Autores Portugueses, Excertos e Ensaios, Liberalismo e Capitalismo, Economia, Filosofia, Ética e Moral
O liberalismo económico consiste na aplicação do conhecimento científico da realidade económica. Entendida como ciência – e foi o liberalismo moderno que assim a entendeu – a economia é, para a realidade a que se refere, o que a física é para a natureza ou o que a biologia é para a vida. Assim como o científico da natureza, a física, consiste no conhecimento dos princípios, formas e leis que a natureza contém, assim a economia consiste no conhecimento dos princípios, formas e leis que constituem o sistema de carências, e sua satisfação, de que é feita uma parte da existência do homem no mundo. É deste modo que, por exemplo, ao princípio da inércia e do movimento, na física, corresponde o principio da oferta e da procura na economia; tentar negar ou abolir o principio da oferta e da procura equivale a tentar negar ou abolir o principio da inércia. A partir dos princípios a ciência deduz ou descobre as leis e as formas da realidade a cujo conhecimento se dedica: os movimentos dos corpos ou as formas do universo, na física; as leis da concorrência e as formas, ou categorias, económicas, na economia.
O conjunto, ou sistema, dos princípios, leis e formas que compõem a realidade (cada domínio da realidade ou a realidade no seu todo) constitui aquilo que há de racional no real, constitui a razão do real. Todo o conhecimento científico, todo o saber, supõe portanto aquilo que um grande filósofo moderno exprimiu numa frase célebre: todo o real é racional. De tal modo o supõe que toda a ciência é somente a ciência, ou o saber, da razão que há no real.
Na generalidade – isto é, na ignorância indouta, hoje mais atrevida e poderosa do que nunca – entende-se por «razão» um exclusivo do homem, uma faculdade que só existe no homem e só o homem exerce, raciocinando. Ao dar-se à razão tal significado, ficam a caber nela todas as veleidades, arbitrariedades e absurdos que, melhor ou pior alinhados, brotem de qualquer cabeleira raciocinante, inteiramente desligada do real e do racional. A adolescência e a juventude, idade na qual a existência própria ainda está fechada ao mundo, idade do corpo sempre disposta a exibir «razões» quando não esgota as energias a exibir pernas e braços, é especialmente tentada a esse raciocinantismo. E todos podemos verificar que a economia, bem como a política, tem sido nos últimos tempos o domínio mais favorável a esse exibicionismo de «razões» que aí se vê, se não triunfante, ao menos gloriosamente imune e impune.
O liberalismo económico suscita, pois, a hostilidade de todos esses que, incapazes de apreenderem ou ascenderem à racionalidade do real, incapazes de entenderem o que seja a razão, vão assim exercendo o instrumento das suas veleidades ao sabor dos desacordos entre a realidade do mundo e das coisas e as inclinações, interesses, frustrações e desejos da sua íntima, e necessariamente paupérrima, subjectividade. Acabam quase sempre por reduzir, isso que julgam ser a razão, a uma espécie de tabuada à qual julgam poder sujeitar toda a infinita variedade do real. E sendo seu predilecto e impune domínio a economia, é a economia que tem sido a maior vítima da tacanhez dessa gente. Aí lhes aparece a tabuada como a própria imagem da justiça à qual dão, por predicados, operações aritméticas: justiça distributiva, justiça igual para todos, justa divisão da riqueza (ou da pobreza), cada homem parcela de um todo, todos unidos (ou somados), etc. A infinita variedade do mundo, negam-na e ignoram-na; o racional, que dá sentido a essa infinita variedade e a harmoniza como a gravitação equilibra os astros, é-lhes insuportável; e a ciência, que é a busca e descoberta desse racional, esvai-se e desaparece. Vem ao de cimo, como a podridão nas águas, a vacuidade das mentes esgotadas na interminável operação de alinhar algarismos como se se tratasse do exercício da razão. A vacuidade das mentes precede a imediata vacuidade das vidas. E para que não haja alguém que possa não se conformar com esta vacuidade universal, apelam para o despotismo mais abominável.
É contra esta fantasmagoria absurda, rudimentar e grotesca que se ergue o liberalismo moderno, herdeiro da sabedoria do real que nunca deixa de habitar entre os homens. Reconhece ele, primacialmente, a singularidade irredutível de cada ser, de cada um de nós; reconhece portanto a infinita variedade do mundo e das coisas, e a sua substância é a ciência do racional que, mediante a sucessão das categorias, transforma a carência em liberdade; que, mediante a concorrência, é condição e origem do progresso e da riqueza; e que, mediante a lei da oferta e da procura, solidariza as actividades, por mais dispersas ou isoladas, de todos os indivíduos ou de todos os trabalhadores.
Ensaio do filósofo português Orlando Vitorino (1923-2003) na revista Escola Formal, n.º 3, Agosto/Setembro de 1977.
Colaboração na transcrição: Sérgio Inácio.
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