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O Mistério do Capital

Hernando de Soto

Liberalismo e Capitalismo, Economia, Excertos e Ensaios, Filosofia Política, Direito e Instituições, Empreendedorismo, Concorrência e Regulação

Português

 

 

Se descermos a maioria das ruas do Médio Oriente, da antiga União Soviética ou da América Latina, veremos coisas muito diversas: casas a serem utilizadas como abrigo; courelas a serem amanhadas e semeadas e as colheitas a serem feitas; mercadorias a serem compradas e vendidas. Os bens, nos países em desenvolvimento e nos países ex-comunistas, servem em primeira instância estes propósitos físicos imediatos. No entanto, no Ocidente, os mesmos bens têm igualmente uma vida paralela, fora do mundo físico, enquanto capital. Podem ser utilizados para pôr em marcha mais produção, ao serem dados como garantia a terceiros numa hipoteca, por exemplo, ou para proporcionarem o acesso a outras formas de crédito ou serviços públicos.

Porque é que os imóveis e os terrenos não conseguem em todo o mundo assumir esta vida paralela? Porque é que os enormes recursos dos países em desenvolvimento e dos países ex-comunistas – que eu e os meus colegas no Institute for Liberty and Democracy (em Lima, no Peru) estimamos ascenderem a 9,3 mil milhões de dólares de capital inerte – não conseguem produzir valor para além do seu estado “natural”? A minha resposta é: o capital inerte existe porque nos esquecemos (ou talvez porque nunca tenhamos compreendido) que tornar um activo físico em capital – por exemplo, usando a nossa casa para pedirmos emprestado dinheiro para financiar uma empresa – implica um processo muito complexo. É um processo similar àquele que Albert Einstein nos ensinou, quando disse que um mero tijolo pode ser utilizado para libertar uma enorme quantidade de energia por meio de uma explosão atómica. Por analogia, o capital é o resultado da descoberta e da libertação da energia potencial de milhares de milhões de tijolos que os pobres acumularam nos seus imóveis.

Pistas do passado

Para desvendar o mistério do capital, temos de retroceder ao sentido seminal da palavra. Em latim medieval, “capital” parece ter significado cabeça de gado, o qual sempre representou uma importante fonte de riqueza para lá da carne, leite, couro, lã ou combustível que podia proporcionar. O gado também tem o útil atributo de se reproduzir. Portanto, o termo “capital” começa a desempenhar em simultâneo duas tarefas, significando a dimensão física dos activos (gado) e também o seu potencial para gerar valor acrescentado. Desde as fazendas e herdades, foi portanto um pequeno passo até às secretárias dos inventores da economia, que em geral definiram “capital” como aquela parte dos activos um país que origina excedentes de produção e aumentos de produtividade.

Grandes economistas clássicos como Adam Smith e, mais tarde, Karl Marx acreditavam que o capital era o motor que fazia mover a economia de mercado. Na Riqueza das Nações, Smith salientou um ponto que é o cerne do mistério que estamos a tentar resolver: para que os bens acumulados se tornem capital activo e promovam uma produção adicional, devem ser fixados e consubstanciados num objecto «que dura, pelo menos, durante algum tempo após a conclusão do trabalho. É como se se armazenasse uma certa quantidade de trabalho para ser utilizada, se necessário, em qualquer outra ocasião». O que retiro de Smith é que o capital não é o stock de bens acumulados mas sim o potencial que eles têm para auxiliar nova produção. Este potencial é, obviamente, algo abstracto. Terá de ser processado e fixado numa forma tangível antes de o podermos libertar – à semelhança da energia nuclear potencial do tijolo de Einstein.

Este significado essencial do capital perdeu-se ao longo da história. Hoje em dia, capital confunde-se com dinheiro, que é só uma das múltiplas formas em que ele se consegue mover. É sempre mais fácil relembrar um conceito difícil nas suas manifestações palpáveis do que na sua essência. A mente trabalha mais facilmente com “dinheiro” do que com “capital”. Mas é um erro assumir que é o dinheiro o que, em última instância, consubstancia o capital. O dinheiro facilita as transações, permitindo-nos comprar e vender coisas, mas não é em si mesmo o progenitor de um acréscimo de produção.

A energia potencial dos activos

O que é que estabelece o potencial de um bem de tal forma que este possa originar produção adicional? O que é que destaca o valor de uma simples casa e o estabelece de tal forma que lhe permite transformar-se em capital?

Podemos começar a encontrar uma resposta usando a nossa analogia energética. Consideremos um lago numa montanha. Podemos imaginar esse lago no seu contexto físico imediato e ver nele alguns usos primários, como sejam a canoagem e a pesca. Mas quando pensamos nesse mesmo lago nos termos em que um engenheiro o faria, centrando-se na sua capacidade para gerar energia, por meio de uma central hidroeléctrica, ou seja, como um valor adicional que vai para além do estado natural do lago enquanto massa de água, vemos de imediato o potencial espoletado pela sua localização em altitude. O desafio para o engenheiro é descobrir como pode ser criado um processo que lhe permita converter e “fixar” este potencial sob uma forma que possa ser usada para realizar trabalho adicional.

O capital, tal como a energia, é também ele um valor adormecido. Despertá-lo requer que vejamos nos nossos activos algo mais do que eles são – que vejamos o que eles poderiam ser. É necessário um processo que “fixe” o potencial económico dos activos de forma a que eles possam originar produção adicional.

No entanto, contrariamente ao processo que converte a energia potencial existente na água em electricidade, o qual é bem conhecido, o processo que confere aos activos a forma necessária para estimular mais produção é desconhecido. Tal sucede porque esse processo-chave não foi deliberadamente criado para gerar capital, mas sim para o mais mundano dos objectivos: proteger a titularidade da propriedade. À medida que os sistemas de propriedade do Ocidente foram crescendo, desenvolveram, imperceptivelmente, uma gama de mecanismos que, a pouco e pouco, se complementaram num processo que originou capital como até aí nunca tinha acontecido.

O processo de conversão oculto do Ocidente

No Ocidente, este sistema de propriedade formal inicia a transformação dos activos em capital quando descreve e organiza os seus aspectos mais úteis económica e socialmente, preservando esta informação num sistema de registo – qual inscrição num balancete ou num ficheiro de computador – e corporizando-a sob a forma de título. Um conjunto de regras detalhadas e precisas regem todo este processo. O registos e os títulos de propriedade formal representam, portanto, o nosso conceito partilhado sobre o que é economicamente relevante a respeito de qualquer activo. Eles captam e organizam toda a informação relevante necessária para conceptualizar o valor potencial de um activo e permitir que o controlemos.

Qualquer activo cujos aspectos económicos e sociais não se encontrem integrados num sistema de propriedade formal é extremamente difícil de transaccionar no mercado. Como poderia a enorme quantidade de bens que andam de mão em mão na moderna economia de mercado ser controlada a não ser mediante um processo de propriedade formal? Sem um sistema desse género, qualquer transacção de um activo, como seja uma parcela de imobiliário, requer um enorme esforço só para determinar os elementos básicos da operação: o imóvel pertence mesmo ao vendedor e ele tem o direito de o transferir? Pode apresentá-lo como penhor? Será o novo proprietário aceite enquanto tal por quem executa os direitos de propriedade? Quais são os meios eficazes para excluir outros pretendentes? É por isto que, fora do Ocidente, o intercâmbio da maioria dos bens se restringe aos círculos locais de parceiros comerciais.

O principal problema destes países não é a falta de espírito empresarial: os pobres acumularam ao longo dos últimos 40 anos milhares de milhões de dólares em imóveis. O que falta aos pobres é acederem facilmente aos mecanismos de propriedade que permitem estabelecer legalmente o potencial económico dos seus activos, por forma a que estes possam ser utilizados para produzir, garantir ou assegurar mais valor num mercado mais abrangente.

Porque é que a génese do capital se tornou algo tão misterioso? E porque é que as nações mais ricas do mundo não explicaram às outras nações o quão indispensável é um sistema de propriedade formal para a formação de capital? A resposta reside no facto de ser extremamente difícil visualizar o processo que, no seio do sistema de propriedade formal, transforma os activos em capital. Encontra-se oculto em milhares de leis, normas, regulamentos e instituições que governam o sistema. Qualquer pessoa atolada em semelhante pântano legal terá dificuldade em compreender como funciona o processo. A única forma de o ver é colocarmo-nos no exterior do sistema – no seu lado extralegal –, que foi onde os meus colegas e eu desenvolvemos a maior parte do nosso trabalho.

Os sistemas de propriedade formal do Ocidente produzem seis efeitos que permitem aos seus cidadãos gerar capital.

Primeiro efeito da propriedade: “fixar” o potencial económico dos bens

O capital nasce quando se representam por escrito – num título, numa garantia, num contrato ou em qualquer outro desses registos – as qualidades mais económica e socialmente úteis de um activo, por oposição aos seus aspectos visualmente mais vincados. É aqui que o valor potencial é pela primeira vez descrito e registado. No momento em que, por exemplo, centramos a atenção no título de uma casa e não na casa em si, saímos automaticamente do mundo material para o universo conceptual onde se situa o capital.

A prova de que a propriedade é um mero conceito surge quando uma casa muda de mãos: nada se altera fisicamente. A propriedade não é a casa em si mesma, mas um conceito económico a respeito da casa, corporizado numa representação legal que descreve, não os seus atributos físicos, mas sim as qualidades económica e socialmente relevantes que nós, humanos, lhe atribuímos (tais como como a possibilidade de a utilizar para uma variedade de propósitos – por exemplo, para obter fundos para investimento sem ter de a vender). Nos países desenvolvidos, esta representação formal da propriedade oferece um meio de garantir os interesses de terceiros e de fomentar a responsabilização, ao proporcionar a informação, as referências, as regras e os mecanismos de execução necessários.

A propriedade legal proporciona assim ao Ocidente as ferramentas para produzir um valor que vai para lá dos bens físicos. Quer essa tenha ou não sido a intenção de alguém, o sistema de propriedade legal tornou-se a escadaria que conduziu estes países de um universo de bens no seu estado natural até ao universo conceptual do capital, onde os activos podem ser reconhecidos pelo seu verdadeiro potencial produtivo.

Segundo efeito da propriedade: integrar a informação dispersa num único sistema

A razão por que o capitalismo triunfou no Ocidente e falhou no resto do mundo é o facto de a maioria dos activos nos países ocidentais terem sido integrados num único sistema de representação formal. Esta integração não aconteceu por acaso. Ao longo de décadas, no século XIX, políticos, legisladores e magistrados compilaram os esparsos usos e costumes que regiam a propriedade em cidades, aldeias, edifícios e quintas e integraram-nos num único sistema. Esta “compilação” das representações da propriedade, um momento revolucionário na história das nações desenvolvidas, sedimentou toda a informação e regras que governam a riqueza acumulada pelos seus cidadãos numa só base de conhecimento. Antes desse momento, a informação sobre os activos era muito menos acessível. Cada quinta ou exploração agrícola registava os seus activos e as regras pelas quais estes se regiam recorrendo a balancetes rudimentares, a símbolos ou ao testemunho oral. Mas desse modo a informação estava atomizada, dispersa e não se encontrava sempre disponível para qualquer agente.

Os países em desenvolvimento e as antigas nações comunistas ainda não criaram sistemas unificados de propriedade formal. Em todas as nações que estudei, nunca encontrei um único sistema legal, mas sim dúzias ou até centenas deles, geridos por toda a espécie de organizações, algumas legais, outras extralegais, que vão de pequenos grupos empresariais até organizações viradas para a habitação. Consequentemente, o que as pessoas podem fazer com a sua propriedade fica limitado à imaginação dos seus donos e à dos seus conhecidos. Nos países ocidentais, onde a informação sobre a propriedade se encontra padronizada e universalmente disponível, o que os proprietários podem fazer com os seus activos beneficia da imaginação colectiva de uma enorme rede de pessoas.

O leitor ocidental pode ficar surpreso com o facto de a maioria das nações do mundo ainda não terem integrado num único sistema legal e formal os acordos de propriedade extralegais. Para os ocidentais de hoje em dia, só existe supostamente um único direito – o oficial. Contudo, a existência de diferentes sistemas informais de propriedade foi outrora a norma em todas as nações. A utilização pelo Ocidente de sistemas de propriedade integrados é, no máximo, um fenómeno com 200 anos. A razão por que é tão difícil seguir esta história da integração dos sistemas de propriedade dispersos é o facto de esse processo ter decorrido durante um muito longo período de tempo.

Terceiro efeito da propriedade: responsabilizar as pessoas

A integração de todos os sistemas de propriedade num único direito de propriedade formal transferiu a legitimidade dos direitos dos proprietários do contexto politizado das comunidades locais para o contexto impessoal do direito. Libertar os proprietários das soluções locais mais restritivas e trazê-los para um sistema legal mais integrado facilitou a sua responsabilização.

Ao transformar as pessoas ligadas a uma propriedade em indivíduos responsabilizáveis, a propriedade formal originou indivíduos a partir das massas. As pessoas deixaram de precisar de depositar a sua confiança nas relações de vizinhança ou de fazer entendimentos locais para conseguirem proteger o seu direito aos bens. Passaram portanto a estar livres para explorar maneiras de gerar um valor acrescentado a partir dos seus próprios activos. Mas houve um preço a pagar: uma vez integrados num sistema formal de propriedade, os proprietários perderam o seu anonimato e houve um reforço da sua responsabilização. Quem não paga os bens ou os serviços que consumiu ou utilizou pode ser identificado, podem-lhe ser imputados juros, multas, congelamentos de bens ou pode ver diminuídas as suas possibilidades de acesso ao crédito. As autoridades passam a conseguir verificar as infracções à lei e os incumprimentos contratuais; passam a poder suspender serviços, penhorar bens e remover alguns ou a totalidade dos privilégios da propriedade legal.

No Ocidente, o respeito pela propriedade e pelas transacções está profundamente inserido no ADN dos cidadãos; mas é, na verdade, o resultado de possuírem sistemas de propriedade formal que pode ser executada. O papel da propriedade formal, ao proteger não só a titularidade mas também a segurança das transaccções, encoraja os cidadãos dos países desenvolvidos a respeitarem os títulos, a honrarem os contratos e a obedecerem à lei. A propriedade legal incita, portanto, ao comprometimento.

A ausência de propriedade legal explica então porque é que os cidadãos dos países em desenvolvimento e das antigas nações comunistas não são capazes de celebrar contratos lucrativos com estranhos e não conseguem obter crédito, fazer seguros ou beneficiar de certos serviços: não têm propriedade que lhes possa ser tirada. Como não têm propriedade legal, só são levados a sério como partes contratantes pelos seus parentes próximos e pelos vizinhos. As pessoas que não têm nada que se lhes possa tirar estão encurraladas na cave bolorenta do mundo pré-capitalista.

Quarto efeito da propriedade: tornar os bens fungíveis

Uma das coisas mais importantes que o sistema formal de propriedade faz é tornar mais acessível a condição dos activos, para que lhes seja possível realizar trabalho adicional. Contrariamente aos activos físicos, as representações de activos são facilmente combinadas, divididas, movidas e utilizadas para promover negócios. Ao desenredar as características económicas de um activo do seu estado rígido e físico, uma representação torna-o “fungível” – capaz de ser moldado para servir praticamente qualquer transacção.

Ao elencar todos os activos em categorias padronizadas, um sistema integrado de propriedade formal torna possível a comparação de dois edifícios arquitectonicamente diferentes construídos para o mesmo fim. Isto permite que qualquer pessoa, rapidamente e sem custos, estabeleça as diferenças e semelhanças dos activos sem ter de se debruçar sobre cada um deles como se fosse único.

No Ocidente, as descrições de propriedade padronizadas são igualmente reduzidas a escrito para facilitar a combinação de activos. As regras formais de propriedade requerem que os activos sejam descritos e caracterizados de forma a que não só seja evidenciada a sua singularidade, como também seja assinalada a sua semelhança com outros activos, tornando assim mais óbvias as potenciais combinações. Através da utilização de registos padronizados, é possível determinar a melhor forma de explorar lucrativamente um activo em particular.

As representações permitem também a divisão dos activos sem que seja preciso tocar-lhes. Enquanto um activo como uma fábrica pode ser uma unidade indivisível no mundo físico, no universo conceptual da representação formal da propriedade pode ser subdividido em qualquer número de partes. Os cidadãos dos países desenvolvidos podem assim dividir a maioria dos seus activos em quotas ou acções, podendo cada uma delas ser propriedade de diferentes pessoas, com diferentes direitos, e visando desempenhar diferentes funções.

As representações formais de propriedade também podem servir como substitutos dos bens físicos, permitindo aos proprietários e empresários simularem situações hipotéticas a fim de explorarem outros usos lucrativos para os seus activos. Mais ainda, todos os documentos padronizados da propriedade formal são concebidos por forma a facilitar a mensuração dos atributos de um activo. Ao proporcionarem normas e referências, os sistemas de propriedade formal do Ocidente reduziram significativamente os custos de transacção de mobilizar e utilizar os bens.

Quinto efeito da propriedade: interligar as pessoas

Ao tornarem os activos fungíveis – prontos para serem divididos, combinados ou mobilizados de forma a se adaptarem a qualquer transacção –, ao ligarem os proprietários aos activos, os activos aos seus endereços e a propriedade à execução da mesma, e ao tornarem facilmente acessível a informação sobre a história dos activos e dos seus proprietários, os sistemas de propriedade formal converteram os cidadãos do Ocidente numa rede de agentes económicos individualmente identificáveis e responsabilizáveis. O processo da propriedade formal criou toda uma infra-estrutura de mecanismos de conectividade que, como uma agulha de caminho-de-ferro, permitiu aos activos (comboios) circularem em segurança entre as pessoas (estações). A contribuição da propriedade formal para a humanidade não é a protecção do direito de propriedade: as comissões de moradores, os "ocupas", as máfias e até as tribos primitivas conseguem proteger os seus bens com bastante eficácia. O verdadeiro avanço trazido pelo sistema de propriedade é a melhoria radical do fluxo de comunicações a respeito dos activos e do seu potencial, tendo melhorado também o estatuto dos seus proprietários.

A propriedade legal no Ocidente também proporciona aos negócios informação sobre os activos e os seus proprietários, bem como endereços passíveis de verificação e registos objectivos do seu valor – em suma, tudo o que leva a perfis de crédito. Esta informação e a existência de um direito integrado tornam possível uma melhor gestão do risco, ao dispersá-lo mediante a utilização de mecanismos de seguro, bem como através da agregação de propriedade para garantia de dívidas.

Poucos parecem ter notado que o sistema de propriedade legal de um país avançado é o centro de uma complexa teia de relações que capacita o comum dos cidadãos para criar vínculos quer com o governo, quer com o sector privado, podendo assim obter bens e serviços adicionais. Sem as ferramentas da propriedade formal, é difícil imaginar como é que os activos poderiam ser utilizados em todos os fins que prosseguem no Ocidente.

Sexto efeito da propriedade: proteger as transacções

Uma importante razão para o sistema de propriedade formal no Ocidente funcionar como uma rede é que todos os registos de propriedade (títulos, escrituras, garantias e contratos que descrevem os aspectos economicamente relevantes dos bens) são continuamente monitorizados e protegidos enquanto viajam através do tempo e do espaço. Num país avançado, as agências públicas são as guardiãs destas representações. Elas administram os registos que contêm todas as descrições economicamente úteis dos activos, sejam eles terrenos, edifícios, bens móveis, navios, indústrias, minas ou aviões. Tais registos alertam qualquer pessoa que deseje utilizar um activo para todas as coisas que possam restringir ou promover a sua utilização, como sejam a sua penhora, caução, arrendamento, direitos de usufruto, insolvências ou hipotecas. Para além dos sistemas de registo público, muitos outros serviços privados (como custodiantes e mandatários, avaliadores, etc.) foram desenvolvidos para auxiliar as partes a estabelecerem, alterarem ou seguirem o rasto das representações, para que possam produzir valor acrescentado de forma simples e segura.

Embora se encontrem estabelecidos para proteger tanto a propriedade como as transacções, é óbvio que os sistemas ocidentais colocam a ênfase nestas últimas. O foco principal é dar confiança às transacções, a fim de as pessoas poderem mais facilmente conceder aos seus activos uma vida paralela como capital. Pelo contrário, na maioria dos países em desenvolvimento, a lei e as instituições oficiais encontram-se encurraladas pelos primitivos direitos colonial e romano, que têm um viés para a protecção da propriedade. Tornaram-se guardiãs dos desejos dos mortos.

Conclusão

Grande parte da marginalização dos pobres nos países em desenvolvimento e nas antigas nações comunistas deriva da sua incapacidade de tirarem proveito dos seis efeitos que a propriedade formal proporciona. O desafio que estes países enfrentam não é o de se devem ou não produzir ou receber mais dinheiro, mas sim o de se são capazes de compreender as instituições legais e de canalizar a vontade política necessária para construir um sistema de propriedade que seja facilmente acessível aos pobres.

O historiador francês Fernand Braudel achava um grande mistério que o capitalismo ocidental, no seus primórdios, apenas servisse uns poucos privilegiados, tal como acontece hoje noutras partes do mundo:

O fulcro da questão é descobrir por que razão aquele sector da sociedade do passado, que eu não hesitaria em apelidar de capitalista, acabou por viver como que encerrado numa redoma de vidro, isolado de todo o resto, o que o impediu de se expandir e conquistar toda a sociedade? … [Qual a razão por que] uma percentagem significativa da formação de capital só foi possível em certos sectores e não em toda a economia de mercado dessa época?[1]

Acredito que a resposta à pergunta de Braudel reside nas dificuldades de acesso à propriedade formal, quer no passado no Ocidente, quer nos países em desenvolvimento e ex-comunistas hoje em dia. Os investidores locais e estrangeiros têm dinheiro; os seus activos são fungíveis e encontram-se mais ou menos integrados, ligados em rede e protegidos por sistemas de propriedade formal. Mas esses investidores são apenas uma pequena minoria – são os que conseguem pagar a advogados e especialistas, os que conseguem contactos com intervenientes bem posicionados e os que têm a paciência e o tempo necessários para navegar por entre a burocracia dos seus sistemas de propriedade. A grande maioria do povo, que não consegue ver os frutos do seu trabalho representados pelo sistema de propriedade formal, vive fora da redoma de Braudel.

A redoma torna o capitalismo um clube privado, aberto apenas a alguns privilegiados, e enfurece os milhares de milhões que ficam do lado de fora a olhar. Este apartheid capitalista continuará inevitavelmente até que enfrentemos o defeito fundamental dos sistemas legais e políticos de muitos países, que faz com que a maioria não consiga integrar-se no sistema do propriedade formal.

É a altura certa para descobrirmos a razão por que a maioria dos países não tem sido capaz de criar sistemas de propriedade formal abertos e inclusivos. Agora que o Terceiro Mundo e os países ex-comunistas estão a dar corpo às suas mais ambiciosas tentativas de implementar sistemas capitalistas, chegou o momento de levantar a redoma.


[1] Fernand Braudel, The Wheels of Commerce, Nova Iorque, Harper and Row, 1982, p. 248.

Ensaio baseado no terceiro capítulo do livro The Mystery of Capital: Why Capitalism Triumphs in the West and Fails Everywhere Else (2000), do economista e ativista peruano Hernando de Soto.

Retirado da edição portuguesa O Mistério do Capital. Porque Triunfa o Capitalismo no Ocidente e Fracassa no Resto do Mundo (2002), da Editorial Notícias, com tradução de António Belo.

Revisão e Narração: Pedro Almeida Jorge.

Transcrição: Ricardo Oliveira.

Ler também o primeiro capítulo.

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