Excertos e Ensaios, Clássicos, Direitos Civis e Privacidade, Filosofia, Ética e Moral, Filosofia Política, Direito e Instituições, Liberalismo no Feminino
Na discussão precedente a favor do sufrágio universal mas gradativo não levei em conta a diferença de sexos. Considero-a sem qualquer importância para os direitos políticos, como não tem importância a diferença de altura ou da cor do cabelo. Todos os seres humanos têm um interesse igual pelo bom governo; o bem-estar é igualmente afectado por ele, e todos têm igual necessidade de ser ouvidos a fim de se assegurarem a parte que lhes cabe nos benefícios. Se houver qualquer diferença, as mulheres a exigem mais que os homens, visto que, sendo fisicamente mais fracas, dependem para sua protecção mais da lei e da sociedade. Os homens há muito abandonaram as únicas premissas que podiam vir em apoio da afirmação de que as mulheres não devem votar. Não há ninguém, hoje em dia, que sustente que as mulheres devem conservar-se numa servidão pessoal, sem pensamentos, desejos ou ocupações, reduzidas à posição de escravas domésticas dos maridos, dos pais ou dos irmãos. Permite-se às mulheres solteiras e em breve também se permitirá às casadas possuir propriedade e ter interesses pecuniários e de negócios, por igual com os homens. Considera-se conveniente e adequado que as mulheres pensem, escrevam e ensinem. Desde que se admita tudo isso, não há que aceitar a incapacidade política. Toda a maneira de pensar do mundo moderno se pronuncia com ênfase crescente contra a ingerência da sociedade no sentido de resolver o que os indivíduos são capazes ou não de fazer e sobre o que se lhes deve permitir tentar ou não. Se os princípios da política moderna e da economia política têm qualquer utilidade, é no sentido de provar que estes pontos só os próprios indivíduos podem julgar com justeza; que, em completa liberdade de escolha, sempre que existam diversidades de aptidões, o maior número se dedicará àquilo para que, na média, se julgue mais capaz e somente as excepções tomarão caminho excepcional. Ou toda a tendência dos aperfeiçoamentos sociais modernos foi errónea ou terá de conduzir à abolição total de todas as exclusões e incapacidades que bloqueiam um emprego honesto a um ser humano.
Mas nem mesmo é necessário sustentar tanto com o intuito de provar que as mulheres devem ter direito a voto. Mesmo que fosse justo, como é injusto, que fossem uma classe subordinada, limitada às ocupações domésticas e sujeita à autoridade doméstica, não precisariam menos da protecção do sufrágio para as garantir contra o abuso dessa autoridade. Os homens, tanto como as mulheres, não precisam de direitos políticos para que possam governar, mas para que não sejam mal governados. A maioria do sexo masculino é e será toda a vida nada mais que trabalhadores em plantações e em fábricas, mas tal circunstância não lhes torna o sufrágio menos desejável, nem o direito a ele menos irresistível, quando não for provável que o empreguem mal. Ninguém pretende pensar que as mulheres usassem mal o sufrágio. O pior que se diz é que votariam como simples dependentes, conforme mandassem os parentes masculinos. Se assim for, que seja. Se pensarem por si, grande bem se fará e, se não pensarem, mal algum resultará. Implica um benefício para qualquer ser humano livrar-se das correntes, mesmo que não queira andar. Implicará já grande melhoramento na posição moral das mulheres se a lei deixasse de as declarar incapazes de opinião, sem direito a exprimir uma preferência a respeito dos interesses mais importantes da humanidade. Para elas, individualmente, haveria certo benefício em terem algo a conceder que os parentes homens não pudessem exigir e, entretanto, desejassem obter. Não seria menor o benefício que resultasse da discussão entre marido e mulher, não lhe incumbindo o voto exclusivamente, mas a interesses associados.
As pessoas não consideram suficientemente como se elevará a mulher em dignidade e estima aos olhos de um homem vulgar, por ser capaz de exercer uma acção no mundo exterior independentemente do marido, tornando-a objecto de respeito que nenhuma qualidade pessoal seria capaz de conseguir para uma pessoa cuja existência social ele pode absorver inteiramente. O próprio voto melhoraria de qualidade. O homem seria frequentemente obrigado a descobrir razões honestas para o seu voto que a induzissem, com carácter mais honesto e imparcial, a servir a seu lado sob a mesma bandeira. A influência da mulher muita vez o forçaria a conservar-se fiel à própria opinião sincera. De facto, frequentemente, empregá-la-iam não a favor do princípio público mas do interesse pessoal ou da vaidade mundana da família. Mas sempre que tal fosse a influência da mulher, ela já a exerce por inteiro nessa má direcção; e com tanto maior certeza, visto que, sob a lei e o costume actuais, ela fica geralmente por demais estranha à política em qualquer sentido que implique com princípios, incapaz de perceber, de si para si, que existe neles um ponto de honra; e que muita gente tem tão pouca simpatia pelo ponto de honra dos outros quando o próprio se não reporta ao mesmo objecto, como a tem pelos sentimentos religiosos dos que professam uma religião diferente. Dê-se o voto à mulher e ela ficará sob a influência do ponto de honra político. Aprenderá a encarar a política como assunto em que lhe permitem ter opinião e no qual, se alguém tem uma opinião, ela deve fazer-se valer; adquire o sentimento de responsabilidade pessoal no assunto e nunca mais sentirá, como acontece actualmente, que, seja qual for a má influência que exerça, se apenas for possível persuadir o homem, tudo está bem e a responsabilidade dele tudo cobre. É somente sendo estimulada a formar uma opinião própria e a conseguir uma compreensão inteligente das razões que devem dominar a consciência contra as tentações de interesses pessoais ou de família, que poderá deixar de agir como força perturbadora sobre a consciência política do homem. Só pode impedir-se que a actuação indirecta da mulher seja politicamente prejudicial se a trocarmos por uma actuação directa.
Supus que dependesse o direito de voto, como em boas circunstâncias aconteceria, de condições pessoais. Onde depende, como na Inglaterra e noutros países, de condições de propriedade, a contradição ainda se torna mais flagrante. Há algo mais que ordinariamente irracional em pôr-se de lado o próprio princípio e o sistema da representação baseada na propriedade, quando uma mulher é capaz de fornecer todas as garantias exigidas ao eleitor masculino, circunstâncias independentes, posição de chefe da casa e da família, pagamento de impostos ou quaisquer outras condições que acaso se julguem necessárias, criando-se por esse modo a incapacidade excepcionalmente pessoal com o mero propósito de excluí-la. Quando acontece que, no país em que tal se dá, reina uma mulher e que o governante mais glorioso que alguma vez teve foi uma mulher, completa-se o quadro da sem-razão e da injustiça dificilmente disfarçada. Esperemos que, perseguindo a obra de derrubar, um após outro, os restos da estrutura decrépita do monopólio e da tirania, não seja este o último a desaparecer; que as opiniões de Bentham, do Sr. Samuel Bailey, do Sr. Hare e de muitos outros dentre os pensadores políticos mais vigorosos desta época e deste país (para não falar dos outros) sejam aceites por todos os espíritos que não se tornaram obstinados pelo egoísmo ou por preconceito inveterado; que, antes de passar outra geração, o acidente de sexo, não mais que o acidente de pele, não se julgue razão bastante para privar o possuidor de protecção igual e dos justos privilégios de cidadão.
Excerto do capítulo VIII ("Da Extensão do Sufrágio") das Considerações sobre o Governo Representativo (1861) do filósofo britânico John Stuart Mill (1806-1873). A tradução é de José Fernandes e foi publicada em 1967 pela Editora Arcádia.
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Transcrição: Ricardo Oliveira.
Revisão: Pedro Almeida Jorge.
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