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Pode ir-se da liberdade para o socialismo, mas não do socialismo para a liberdade

Jean-François Revel

Socialismo e Comunismo, Autoritarismo e Totalitarismo, Direitos Civis e Privacidade, Excertos e Ensaios, Filosofia Política, Direito e Instituições

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Aí está todo um seculo de história para mostrar que as democracias capitalistas podem evoluir no sentido do socialismo muito mais que os regimes socialistas o podem fazer no caminho da democracia. Por outras palavras, a passagem da democracia política à económica é possível, ao passo que a desta última – continuando, entretanto, a ser puramente teórica e nominal – à política é impossível. Acresce que, pelo reflexo de um choque, a ausência de democracia política destrói as próprias condições da democracia económica. (...)

Esta verificação choca por vezes com os preconceitos pós-estalinistas, segundo os quais as liberdades ditas «formais» nao têm a menor utilidade revolucionária. Mas se estas fossem tão pouco de recear, é legitimo perguntar-se por que razão os governos terão tanto medo e porque serão a censura e os regimes policiais fenómenos quase universais? Que todos os cidadãos não estejam, na prática, em igualdade de circunstâncias para beneficiarem das liberdades legais é uma razão para lutar para que todos possam aproveitá-las e não para que as percam. Por mais desonesta e injusta que seja a sua aplicação, as liberdades são a brecha indispensável à acção revolucionária. A experiência prova que não ha revolução interna possível num regime totalitário e que tais regimes, geralmente, só caem quando se verifica um cataclismo militar vindo do exterior. As pessoas que desejam ver instalado um regime duro para finalmente enfrentarem um inimigo digno da sua impetuosidade revolucionária fazem lembrar os halterofilistas incapazes de erguer um peso de cinco quilos e que reclamam um de cem... O mais curioso, porém, é que estes contentores das liberdades formais são os mais lestos a exigirem-lhes os benefícios, desde que lhes surja o mais leve contratempo, e a indignarem-se (e de que maneira!) com a apreensão de um jornal ou com uma irregularidade em matéria judicial ou eleitoral. Repito, não pretendo censurá-los, mas é necessário que nos entendamos. Nao se pode, por um lado, berrar porque as vítimas de Franco, dos coronéis gregos ou dos processos de Moscovo não foram protegidas por todas as garantias de que teriam beneficiado na Inglaterra e, por outro, cuspir na democracia inglesa como sobre uma velha podridão liberal.

A crítica do «liberalismo» especula, aliás, sobre a confusão verbal entre o liberalismo económico e a democracia política. Tais discussões testemunham apenas a necrose dos tecidos políticos própria de determinada reflexão causada pelas antinomias da razão pura, tais como o liberalismo contra a revolução, o reformismo contra o socialismo, o espírito contra a razão, a democracia contra as eleições e outros floreados metafísicos geralmente mais apreciados nos salões que nas prisões.

Na realidade, a escolha nunca se propôs nestes termos abstractos e jamais a história decorreu assim. (...) Visto que a liberdade não é apenas esse luxo para burguês ver que os falsos discípulos de Marx e os verdadeiros discípulos de Marcuse descrevem, ela é, ou deveria ser, o oxigénio da civilização socialista. O raciocínio que consiste em dizer: «O trabalhador troça dessa liberdade que permite ao intelectual defender o que quer na sua coluna do jornal, o que ele pretende sobretudo é a consolidação das conquistas revolucionárias» é experimentalmente falso, pois não haverá libertação económica sem liberdade de crítica e as «conquistas revolucionárias» foram destruídas precisamente por falta de democracia, do interior e a partir do cume, muito mais que pelo inimigo externo. Todos os escritos confidenciais, ou clandestinos, provindos recentemente da U.R.S.S. sobre este problema baseiam a sua severidade quanto ao sistema, antes de mais, no facto de a ausência de democracia ter provocado o fracasso do socialismo, postas de lado todas as considerações morais no terreno prático, e mandam para o silêncio dos arquivos a questão de saber se a economia socialista será intrinsecamente inferior à economia capitalista. De novo, estas especulações sobre as supostas virtudes intrínsecas dos dois sistemas são metafísicas e acerca delas não nos é dado pronunciarmo-nos, visto que nenhuma economia socialista foi já aplicada. Se existe fracasso real, é porque economia alguma, qualquer que seja, pode funcionar quando e inteiramente dirigida por uma oligarquia que se reserva o monopólio das decisões e reprime, pela violência, toda a participação de interesses. Quer dizer que, se houve fracasso e as análises convergem todas nesse ponto, foi por motivos políticos.

Da mesma forma, um país capitalista periclita quando o seu patronato se fecha no autoritarismo e toma todas as suas decisões no segredo da sua soberana incompetência: o capitalismo é, entao, ele próprio impelido também para a ditadura. Nenhuma economia subsistirá à idade tecnológica se não for a todo o momento recriada, sacudida, pela inteligência colectiva. (...)

O próprio progresso científico e tecnológico não nasceu do reconhecimento do direito de pesquisa, do direito ao espírito crítico, reconhecimento esse que era, ele mesmo, um dos aspectos da revolução liberal? Nao esqueçamos, pois, que jamais haverá uma sociedade socialista sem procura do progresso científico e tecnológico, portanto sem liberdade cultural. Não se trata aqui de um elo acessório entre os dois fenómenos, mas dum elo essencial, consubstancial. Com efeito, nunca poderá existir socialismo sem progresso científico, porque nunca haverá socialismo na penúria: a pobreza faz renascer automaticamente as desigualdades. O único socialismo possível é o «socialismo científico», não no sentido em que Marx e Engels entendiam esta expressão, mas no de que apenas uma sociedade onde a ciência é activa pode tornar-se socialista. A segunda revolução mundial consistirá em grande parte, e talvez essencialmente, na conquista da autonomia do poder intelectual e informacional em relação ao poder politico. Aqui se encontra a chave do problema e aqui, de novo, a democracia é a matriz do socialismo.

(...)

Efectivamente, é erro imaginar-se que os países comunistas se abrem progressivamente para a democracia após terem «consolidado» as bases do socialismo, pois, pelo contrário, quanto mais a ditadura persiste, mais essas «bases» se tornam frágeis e, portanto, mais a ditadura é necessária. O conceito duma «liberalização» não pode, aliás, surgir senão nas civilizações políticas já familiarizadas com uma alternância de liberdade e de ditadura, isto é, de regimes baseados na lei e de outros fundados na força. Na tradição política da Europa Ocidental, os indivíduos que viviam sob um regime despótico conservavam a imagem duma sociedade democrática, se nem sempre por tê-la conhecido directamente, pelo menos por haverem lido a história grega e a romana, toda ela esquematizada como luta entre o despotismo e a liberdade. Todo o despotismo, do cesarismo ao nazismo, foi sempre considerado como perda duma liberdade prévia, sendo também exibido como uma libertação possível e apresentado como a imagem sublimada de um regime liberal anterior, seja sob a forma modesta dos privilégios comunais, seja de um parlamento provincial. (...)

O hábito de pensar neste contexto leva a considerar que em todas as sociedades autoritárias existe, também, um número suficiente de cidadãos para ver essa sociedade como autoritária e dirigentes sempre prontos a conceder o «restabelecimento» (o que é já um eufemismo) da liberdade de expressão, desde que a carne tenha baixado para um preço razoável ou que a ofensiva diplomático-militar em curso haja finalmente sido coroada de êxito. Isto é esquecer que se trata de sociedades nas quais nenhuma imagem histórica ou teórica, além da autoridade, pode servir ao cidadão como ponto de referência crítica e onde, por consequência, falta a elasticidade psicológica indispensável a uma «liberalização». Tal elasticidade, aliás, existe também nos dirigentes e nas sociedades onde a ditadura é encarada não como realidade única, mas como uma supressão doutras coisas, pois eles apenas pretendem dar a palavra aos cidadãos nos domínios e na medida em que estão convencidos de que isso não ameaçará a sua autoridade. (...) Não se vê, de forma alguma, o que um chinês de vinte anos poderia hoje em dia incluir no termo «liberalização», que para ele pode não ter outro significado que o de «revisionismo», isto é, crítica e oposição quaisquer que elas sejam. «Revolução cultural», expressao forjada por Estaline (o que parece já ter sido esquecido) e apenas retomada por Mao, só pode querer dizer uma coisa: esmagamento de toda a oposição e redução ao silêncio de toda a crítica. Ora, a causa que torna mau este sistema, repetimo-lo, não é de forma alguma de ordem estética ou moral, mas de ordem prática: uma sociedade que funciona assim terá forçosamente de fracassar, quanto mais não seja por não ser aceite como modelo por todos aqueles que conhecem outras. A diferença entre um Governo autoritário e um Governo democrático é que, no primeiro, só os factos em si próprios têm direito a falar, sendo por conseguinte necessário esperar pelas catástrofes para reconsiderar as orientações, enquanto, no segundo, é permitido antecipar intelectualmente os desastres e procurar remediá-los.

(...)

A história do movimento social na Europa e nos Estados Unidos, desde o início do século XIX, revela uma tendência para a socialização na sociedade liberal. As etapas do movimento operário são por de mais conhecidas para que as recordemos, mas devemos insistir num facto, a meu ver cheio de ensinamentos: é que o mais antigo sindicalismo europeu é o inglês, quer dizer, os modernos organismos de defesa e de conquista dos direitos operários foram concebidos e constituíram-se no próprio lugar onde primeiro surgiu o liberalismo político. Existe um elo de ligação entre a revolução eleitoral, a Reform Bill, de 1832, e a fundação, em 1833, da Trades Union, de Owen, primeiro sindicato operário da história. E há também um elo recíproco entre a união dos sindicatos (Trades Union Congress), em 1868, e a formação seguida da ascensão do Partido Trabalhista nos anos posteriores. (...) O sindicalismo inglês nem ao de leve considerou contra-revolucionário organizar uma formação política que lhe permitisse conquistar o Poder no quadro das instituições parlamentares e, por esse motivo, a maior parte das conquistas sociais específicas do movimento operário moderno foram realizadas em Inglaterra mais cedo e mais integralmente que em qualquer outra parte.

Bastaria este facto para indicar que as liberdades políticas constituem uma alavanca na luta pela igualdade económica. Com efeito, a evolução das sociedades liberais entre 1815 e 1970, com todas as suas paragens e retrocessos que se quiserem considerar, levou a uma erosão das desigualdades reais e a um reforço dos direitos do trabalho. Considerando qualquer dos países onde reinou, quer continuamente, quer a maior parte do tempo, uma democracia parlamentar, por mais «burguesa» que se queira considerá-la, e comparando a sua situação em 1850 e em 1950 ou em 1900 e em 1970, conclui-se que nao se trata, num caso e noutro, da mesma sociedade. Nem os direitos do trabalho em relação ao capital, nem os da mulher em relação ao homem, nem os da criança em relação ao adulto, nem os do empregado em relação ao patrão têm semelhança hoje com o que eram há apenas meio século. Que a democracia política caminha no sentido da democracia económica é um facto tão universalmente verificado que os fascismos não têm outra função que não seja suprimir a primeira para evitar a segunda. É sabido que a estratégia social dos regimes fascistas consiste, por um lado, em manejar a demagogia operária brandindo o paternalismo e o popularismo contra a «corrupção» burguesa e, por outro, em revogar os principais direitos: de reunião, de associação, de greve, de petição e de voto. Da mesma forma, nos países que conheceram este sistema, os trabalhadores não cometem o erro de assimilar a ditadura ao liberalismo, nem mesmo de preferir a primeira como proporcionando aos tácticos revolucionários contornos mais nítidos e mais satisfatórios para o espírito. Eles deixam essas galantarias aos visionários, cujo gosto pelos extremos é acompanhado, por vezes, por sólidas contas bancárias na Confederação Helvética. (...)

A revolução consiste em transformar a realidade. Os autênticos contra-revolucionários são aqueles que, em nome duma pureza revolucionária quimérica, afastam a ideia de qualquer transformação sob pretexto de que ela não é completa e se inscreve «no interior do sistema». Nestas condições, dever-se-ia ter recusado sempre toda e qualquer transformação. Quando, no tempo de Nero, foi adoptada a lei que permitia ao escravo recorrer aos tribunais contra o seu amo em caso de abuso deste, tal lei deveria, nestas circunstâncias, ter sido, prévia e imediatamente, posta de lado, visto inscrever-se «no interior do sistema». Não pressupunha ela a existência da escravidão? Do mesmo modo, deveríamos, na actualidade, impedir o alargamento das funções das comissões de empresa, mesmo que sejam para os trabalhadores o instrumento dum controlo dos benefícios reais e das orientações da economia, porque isto seria manobrar «no interior do sistema». Que esta lei e que estas comissões possam justamente ser um dos pontos de apoio tendentes à mudança do sistema, eis o que não toca ao de leve o espírito escolástico, habituado a considerar as coisas sob a forma de substâncias distintas, de entidades fixas, sem misturas – e isto, para cúmulo, em nome da história e da dialéctica.

Excertos do capítulo com o mesmo título da obra Ni Marx Ni Jésus: De La Seconde Révolution Américaine à La Seconde Révolution Mondiale (1970), do filósofo francês Jean-François Revel, na edição portuguesa da Livraria Bertrand (Nem Marx, Nem Jesus: A Revolução Imediata, 1977), com tradução de Maria Emília Mauhin.

Seleção de excertos: Pedro Almeida Jorge.

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