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O Melhor Teste de um Economista

Friedrich A. Hayek

Excertos e Ensaios, Escola Austríaca, Economia

Português

A célebre proposição de John Stuart Mill de que "procura por mercadorias não é procura por mão-de-obra"[1] é, até aos dias de hoje, uma das teorias mais debatidas da ciência económica. Ela foi a quarta[2] das proposições fundamentais de Mill a respeito do capital e está intimamente ligada à primeira destas, que afirmava que "a indústria está limitada pelo capital". A ideia subjacente a estas duas afirmações remonta pelo menos até Adam Smith, que a expressou dizendo que "a indústria geral da sociedade nunca pode exceder o que o capital da sociedade possa empregar".[3] Nos escritos de Bentham, a fórmula de que "a indústria está limitada pelo capital" tornou-se praticamente o seu princípio orientador, e era obviamente familiar a todos os membros da escola clássica da economia. Quando, por fim, J. S. Mill formulou explicitamente a sua quarta proposição, que constitui mais particularmente o tema deste apêndice, a mesma era pouco mais do que um corolário da primeira, a qual ele já tinha adotado dos seus antecessores, e estava, como é óbvio, intimamente relacionada com a teoria do fundo salarial [wage fund]. Porém, tal como esta última, foi quase imediatamente contestada[4], e tem sido desde então o alvo de ataques e até mesmo de ridicularização por parte de uma longa lista de economistas de relevo, desde Jevons[5] a E. Cannan[6] e J. M. Keynes[7]. Contudo, também teve sempre os seus defensores, incluindo Marshall[8] e, particularmente, Wicksell[9], sendo que Leslie Stephen até a descreveu, como nos recordou recentemente o Sr. Keynes, como “uma doutrina tão raramente compreendida, que a sua completa compreensão representa, talvez, o melhor teste de um economista"[10].

Que em tempos mais modernos a doutrina tenha quase desaparecido deve-se principalmente ao facto de a teoria subjetiva do valor ter sido erroneamente considerada como tendo fornecido uma refutação eficaz. Esta visão moderna do valor ensinou, como é óbvio - ninguém pode seriamente questionar tal proposição em termos gerais - que o valor dos fatores de produção se baseia na utilidade dos seus produtos e que, neste sentido, se pode dizer que é "derivado" do valor dos seus produtos. Na medida em que esta ideia foi usada para explicar a razão pela qual o valor de determinados fatores de produção varia relativamente ao de outros, ela forneceu de facto uma peça extremamente importante para a solução de problemas que haviam anteriormente intrigado muitas gerações de economistas. E em geral pode dizer-se que, no que diz respeito à teoria da kapitallose Wirtschaft [economia sem capital], o princípio é válido sem restrições. Pensou-se, no entanto, que a sua aplicação a uma economia que utiliza extensivamente equipamentos de capital não só não diminuia o significado deste princípio como até o aumentava. O simples "princípio da procura derivada" serviu então de base ao chamado "princípio da aceleração da procura derivada", baseado na ideia de que, num sistema que utiliza métodos de produção altamente capitalistas, qualquer aumento da procura final daria origem, não só a um igual aumento da procura pelos fatores, mas a um aumento muito maior destes últimos, uma vez que, para satisfazer o aumento da procura final, seria necessário construir, num curto espaço de tempo, todo o equipamento de capital adicional necessário para produzir os bens adicionais.

Na medida em que este argumento é aplicado à procura de um determinado produto e ao seu efeito na procura dos fatores a partir dos quais esse mesmo produto é produzido, há ainda pouco a objetar. O significado e a validade do argumento tornam-se, no entanto, muito mais questionáveis assim que o mesmo é aplicado, tal como imediatamente o foi na teoria dos ciclos económicos, à relação entre a procura de bens de consumo em geral e a procura de fatores de produção em geral. Na sua forma original, baseada na moderna análise do valor em termos de utilidade, o argumento é claramente incapaz de tomar essa amplitude. De facto, é difícil descortinar que significado poderíamos atribuir à afirmação de que um aumento do valor dos bens de consumo em geral levaria a um aumento semelhante do valor dos fatores de produção em geral, uma vez que isto implicaria que o valor agregado de todos os bens em conjunto teria aumentado - uma afirmação que em termos da moderna análise da utilidade não teria claramente qualquer significado.

Antes de prosseguirmos, contudo, será aconselhável voltar a descrever a proposição da Mill de tal forma que não deixe dúvidas quanto ao seu significado exato. Em primeiro lugar, é provavelmente claro que, com base no uso a que a doutrina se tem geralmente prestado, temos o direito de, como atrás fizemos, substituir os bens de consumo por "mercadorias" e que a "procura de mercadorias" terá de ser descrita, não como uma simples quantidade, mas como uma escala ou curva de procura que descreva as quantidades de bens de consumo que serão comprados a diferentes preços. Em segundo lugar, o teste para saber se “a procura por bens de consumo" é "procura por mão-de-obra” (ou, digamos, procura de inputs puros) resume-se claramente a saber se um aumento da curva da procura de bens de consumo aumenta a curva da procura por inputs puros (e se uma diminuição da primeira diminui a segunda), ou se uma variação na procura por bens de consumo não causa na procura por inputs puros qualquer variação na mesma direção ou se talvez até a causa numa direção oposta.

Resta decidir em que termos é que vamos medir os dois tipos de procura. E verificar-se-á de seguida que esta decisão é de facto crucial para a solução do nosso problema. Se decidirmos medir a procura em termos de dinheiro, o problema será claramente indeterminado, a menos que façamos outras suposições a respeito do efeito de uma variação na procura final sobre as expectativas de preços futuros e sobre a oferta de dinheiro. É claramente possível conceber circunstâncias em que um aumento da procura final provocará um aumento da procura de mão-de-obra (em termos de dinheiro) proporcionalmente muito superior. Este é de facto o caso considerado normal pelo "princípio da aceleração da procura derivada". Se, por outro lado, decidirmos medir a procura em termos reais, como claramente devemos fazer desde que tratemos a proposição como sendo puramente teórica, rapidamente se verá que a proposição oposta se torna quase pura tautologia. Um aumento da procura por bens de consumo em termos reais só pode significar um aumento em termos de outras coisas que não os bens de consumo; ou mais bens de capital ou mais inputs puros (ou ambos) devem ser oferecidos em troca de bens de consumo, e o seu preço deve consequentemente aumentar em termos destas outras coisas; e, do mesmo modo, uma variação na procura por mão-de-obra (isto é, inputs puros) em termos reais deve significar uma variação na procura ou em termos de bens de consumo ou em termos de bens de capital ou de ambos, e o preço da mão-de-obra expresso nestes termos aumentará. Mas visto que provavelmente já ficou claro, sem mais explicações, que, se a procura por bens de capital em termos de bens de consumo diminuir, a procura por mão-de-obra em termos de bens de consumo também deverá diminuir (e vice versa), e que, se a procura por mão-de-obra em termos de bens de capital aumentar (ou diminuir), também deverá fazê-lo em termos de bens de consumo, podemos deixar de lado, para o presente propósito, os bens de capital e concluir que um aumento da procura real por bens de consumo só pode significar uma queda no preço da mão-de-obra em termos de bens de consumo, ou que, uma vez que um aumento na procura por bens de consumo em termos reais tem de se expressar em termos de mão-de-obra, tal significa apenas uma diminuição na procura por mão-de-obra em termos de bens de consumo.

Vemos, portanto, que se tratarmos o problema em termos reais e nas suas formas mais simples, um aumento da procura por bens de consumo não só não aumenta como até diminui a procura por mão-de-obra. E obtemos naturalmente o mesmo resultado se abordarmos o problema mais especificamente do ponto de vista da teoria do capital. Deste ponto de vista, a procura real por mão-de-obra dependerá da sua produtividade marginal, que por sua vez aumentará e diminuirá com a “oferta de capital”, ou seja, com a parte dos recursos totais disponíveis que as pessoas em geral não querem consumir no presente, mas que dedicam à produção para o futuro. Qualquer aumento da parcela dos recursos disponíveis que as pessoas dedicam ao consumo corrente, qualquer aumento da procura por bens de consumo significa, portanto, uma diminuição da oferta de capital e, consequentemente, uma diminuição da produtividade do trabalho e da quantidade de mão-de-obra que será procurada a para cada salário real.

A doutrina mantém ainda a sua validade, no que diz respeito ao efeito sobre a procura real por mão-de-obra, se nos limitarmos a introduzir a moeda no modelo mas assumirmos uma posição de equilíbrio em que a oferta de todos os fatores seja igual à procura (ou seja, em que não haja recursos desempregados). O mecanismo pelo qual, num tal sistema, um aumento da procura final diminuirá a procura por mão-de-obra é um pouco mais complicado, ainda que fundamentalmente o mesmo. A demonstração fica facilitada se assumirmos que o aumento da procura por bens de consumo ocorre num sistema que, anteriormente, se encontrava em equilíbrio estacionário - embora o argumento também se aplique quando esta condição não é satisfeita. Partiremos do princípio de que o aumento inicial da procura é provocado por um aumento líquido da despesa monetária total (envolvendo ou a diminuição de entesouramento ou o aumento da quantidade de dinheiro), uma vez que, caso contrário, o aumento da despesa em bens de consumo significaria simplesmente uma diminuição simultânea dos gastos com fatores de produção (inputs mistos). Um tal aumento da procura monetária por bens de consumo provocará, em primeira instância, um aumento dos preços dos bens de consumo, que, sem dúvida, se estenderá, em certa medida, à procura de fatores de produção puros. Mas, por razões óbvias, discutidas em pormenor no Capítulo XXVII, o preço monetário dos inputs puros e da mão-de-obra em particular nunca poderá (nas condições de pleno emprego assumidas) aumentar na proporção total do aumento da procura final, uma vez que certa parte da produção disponível terá de ser utilizada para satisfazer a nova procura adicional, e a remuneração real dos inputs puros terá de ser reduzida pelo montante desta nova procura, ou seja, os salários reais diminuirão. Foi demonstrado no capítulo referido como é que, por sua vez, esta queda dos "salários reais" levará a uma reorganização tal da produção que a produtividade marginal do trabalho (e dos inputs puros em geral) se reduzirá de forma generalizada (ao ser utilizado em conjunto com proporcionalmente menos capital), de modo que, com estes salários reais mais baixos, um novo equilíbrio será alcançado. Este salário real mais baixo será agora o único salário com o qual, face à redução da oferta de capital (ou, o que equivale à mesma coisa, à maior urgência na procura por bens de consumo), toda a oferta de mão-de-obra encontrará emprego. Se, nestas circunstâncias, os trabalhadores insistirem em salários reais inalterados e conseguirem aumentar o seu salário nominal em conformidade, o resultado só poderá ser que menos mão-de-obra encontrará emprego, em comparação com anteriormente.

Como é óbvio, a situação será diferente se, ao nível pré-existente de salários e preços, a oferta excedesse a procura, e um aumento da procura final tornasse possível aumentar imediata e proporcionalmente a produção através do emprego de recursos anteriormente desempregados de todos os tipos necessários. Neste caso, e apenas neste caso, um aumento da procura final levará a um aumento proporcional do emprego; e este efeito será obviamente limitado ao período durante o qual esses fatores desempregados se encontrem disponíveis. Haverá evidentemente casos intermédios em que, embora não estejam disponíveis recursos desempregados de todos os tipos, haverá reservas suficientes de alguns dos tipos mais importantes de inputs para que se torne possível o aumento da produção, não proporcionalmente ao aumento da procura final, mas ainda assim em certa medida. Neste caso, uma redução muito ligeira dos salários reais pode ser acompanhada de um aumento muito considerável do emprego. Em ambos os casos, o "princípio da procura derivada" aplicar-se-á aproximadamente se os salários nominais puderem assumir-se determinados e constantes, pois o efeito de um aumento da procura final não se dissipará aqui num aumento dos preços da produção e - em menor medida - dos fatores de produção, mas pode ocasionar um aumento do emprego a preços mais ou menos inalterados.

Que, em condições de subemprego, o princípio geral não se verifica diretamente estava, como é óbvio, bastante claro para economistas "ortodoxos", e para J. S. Mill em particular. Na sua exposição, a afirmação "a indústria encontra-se limitada pelo capital", na qual, como vimos, se baseia a proposição sob discussão, é imediatamente seguida pela afirmação adicional de que  ela "nem sempre chega a esse limite".[11] E poucos economistas competentes podem alguma vez ter duvidado que, em condições de desequilíbrio onde existam reservas de recursos não utilizados de todos os tipos, o funcionamento deste princípio se encontra temporariamente suspenso, embora nem sempre o tenham dito.[12] Contudo, embora esta negligência em afirmar uma condição importante seja lamentável e possa induzir algumas pessoas em erro, ela envolve certamente menos confusão intelectual do que a atual moda de negar frontalmente a validade da doutrina básica, que é, no fim de contas, uma parte essencial e necessária da teoria do equilíbrio (ou da teoria geral dos preços) que todo o economista usa quando tenta explicar alguma coisa. O resultado desta moda é que os economistas estão cada vez menos conscientes das condições especiais em que se baseiam os seus argumentos, e que muitos parecem agora totalmente incapazes de ver o que acontecerá quando estas condições deixarem de existir, o que mais cedo ou mais tarde irá inevitavelmente acontecer. Mais do que nunca, parece-me ser verdade que a completa compreensão da doutrina de que a "procura por mercadorias não é procura por mão-de-obra" - e das suas limitações - representa "o melhor teste de um economista".


[1]  J. S. Mill, Principles of Political Economy (ed. Ashley), Book I, chap. v/9, p. 79.

[2]  O "segundo teorema fundamental sobre o capital" é que o capital é o resultado da poupança, e o terceiro, na sua formulação mais completa, é que "o capital é mantido em existência de ano em ano não por preservação, mas por reprodução perpétua: cada parte dele é utilizada e destruída em geral muito pouco tempo depois de ser produzido, mas aqueles que o consomem são entretanto empregados na produção de mais" (ibid. p. 74). Notar-se-á que estamos dispostos a defender as quatro proposições e a opor-nos apenas ao que nos parece a conclusão errónea retirada do terceiro que, quando as pessoas "transformam os seus rendimentos em capital, não aniquilam assim o seu poder de consumo, mas transferem-no de si mesmas para os trabalhadores a quem dão emprego". (Ver acima, p. 273).

[3]  Wealth of Nations (ed. Cannan), Book IV, chap. ii, vol. i, p. 419.

[4]  A crítica adversa mais completa das quatro proposições conhecida pelo presente autor encontra-se em A. Musgrave, Studies in Political Economy (London, 1875), pp. 55.102, e S. Newcomb, Principles of Political Economy, New York, 1886.

[5]  Ver, em particular, os Principles of Economics de Jevons (1905), pp. 120-133.

[6]  Theories of Production and Distribution, p. 381.

[7]  The General Theory of Employment, Interest and Money, p. 359.

[8]  Principles of Economics, p. 828.

[9]  K. Wicksell, Wert, Kapital und Rente (1893), p. 67: "Es bestatigt sich hier der bekannte Satz von J. S. Mill (dem er freilich selbst eine ganz ungehiirige Ausdehnung gab), dass die Nachfrage nach Gutem nicht mit Nachfrage nach Arbeit identisch ist "; e Lectures, vol. i, p. 191: "Em termos gerais, mesmo que não em detalhe, temos de reconhecer a verdade do princípio conhecido de Mill de que a procura por mercadorias não é o mesmo que procura por mão-de-obra - a menos que isso resulte na acumulação de capital".

[10]  History of English Thought in the Eighteenth Century, p. 297.

[11]  Principles, Book I, chap. v/2 and table of contents (ed. Ashley), pp. 65 and xxxiv. Mill refere-se principalmente ao caso em que não há tanta mão-de-obra disponível quanto a que poderia ser empregue com o capital existente, mas embora este caso pareça muito diferente daqueles com que estamos agora preocupados, não é tão diferente assim do caso de uma escassez artificial causada pela mão-de-obra se recusar a trabalhar por menos do que um determinado salário.

[12]  Como o fez claramente o Professor L. v. Mises, para mencionar apenas o principal representante de uma escola que é frequentemente acusada de ignorar tal situação. Vide o seu Geldwertstabilisierung und Konjunkturpolitik (1928) p.49.

Originalmente publicado como Apêndice III à obra The Pure Theory of Capital (1941), sob o título '"Demand for commodities is not demand for labour" versus the principle of "derived demand"'.

Tradução: André Costa e Pedro Almeida Jorge

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