Economia, História, Liberalismo e Capitalismo, Escola Austríaca, Autores Portugueses
Observação prévia: Embora não tenha sido movido por um pensamento categorial, o conhecimento adquirido do Mercado é de tal modo exaustivo que equivale a uma determinação categórica a que apenas falta ser pensada como tal e, em consequência, articular-se às outras categorias. Limitamo-nos aqui a sintetizar aquele conhecimento, obra exclusiva do período clássico da ciência económica.
A categoria da propriedade articula-se com a categoria do mercado mediante a transformação dos produtos em mercadorias. Os produtos são ou para ser usados ou para ser trocados. Usados, fazem parte da fruição da propriedade. Trocados, transitam para o mercado, universalizando a propriedade, isto é, fazendo da propriedade um bem de todos. O processo desta universalização é, como todos os processos económicos, muito simples: a propriedade produz, por exemplo, uma certa quantidade de trigo; parte desse trigo fica para fruição da propriedade ou, se se preferir dizer assim, para uso do dono da terra; a outra parte é entregue ao mercado e fica à disposição de toda a população, sendo tanto maior a prosperidade geral quanto maior a abundância de produtos da propriedade.
É condição do mercado que os produtos, agora mercadorias, sejam objecto da posse exclusiva de alguém. Primeiro, porque o que se transacciona no mercado é a posse das coisas, não as coisas; depois, porque sem a posse exclusiva diminui a abundância e variedade das mercadorias. Toda a intervenção na transacção – como a de certos impostos, regulamentação da quantidade e qualidade dos produtos, monopolização – que tenha por consequência limitar ou condicionar a posse das mercadorias, seja por quem oferta seja por quem procura, só compromete, complica e diminui a eficácia do mercado, a disposição por toda a gente dos produtos da propriedade, a prosperidade geral.
A categoria do mercado contém quatro princípios.
O primeiro é aquele que os teorizadores clássicos designaram por princípio da oferta e da procura. Determina ele que só são trocadas as coisas de que uns têm carência, e portanto as vão procurar, e outros têm abundância, e portanto as vão ofertar. As coisas de que não há carência não têm mercado, não são mercadorias, e é evidente que o mesmo acontece às coisas que não são ofertadas. É perfeito o mercado em que a oferta e a procura se equivalem, em que as coisas ofertadas são as coisas procuradas. Quando há mercado perfeito, há perfeito equilíbrio da actividade económica e a sociedade onde isso acontece vive na prosperidade, na plena satisfação das carências e desejos.
O segundo princípio do mercado é o da relação universal das mercadorias. Ao ofertar um cesto de laranjas, o possuidor logo verifica que o seu preço se determina pela relação com cada cesto de todas as laranjas que há no mercado. Como as suas laranjas são produto da sua propriedade, por elas a sua propriedade se encontra em efectiva e, para o futuro, em potencial relação com todas as propriedades que produzem laranjas. Como, depois, o preço do seu cesto de laranjas é também determinado pelas mercadorias de outros géneros com as quais se troca, a relação não se estabelece apenas entre os produtores de laranjas mas entre os produtores de todos os géneros de mercadorias.
O terceiro princípio é o princípio da informação. Consiste ele em fornecer ao mercado as informações de quais as espécies de carências e desejos que, em cada momento, as populações têm e de quais os produtos que as hão-de satisfazer e terão poder de troca no mercado. Por um lado, tais informações resultam do primeiro princípio, o da oferta e procura: consoante a mercadoria tenha uma procura igual, superior ou inferior à oferta, assim fica dada a informação de que se deve manter, aumentar ou diminuir a respectiva produção. Por outro lado, a eficácia das informações provém do segundo princípio, pois elas são imediatamente recebidas e circuladas graças à relação universal que o mercado estabelece entre os produtos.
É por este princípio de informação que o mercado se tem visto reconhecer, mais manifestamente do que as outras categorias, como imprescindível e insubstituível. Têm sido constantes, da parte dos intervencionistas, e frequentes, da parte de grandes empresas industriais, as tentativas para abolir o mercado, substituindo-o, os primeiros, pela planificação centralizada, as segundas por um sistema de encomendas prévias. A abolição do mercado só pode, porém, conduzir ao caos e à destruição da economia, pois ela deixa de dispor das informações sem as quais não há maneira de determinar o que se há-de produzir.[1]
O recurso a uma planificação centralizada da economia, como os intervencionistas preconizam, que atribua às populações as carências que elas devem ter e nesse sentido organize as capacidades de produção, só pode servir para acrescentar, ao caos da economia, a servidão dos homens.[2]
A substituição, já muitas vezes defendida por monopólios industriais, das informações do mercado por um sistema de encomendas, não passa de uma interminável complicação da simplicidade, digamos natural e espontânea, do mercado, degradando-o, subvertendo-o e aumentando os «custos de informação» como acontece quando, através da publicidade, se faz o esforço para criar uma procura de produtos antes de serem eles ofertados. As tentativas para abolir ou substituir o mercado sempre acabam por comprovar como ele constitui uma categoria absolutamente indispensável.
O quarto princípio do mercado é o preço.
Reside o preço, não na medida do valor das coisas, mas na proporção em que elas se trocam entre si. Na troca directa, quando uma coisa se troca por outra, um cesto de laranjas por um cesto de pêssegos, não há preço nem há mercado. O preço só aparece quando a proporção das trocas é uma proporção universal, quando abrange a totalidade das mercadorias.
Trata-se de uma proporção variável consoante as carências e respectivas satisfações se modificam e alteram com o tempo, com os lugares e com outras inumeráveis condições da existência. Trata-se de uma proporção que não depende dos custos de produção, da renda das terras, do trabalho despendido, das proporções anteriormente observadas, enfim, dos valores atribuídos, a partir das tais e outras determinações, aos produtos e coisas em geral. Mas também se trata de uma proporção em que não há nada de desordenado, contingente e sem sentido, nada de tão arbitrário e abstracto como aquelas planificações da economia em que se compraz a prepotência dos intervencionistas. Dir-se-á que, como a natureza, o mercado nada faz em vão. Um sentido, um sinal põe sempre no que se afigura um acaso e uma contingência. Se, por exemplo, o preço de um produto fica aquém do custo da sua produção, não é o preço que está errado mas é o produto que não corresponde ao que os homens desejam, outro se devendo produzir.
A proporção a todo o momento variável exprime-se no preço. O preço faz, sem dúvida, o desespero de todos aqueles, entre os quais se contam numerosos economistas e até teorizadores da economia, que só entendem o que é quantificável, mensurável, estabelecido de uma vez por todas. Mas a vida, o deslumbrante fenómeno da existência dos homens neste deslumbrante mundo, nada tem de quantificável, mensurável e definitivo. O que hoje sobeja, amanhã falta; o que hoje se ama, amanhã abomina-se; o que hoje enfada, amanhã deseja-se. «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades». Tudo é ocioso e vário. A proporção, não a medida, é que acompanha a real relação entre as coisas e as resguarda na arquitectura, na harmonia e na liberdade que entretecem o que há de singular, irredutível e diferente em tudo quanto é. A medida, pelo contrário, tudo reduz à sua unidade, tudo uniformiza e quantifica.
Havendo preço, há dinheiro. O dinheiro é a expressão do preço como as palavras são a expressão do pensamento. A Adam Smith, no limiar da ciência económica, foi dada a rara intuição de situar a palavra na origem da economia quando, ao dizer que a actividade económica deriva da troca e que a troca é uma faculdade da natureza humana, observa muito discretamente: «como parece mais provável, tal faculdade é uma consequência necessária do raciocínio e da palavra».[3]
É pelo preço que a categoria do mercado se articula com a categoria do dinheiro.
[1] Foi desta inevitável consequência da abolição do mercado que L. von Mises deduziu o seu argumento demonstrando a inviabilidade económica do socialismo. Sem as informações que só o mercado pode fornecer, a produção deixaria de ter qualquer orientação eficaz e real, os produtos obtidos não teriam procura e a actividade dos homens seria vã. Uma tal situação não se poderia prolongar por muito tempo sem reduzir as sociedades ao caos e à inanição. O facto de, nos países onde o socialismo se instalou integralmente, isto é, nos países comunistas, a ordem económica ainda se estar conservando embora à custa de uma pauperização crescente das populações, deve-se ao recurso às indicações fornecidas pelo mercado dos países que não estão socializados.
Para a mais completa compreensão deste argumento, convém ter em conta que os factores económicos decisivos não são, como pretende o intervencionismo, as grandes unidades macroeconómicas (o Estado, os grandes monopólios nacionalizados, etc., de que se ocupam as «contabilidades nacionais»), mas sim os agentes microeconómicos, sobretudo os indivíduos e as famílias. Os desejos destes agentes e a respectiva procura de mercadorias são determinados por razões individuais e subjectivas e, por essa via, a economia torna-se dependente dos valores morais, estéticos e intelectuais, constitui mais um fenómeno de civilização do que um fenómeno de natureza.
[2]No livro O Caminho para a Servidão – trad. portuguesa de Maria Ivone Moura, ed. Teoremas, Lisboa, 1976 – Frederico Hayek descreve como a planificação centralizada da economia de um povo conduz, inevitavelmente, à servidão dos indivíduos ou como a margem de servidão aumenta na medida em que aumenta a planificação centralizada pelo Estado. Na verdade, se é o Estado – ou os planificadores – que decidem quais os produtos a obter, será ele também que determina quais as actividades em que se há-de empregar o trabalho dos indivíduos e, depois, condicionar o ensino das sucessivas gerações à preparação para esse trabalho. Todos ficam, então, impedidos de escolher o tipo de emprego em que hão-de trabalhar, de escolher o ensino que os há-de habilitar. A autonomia individual desaparece.
Orlando Vitorino (1923 - 2003) foi um membro do chamado Grupo da Filosofia Portuguesa e um defensor do liberalismo político e económico, tendo promovido a tradução da obra O Caminho para a Servidão, de Friedrich Hayek, e organizado a vinda do economista austríaco a três conferências no nosso país em 1977.
O presente texto corresponde ao capítulo 3 da segunda parte da sua obra Exaltação da Filosofia Derrotada (Guimarães Editores, 1983).
Transcrição: Francisco Patrone.
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