, apesar de vivemos num mundo com uma vasta e crescente população que só pode sobreviver graças à prevalência do sistema de mercado, a grande maioria das pessoas (não estou a exagerar) já não acredita nesse mercado.

Trata-se de uma questão crucial para a preservação futura da civilização e que deve ser enfrentada antes que os argumentos do socialismo nos levem de volta a uma moralidade primitiva. É preciso que suprimamos novamente os sentimentos inatos que se foram instalando em nós à medida que deixámos de aprender a rigorosa disciplina do mercado, antes que estes destruam a nossa capacidade de alimentar a população através do sistema de coordenação do mercado. Caso contrário, o colapso do capitalismo garantirá que uma grande parte da população mundial morrerá por não a conseguirmos alimentar. Este é um problema sério e que até hoje nunca teve de ser resolvido.

A população mundial – e até mesmo as principais mentes de qualquer país – jamais se deixará persuadir por meio de argumentos teóricos sobre a necessidade de acreditar num certo tipo de moralidade. Podemos no entanto demonstrar-lhe que, a menos que as pessoas estejam dispostas a submeter-se à disciplina em que consiste a moral comercial, a nossa capacidade de suportar qualquer crescimento adicional da população para lá do Ocidente relativamente próspero - ou mesmo de a manter nos seus números actuais - será destruída.

Eu não diria que o processo de selecção através do qual a moral do capitalismo evoluiu, produzindo aquilo que alguns manuais reconhecem como os seus "efeitos benéficos para a sociedade em geral", consiste somente em ajudar ao crescimento da população. Muitos dos povos deste mundo seriam provavelmente muito mais felizes se o crescimento da população não tivesse sido estimulado até ao ponto a que foi. No entanto, a população mundial atingiu uma dimensão em que só pode ser alimentada através da adesão a um sistema de mercado. As tentativas de substituir o mercado demonstram – sendo a Etiópia o caso mais chocante - a loucura de impor uma alternativa.

Tal como a prosperidade levou os povos mais avançados a restringirem voluntariamente o crescimento da sua população, também os povos que só muito lentamente começam a aprender esta urgente lição poderão vir a compreender que não é do seu interesse crescer ainda mais rapidamente. Neste momento crítico para o tipo de civilização que construímos, a contribuição mais importante que um economista pode dar é insistir que só podemos cumprir a nossa responsabilidade de sustentar a nossa população existente se continuarmos a confiar no sistema de mercado, que permitiu a sua presente dimensão.

 


[1] Ludwig von Mises, Socialism (New Haven: Yale University Press, 1951; republicado pela New York University Press, 1985). Disponível na biblioteca online do Instituto Mais Liberdade.

[2] "The Three Sources of Human Values," publicado como epílogo a Law, Legislation and Liberty, Vol. 3: The Political Order of a Free People (London: Routledge and Kegan Paul, 1979), pp. 153–76.

Friedrich August von Hayek (1899-1992), economista e filósofo austro-britânico, recebeu o Prémio Nobel da Economia em 1974.

Este artigo, um dos últimos escritos pelo autor, foi originalmente publicado na obra Unfinished Agenda: Essays on the Political Economy of Government Policy in Honour of Arthur Seldon (1986), sob os auspícios do Institute for Economic Affairs, hoje em dia parceiro do Instituto Mais Liberdade.

Tradução: Pedro Almeida Jorge

Narração: Rodrigo Moita de Deus (Edição: Mariana Vargas)

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