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Ordens Económicas

Walter Eucken

Excertos e Ensaios, Empreendedorismo, Concorrência e Regulação, História, Economia, Liberalismo e Capitalismo, Ordoliberalismo

Português

1. Quer se trate da economia do Egipto antigo, da Roma de Augusto, da França da alta Idade Média, da Alemanha de hoje ou de outra qualquer, os planos económicos e a actividade económica de todos e de cada um, do camponês, do senhor feudal, do comerciante, do artesão ou do operário, inserem-se no quadro de uma "ordem económica" qualquer e só têm um sentido no quadro dessa ordem. O processo económico decorre sempre e em toda a parte sob certas formas, ou seja, no quadro de uma ordem económica historicamente dada. As ordens positivas, historicamente dadas podem ser más, mas sem uma ordem não há, no fim de contas, actividade económica possível.

Se observássemos a Terra do alto, vendo o extraordinário bulício de gente, a diversidade das ocupações, o encadeamento das actividades e as correntes de mercadorias, a primeira questão que colocaríamos seria: no quadro de que ordem se realiza tudo isto? A questão tem toda a razão de ser. Não podemos dizer nada com sentido, sobre o que se passa lá em baixo, se desconhecemos essa ordem. – Provavelmente já muitos colocaram a questão da ordem ao observarem um formigueiro. Porém, entre a ordem do formigueiro e a ordem da economia humana existem grandes diferenças. Uma dessas diferenças é que o formigueiro tem uma ordem constante. Não a economia humana. Se alguém observasse a Alemanha de 1700 à vol d’oiseau e perguntasse quais as caraterísticas da ordem económica em que os indivíduos se moviam, teria obtido uma resposta diferente da de um observador de hoje. E quem hoje vê primeiro a China e depois a Alemanha obtém respostas diferentes.

uma instância central que dirige o quotidiano económico ou são os inúmeros indivíduos que tomam as suas próprias decisões? Consiste esta ordem em pequenas entidades económicas, autárcicas, independentes – talvez economias familiares – cada uma com a sua direção central? Então o conjunto é uma justaposição de pequenas entidades económicas dirigidas centralmente: seria possivelmente o caso nalgumas regiões da China por volta de 1900. Ou há órgãos de administração central de maior dimensão que operam uma regulação geral do quotidiano económico como nos domínios senhoriais da alta Idade Média? E, se muitas unidades económicas elaboram planos independentes, mas estão porém dependentes umas das outras e mantêm relações económicas entre elas – como por exemplo na Alemanha por volta de 1900 –, pergunta-se de que espécie é a ordem das relações mercantis que as unem. Quais são as regras do jogo? – A visão à vol d’oiseau permite, não só aperceber uma corrente de mercadorias, mas mostra também como, dia após dia, os indivíduos realizam determinadas actividades interrelacionadas. Em que ordem se opera este emprego diário da mão-de-obra? Ter-se-ia, em 1940 por exemplo, podido observar que na Rússia e nos Estados Unidos havia indivíduos em actividade nos campos e nas fábricas. Qual era a ordem em matéria de relações de trabalho em ambos os países? O estudo mostraria que num caso e noutro estamos em presença de ordens muito diferentes, que na Rússia também nas relações de trabalho prevalecem traços da economia de direção central, enquanto na América predominam as relações contratuais livres.

Na agricultura, na indústria, no comércio e nos transportes existiram e existem sempre, em todos os países, ordens parciais; as relações de trabalho estão em toda a parte ordenadas de uma certa maneira e do mesmo modo existe sempre uma certa ordem monetária. Todas estas ordens parciais se entrosam umas nas outras e constituem simplesmente segmentos da ordem global, ou seja, da respectiva ordem económica. Por exemplo, a ordem económica francesa contemporânea ou a ordem económica bizantina do séc. XI.

No passado, surgiram e desapareceram as ordens económicas, numa multiplicidade grandiosa e à primeira vista incalculável. Se se quisesse por exemplo descrever as ordens económicas que, por volta de 1700, se verificavam concretamente nos diversos países europeus, na Índia e na China, nos países da América do Sul e nas diversas regiões africanas, apresentar-se-ia uma série de quadros tão variada quanto interessante. No séc. XX, as ordens económicas mudam rapidamente em cada um dos Estados – e não só nos países industrializados – e continuam a coexistir ordens de espécies muito diferentes; comparem-se por exemplo as ordens económicas da Inglaterra, da Rússia e do Japão em 1935. A ordem económica de um país consiste na totalidade das formas ali realizadas, nas quais se desenrola quotidianamente o processo económico.

 

2. Como surgiram as ordens económicas do passado e do presente?

A maioria formou-se no decurso da evolução histórica; só poucas foram criadas com base num plano geral. Na antiguidade, na alta e baixa Idade Média, nos primeiros séculos da idade moderna e nas civilizações extra-europeias as ordens económicas eram em regra "espontâneas". A vontade de introduzir determinados princípios básicos na ordem económica não foi em geral determinante no seu surgimento. Elas formaram-se no quadro das respectivas condições naturais e ao sabor dos acontecimentos políticos, internos e externos, e económicos, sem obedecer a um plano geral. Sem dúvida que muitos Estados da antiguidade e da idade moderna e muitas cidades da Idade Média influenciaram, pela sua política económica, a sua estrutura económica. Apesar disso, estas ordens económicas não deixam de ser "espontâneas", pois tais intervenções não resultavam na maioria dos casos de um plano geral de reorganização de toda a economia ou de esferas particulares, como a agricultura, o artesanato, a indústria ou a moeda. Antes recebiam o seu impulso de um qualquer conflito político interno ou externo. Elas surgiam caso a caso. Quando por exemplo alguma cidade medieval, ao tomar medidas em matéria de política de preços, ao restringir o direito de entrada ou ao proibir as corporações, transforma a ordem económica vigente, tal como acontece devido a uma dada luta pelo poder ou com vista a eliminar certos inconvenientes, não porém com o desígnio de impor uma ordem previamente pensada, por exemplo, a todo o artesanato da cidade.

Só em poucas situações históricas é que certos "princípios básicos", definidos racionalmente, estiveram na origem da criação de ordens económicas. Deviam então ser postos em prática princípios gerais que levassem à criação de uma ordem funcional para toda a economia ou para determinadas esferas. Entra nesta categoria a grande reformulação das ordens económicas que se operou na transição do séc. XVIII para o séc. XIX e na primeira metade do séc. XIX. Propriedade privada, liberdade dos contratos e concorrência tais eram os princípios com base nos quais se devia criar uma ordem para a economia. Partindo do conhecimento da articulação geral do quotidiano económico e da descoberta que a concorrência era um princípio regulador altamente eficaz, a economia política clássica tinha desenvolvido estes princípios e identificado as grandes reformas que os deviam pôr em prática. Acreditava-se e esperava-se que através de «um sistema simples de liberdade natural» (Adam Smith) se podia estabelecer uma economia concorrencial bem ordenada. Surgiram assim ordens económicas através da criação de "constituições económicas". Por "constituição económica" devemos entender as decisões gerais sobre a ordem vigente na vida económica de uma comunidade. Existem naturalmente também constituições parciais para a moeda, para a agricultura ou para as relações de trabalho, por exemplo.

Mas mesmo quando as constituições económicas pretendiam pôr em prática a ordem da economia ou de determinada esfera económica, desenvolveram-se frequentemente, com base nas constituições económicas, ordens económicas de facto que não correspondiam, ou não correspondiam plenamente, ao espírito das constituições económicas. Este estado de coisas é característico por exemplo do fim do séc. XIX e do começo do séc. XX. De acordo com os princípios da maioria das constituições económicas modernas deviam ser postas em prática a propriedade privada, a liberdade dos contratos e a concorrência. Porém, as ordens económicas de facto que se elevaram sobre estes fundamentos constitucionais afastaram-se cada vez mais dos princípios das constituições económicas. Em medida crescente, por exemplo na indústria, a liberdade dos contratos foi utilizada para, pela constituição de cartéis, eliminar a concorrência. Em importantes sectores da economia, como os do carvão e do ferro, o princípio da concorrência foi assim em larga medida eliminado pela evolução de facto. A liberdade dos contratos foi múltiplas vezes utilizada para alterar as formas de mercado e criar estruturas de poder. Contra todas as expectativas, o «sistema simples de liberdade natural» não realizou a ordem concorrencial. – Segundo exemplo. Veja-se a ordem monetária inglesa no mesmo período. A lei bancária de Peel de 1844 era uma lei conforme à constituição económica. Em matéria de criação de moeda deviam aplicar-se determinados princípios, resultado de uma cuidada reflexão teórica: concentração da criação de moeda de crédito nas mãos de um banco central monopolista e limitação da distribuição de moeda de crédito no essencial ao caso da compra de ouro. Sobre esta base económico-constitucional desenvolveu-se uma ordem monetária inglesa, que de facto, sem ela, não poderia ter surgido, mas se revelou muito diferente daquilo que os criadores do sistema de Peel pretendiam. Estes homens tinham na realidade pensado só na moeda fiduciária e não na moeda escritural. E assim se formou uma ordem monetária, caracterizada pela criação de moeda por parte do banco emissor de moedas e pelos bancos de crédito privados, pela via da distribuição de crédito e sob a forma de moeda escritural, regulação da quantidade de moeda pelos efeitos em tesoura das políticas de desconto e de open market e, finalmente, domínio do mercado monetário inglês pelo Banco de Inglaterra. De uma maneira que a constituição monetária que lhe serve de base não previu.

Resumindo, podem distinguir-se – em função da sua origem – duas espécies de ordens económicas: as "espontâneas" e as "instituídas". Ainda que a primeira tenha largamente predominado no passado, na época mais recente a segunda tem vindo a ocupar cada vez mais o primeiro plano. Porque o mundo moderno, industrializado, não permite a "geração espontânea" da sua ordem económica. É verdade que as ordens económicas, na maioria dos casos, têm um aspecto diferente do previsto pelos princípios das respectivas constituições económicas. – A diferença que se encontra na formação das ordens económicas existe de maneira análoga noutros sectores da vida social. Por exemplo, na formação das ordens jurídicas concretas. A história e a sociologia do direito mostraram que as normas jurídicas, ou se formam espontaneamente, ou são instituídas. – Ou então pense-se no urbanismo. A maioria das cidades surgiram sem plano geral, cresceram à volta de um núcleo, e desenvolveram-se com base em muitos planos individuais de muitos arquitectos ao longo de gerações. Da mesma maneira surgiram as ordens económicas "espontâneas". Paralelamente, houve e há cidades criadas com base num plano de urbanismo geral, como por exemplo muitas cidades europeias fundadas no séc. XVIII. Mas, também no caso delas, o desenvolvimento efectivo posterior não se operou frequentemente de acordo com o plano de urbanismo e as ideias a ele subjacentes, mas afastou-se dele substancialmente. Da mesma maneira, a situação efectiva das ordens económicas “instituídas” não é frequentemente a realização das ideias subjacentes às constituições económicas.

 

3. As ordens económicas não são assimiláveis às correspondentes ordens jurídicas.

A situação em matéria de ordem económica tem a ver com as formas no quadro das quais se desenrola o processo económico quotidiano, não com as normas jurídicas.

Por exemplo, da constatação que num dado lugar existia juridicamente propriedade privada não se pode concluir nada de seguro quanto à ordem económica. Seria totalmente erróneo deduzir por exemplo da existência de propriedade privada que ali predominava a “economia mercantil”. Entre os romanos e na alta Idade Média havia como se sabe propriedade privada. Contudo, existiam na época romana e na alta Idade Média muitas explorações agrícolas pequenas e grandes que em si representavam essencialmente unidades económicas “centralmente dirigidas” e poucas relações “mercantis” mantinham. Do mesmo modo se podem encontrar hoje no Sudoeste da Europa – e em países com propriedade privada – unidades económicas familiares que poucas relações económicas têm com outras unidades económicas. Estas comunidades são pequenos corpos económicos dirigidos centralmente. Muitos países orientais adoptaram completamente as leis civis fundamentais dos países da Europa central e ocidental, apesar de a sua ordem económica ser totalmente diferente. – Ou então considere-se a ordem económica que, após 1933, se veio a realizar na agricultura alemã, onde a influência de instâncias superiores de direito público, centralizadas, sobre os planos económicos individuais das empresas e a orientação da oferta de acordo com um plano central fazem aparecer nitidamente – apesar de o direito à propriedade privada subsistir – elementos da economia de administração central.

Inversamente, a ausência de propriedade privada não significa por si só a direção centralizada da economia. Quando em vários reinos do Oriente antigo toda a terra pertencia ao soberano, isso não implicava que a direção da produção tivesse de vir do rei. Foi o caso em certos países e em certos séculos. Noutros países e noutros séculos, os camponeses rendeiros tinham aparentemente liberdade para manterem relações mercantis e a falta de direito de propriedade traduzia-se apenas em impostos. Estes factos tornam tanto mais difícil o conhecimento económico-histórico: a constatação da existência de determinadas instituições jurídicas permite tirar poucas e pouco seguras conclusões quanto à ordem económica. – Se, dentro de dois mil anos, a ciência só conhecer as nossas normas jurídicas mais importantes, não conseguirá obter uma verdadeira imagem da nossa ordem económica. – De 1900 até hoje, a Alemanha teve sempre o mesmo direito de propriedade, ou seja, o direito de propriedade do código civil. Mas quantas ordens económicas não conheceu a Alemanha neste meio século! Durante as duas grandes guerras, passaram ao primeiro plano as formas de direção centralizada do processo económico fazendo recuar as formas mercantis. A seguir à primeira grande guerra, numa época de formação acelerada de cartéis e konzerns, mais uma vez se alterou a estrutura da ordem económica: em largas esferas da indústria, realizaram-se outras formas da economia mercantil. Após 1933, novas formas de economia centralmente administrada ocupam o primeiro plano. Continuando sempre em vigor o mesmo direito de propriedade... (Sem dúvida que, na definição da ordem económica, o direito de propriedade só por si não cria uma ordem económica.) A norma jurídica permanece, mas a sua função altera-se... com a ordem económica.

O mesmo problema visto do lado oposto: se o tribunal imperial, em fins do século passado [XIX], não tivesse confirmado a validade jurídica dos cartéis, a formação de cartéis na Alemanha não se teria realizado da maneira que se realizou. Mas, para explicar o movimento de cartelização em si, e por que razão em determinadas indústrias surgiram determinadas formas de cartéis enquanto noutras a formação de cartéis foi insignificante – donde resultou uma ordem económica industrial “mista” – têm de se invocar razões totalmente diferentes. – Ou considerem-se, na mesma época, os sindicatos operários e as associações patronais dos empresários: uma condição prévia para o seu surgimento foi o direito de coligação vigente. Mas que tais grupos de poder tenham de facto surgido, como e onde é que eles surgiram, que política conduziram, são coisas que não se podem deduzir da ordem jurídica vigente.

 

Ordem económica e ordem jurídica não são pois idênticas. – Constatar isto não significa negar ou minorar a influência que a configuração da ordem jurídica muitas vezes exerce sobre a ordem económica, da qual os exemplos anteriores já dão uma certa ideia. – Tão-pouco se pode contestar que, inversamente, a evolução da ordem económica tem frequentemente reflexos na configuração da ordem jurídica. A ordem jurídica – na medida em que ela é economicamente relevante – surge na maioria dos casos para dar uma configuração a certos factos económicos pré-existentes. Da mesma maneira que o direito de família não criou a família, mas sim a família formou-se primeiro e, em seguida, o legislador quis dar-lhe uma certa forma, também assim é na maioria dos casos na economia. O legislador e a jurisprudência procuram, através das normas e das decisões de justiça dar forma a uma ordem económica pré-existente. – Mais: frequentemente são os próprios actores do processo económico que criam normas jurídicas no quadro da ordem económica. Assim, na Alemanha dos últimos decénios, as «condições comerciais gerais» de determinadas empresas industriais ou de uniões da indústria, do comércio, da banca e dos transportes. Esta «auto-legislação económica» (Grossmann-Doerth) suplantou uma boa parte do direito civil alemão.

Estas relações entre ordem económica e ordem jurídica variam no decurso da história. Neste ponto, não é ainda possível dizer nada de geral. É necessário antes estudá-las no quadro da situação histórica particular.

 

4. A experiência simples, pré-científica é incapaz de conhecer uma ordem económica concreta.Faltam-lhe os métodos de raciocínio e o seu horizonte é demasiado estreito. Não apenas por o indivíduo pré-científico só se interessar habitualmente pela ordem económica presente. Porque nem mesmo a respectiva ordem económica ele pode conhecer, pelos menos correctamente. Um determinado industrial, artesão ou agricultor alemão conhece eventualmente aquela parte da ordem económica alemã contemporânea em que ele próprio se insere. O artesão sabe dos seus mercados de matérias-primas e produtos acabados, conhece as condições em que pode obter mão-de-obra para a sua empresa, está ao corrente de certas normas jurídicas importantes no seu caso particular e também tem presentes alguns regulamentos da sua própria corporação. Mas a ordem económica alemã na sua totalidade não a conhece nem pode conhecer. Cada agente económico vive no seu próprio ambiente. Ele tem uma imagem da forma deste. Mas este seu ambiente é só um pequeníssimo quarto no gigantesco edifício da ordem económica moderna.

A ciência é pois a única a poder responder à questão da estrutura da ordem económica. É uma questão à qual têm de responder, não só todos os economistas, mas também todos os historiadores económicos, porque sem a sua solução não se pode apreender a realidade económica na sua lógica interna. – Trata-se porém sempre de uma questão extremamente difícil.

Primeiro, porque, para as épocas anteriores, é preciso esgotar muito cuidadosamente as fontes e ser-se consequente no questionar para tornar visível a ordem económica vigente. A quem pretende investigar a ordem económica do séc. XV na Alemanha meridional não dizem inicialmente muito as informações sobre as normais jurídicas vigentes na altura, sobre a situação de certos artesãos, sobre certos preços ou sobre o volume de negócios de algumas firmas. Se ele quiser discernir como é que o sistema dos verlegers funcionava na cidade e nas zonas rurais, como é que existia aqui uma ordem económica mercantil com fortes posições individuais – no estilo da grande sociedade comercial de Ravensburg – e como é que várias formas da economia de direção central se tinham fundido com múltiplas formas da economia mercantil, tem já de interpretar muito bem as fontes. Se ele conseguiu formar uma imagem da ordem económica, então os dados sobre os preços das mercadorias, sobre os volumes de negócios ou sobre os rendimentos dos trabalhadores a domicílio começam a ter algum sentido. Porque agora começa a haver ordem na justaposição aparentemente caótica das informações isoladas e dos factos constatados.

Com isto, contudo, ainda não está identificada a dificuldade decisiva que se opõe ao conhecimento das ordens económicas. A pobreza das fontes para as épocas mais recuadas é um sério obstáculo, mas não o maior. Mesmo a ordem económica contemporânea na qual vivemos e as ordens económicas anteriores das quais nós próprios fomos testemunhas não são fáceis de conhecer. Perguntamos por exemplo qual a ordem económica alemã no tempo de Guilherme II. Na maioria dos casos a resposta será: nessa altura dominava na Alemanha o “capitalismo”. Com isso não se diz contudo ainda nada sobre a estrutura da ordem económica. – Dir-se-á ainda que reinava o laissez faire. Também com isso não se diz nada. Alguma ordem existia, ainda que não fosse uma ordem que o Estado tivesse definido em todos os seus pormenores. Em todo o caso, uma ordem que a expressão laissez faire não retrata. – Então, “economia de mercado livre”? Também esta resposta é insuficiente. Certamente que existia a liberdade dos contratos; mas, no quadro desta liberdade, nasceram formas das mais diversas espécies, desde a concorrência integral até ao monopólio bilateral. Que aspecto tinham estas formas? Sobre isso, a palavra “economia de mercado livre” não nos diz nada. Sem contar que existiam então, nos agregados familiares e na agricultura, ainda muitas entidades que de facto não pertenciam ao tipo economia de mercado. Portanto, “economia de mercado livre” é uma designação grosseiramente simplificadora, logo inexata, que não nos diz nada sobre as formas elementares da ordem económica alemã de então nem sobre a maneira como elas se combinavam.

O que a ciência tem de fazer, em contrapartida, é designar rigorosamente as ordens parciais e mostrar como é que as ordens parciais se combinam para formar uma ordem global. Dado o carácter solidário do processo económico global, resultante da divisão do trabalho, exclui-se a eventualidade de a ordem económica parcial duma esfera particular ter uma vida própria. Um exemplo: como se sabe, a esfera monetária na Alemanha até 1914 era determinada pelo padrão ouro que vigorava igualmente na maioria dos países civilizados e ao qual se aplicavam regras do jogo particulares. Quando se apresenta o padrão ouro, em regra não se vai além da descrição técnica do seu funcionamento, ou seja, que se considera a ordem monetária, em si, separada do resto. Na realidade – como diz Lutz – «um determinado sistema monetário [está sempre] subordinado a uma determinada ordem económica». A ordem monetária de então só podia ter existência numa determinada ordem económica e só nela podia funcionar. Sobretudo, ela pressupunha que na Alemanha o desenrolar do quotidiano económico não era determinado por uma instância centralizada, que prevaleciam portanto as formas elementares da economia mercantil, que nesta economia mercantil a concorrência com preços elásticos era preponderante, e que da política comercial do Estado resultava uma sólida inserção das economias nacionais na economia mundial. Logo que na Alemanha e nos outros países, após 1924, o carácter da ordem económica se alterou, logo que passaram a conduzir-se políticas conjunturais autónomas, logo que o sistema de preços se tornou mais rígido e que a política comercial passou a complicar mais do que anteriormente as trocas comerciais, o padrão ouro já não se podia manter por muito tempo como elemento da ordem económica, e por isso as tentativas de o re-introduzir falharam. Só por este exemplo, já se vê que a ordem de uma esfera particular tem de ser entendida no quadro da ordem económica geral, o que naturalmente só a ciência pode fazer. Isto é igualmente válido para a ordem do mercado de trabalho ou do mercado de produtos.

Desta maneira fica definida em poucas palavras a missão da ciência: ela tem de conhecer as ordens económicas concretas na sua estrutura. Nisso consiste o segundo problema fundamental da economia política. Dado que o processo económico quotidiano varia em função da configuração da ordem económica vigente, o conhecimento da ordem económica constitui mesmo o primeiro passo no conhecimento da realidade económica.

No presente excerto da sua influente obra Fundamentos da Economia Política (1939), o economista alemão Walter Eucken (1891-1950) introduz o conceito de "ordem económica" e salienta a sua importância para uma efetiva compreensão dos fenómenos reais da economia como um todo.

Eucken é considerado um dos principais pensadores da chamada "economia social de mercado" (ou, talvez mais corretamente, "economia de mercado social"), bem como do "milagre económico alemão" no pós-Segunda Guerra Mundial. Este seu conceito de ordem económica está também na base da corrente política do "ordoliberalismo".

A presente tradução, publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian em 1998, esteve a cargo de M. L. Gameiro dos Santos, com revisão e coordenação de Eduardo de Sousa Ferreira. Para uma leitura ainda mais completa, sugerimos a consulta das notas do autor, acessíveis através da nossa biblioteca.

Colaboração na edição: Sofia Durão.

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