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Violência e Revolução

Jean-François Revel

Filosofia Política, Direito e Instituições, Direitos Civis e Privacidade, Sociologia, Excertos e Ensaios

Português

Se se considera a liberdade duma forma abstracta e irrealista, é-se igualmente levado a conceber da mesma forma o papel da violência, pois uma não pode definir-se sem a outra. Nos países onde a greve é legal, decretá-la significa utilizar uma arma conquistada no arsenal dos direitos e das liberdades e, naqueles onde ela o não é, representa recorrer à violência. A história das insurreições, dos motins e das guerras civis ensina que há transformações fundamentais que se operaram sem recurso à força, ou com muito pouca violência — na Inglaterra, por exemplo — e movimentos extremamente violentos que não provocaram qualquer transformação fundamental. Houve revoluções de opereta que mataram muita gente e outras, autênticas, que não fizeram correr sangue.

A violência será inseparável da revolução? Debate clássico este e, portanto, obscuro, pois, paradoxalmente, a repetição dos mesmos argumentos parece ter como efeito fazer recuar e deslizar as discussões até à base da encosta, em lugar de permitir a acumulação de provas e a utilização de resultados demonstrados. Uma das características mais extraordinárias da cultura na Europa da nossa época é que o fácil acesso à documentação, a simplicidade com que se encontram textos clássicos e se estuda a história estimula a realização de certas experiências e o nascimento de controvérsias entre os intelectuais e os cientistas. O volume dos conhecimentos, em lugar de fazer ganhar tempo, parece pôr em funcionamento um mecanismo inverso e provocar a amnésia, essa «ignorância que a ciência cria e engendra», essa propensão fatal para se partir novamente do zero e, mais fatal ainda, para ali se ficar. Ao mesmo tempo, algumas estereotipias, condenadas pelo passado, continuam a pesar, igualmente, sobre o presente, imagens parciais, separadas do seu contexto e dos seus resultados — a Comuna, o Outubro de 1917, a guerra revolucionária chinesa —, quanto basta para paralisar a invenção. Copia-se, imita-se e não se aproveitam os ensinamentos.

O erro mais frequente é o de confundir-se o meio com o fim. Por diferentes meios, chega-se a fins semelhantes, disseram Maquiavel e Montaigne. Acrescentamos que, pelo mesmo meio, chega-se a fins muito diferentes, até mesmo opostos.

A violência em si mesma não tem qualquer carácter revolucionário ou contra-revolucionário. Historicamente, ela foi mais uma arma entre as mãos da contra-revolução do que da revolução. Serviu mais para reprimir e oprimir que para libertar. Os três grandes estados de extrema-direita da Europa moderna — o fascismo mussolinista, o nazismo e o franquismo — tiveram por origem a violência em modalidades diferentes: o franquismo nasceu duma pura insurreição militar contra a legalidade estabelecida; o fascismo e o nazismo fizeram terrorismo e criaram bandos armados, mantendo-se no interior de um quadro legal, pouco a pouco esvaziado do seu espírito, não sem vasto apoio popular. O estalinismo, revolução invertida, manteve-se até hoje por meio da violência. A história oferece-nos muito mais exemplos de êxito da violência repressiva que da violência insurreccional.

Deve pois ser-se muito cauteloso quando se recomenda a acção ilegal contra o Poder estabelecido, pois ele tem geralmente grande tendência para infringir a legalidade quando é preciso desembaraçar-se dos seus adversários e, em regra, ele é de longe o que se encontra em melhor situação para tirar partido da operação. A violência não tem mais conteúdo revolucionário ou contra-revolucionário que um bisturi possui em si próprio conteúdo médico. lmaginar-se que é suficiente usar a violência de qualquer maneira para fazer progredir a revolução é o mesmo que supor-se que basta enterrar um bisturi, ao acaso, em qualquer região do corpo, para se obter uma cura milagrosa. Exercer uma actividade revolucionária é transformar a realidade, aproximando-a do modelo desejado, substituir o que existe. O que opera esta transformação é um meio revolucionário, nalguns casos violentamente, noutros não. Acresce que existem vários tipos de violência e como ela não é em si mesma revolucionária ou contra-revolucionária, também é falso falar-se sempre dela. Redigir um manifesto antigovernamental é acto insurreccional em certos países e banal ou legal noutros. A greve de zelo dos funcionários alfandegários franceses, em Maio-Junho de 1970, por exemplo, e considerada como acção violenta, embora consistisse apenas em aplicar rigorosamente os regulamentos em vigor. Como lhe chamar então se se tratasse de atirar bombas aos comboios ou de assaltar à mão armada o Eliseu? A referida greve paralisou, nas fronteiras, transportes rodoviários internacionais e fez perder muito dinheiro à industria e ao comercio, em França e nos países estrangeiros cujas economias dependem parcialmente de trocas com esta. Tocando num ponto sensível, os alfandegários franceses agiram mais eficazmente para a satisfação das suas reivindicações que se tivessem quebrado vitrinas. Além do que puseram em evidência o absurdo das barreiras alfandegárias na Europa Ocidental, favorecendo, desse modo, a evolução para uma Europa unida, sujeita a uma autoridade supranacional (que, pessoalmente, considero um fim revolucionário).

Vê-se, portanto, que a violência não é necessariamente a ilegalidade. Mais ainda: quanto mais legalidade existe numa sociedade, isto é, quanto mais esta se encontra impregnada dos resultados da primeira revolução mundial, mais subtil terá de ser a violência, mais bem escolhidos os alvos a visar e mais ela deve ter por objectivo as articulações autênticas. Quanto mais se associar às leis, mais eficaz será, porque poderá obter um máximo de vantagens expondo os flancos a um mínimo de medidas de repressão. É o que ficou claramente demonstrado por meio da acção de Martin Luther King nos Estados Unidos, pois a sua «não violência» era, apenas, na realidade, uma forma de violência. Boicotar os transportes públicos duma cidade inteira e acção muito mais «violenta» que esbofetear um agente da polícia na Place de la Concorde. Existe uma não-violencia aparente mais violenta do que brutalidades espectaculares e a violência politica não se traduz, somente, em socos e tiros de espingarda. A insurreição terá tanto mais probabilidades de êxito quantos forem os trampolins legais (aquisições preciosas que é preciso vigiar cuidadosamente) que lhe sirvam de ponto de partida — e igualmente de bases de retirada em caso de derrota, o que lhe evitará ser completamente aniquilada se o adversário triunfar. A estratégia é preferível à tragédia, mas, para se aplicar este princípio, é preciso exactamente que o dirigente revolucionário não seja um actor de teatro, mas sim um intérprete impessoal dos homens que representa, ocupando-se mais dos interesses destes que dos seus próprios.

Martin Luther King foi o exemplo completo do herói carismático, esse chefe cuja autoridade nasce da espontaneidade popular e cuja iniciativa vem da sua receptividade às necessidades colectivas. Mas foi-o no sentido mais nobre da expressão: nunca demagogo, sempre perto do pequeno povo negro cujos sofrimentos sabia transformar em energia, mais se apagava quanto mais se distinguia. Evitando todo o culto da personalidade, afastando todo o autoritarismo no seio dos movimentos que dirigia, teve uma vida política sem fazer carreira política. Contudo, nem por isso deixou de ser um homem de acção. O júri que fez dele o mais jovem Prémio Nobel da Paz de quantos houve — tinha trinta e cinco anos — não recompensava apenas um coração generoso. Em dez anos, King conseguira levar à votação, ou fazer respeitar, diversas leis fundamentais para a comunidade negra americana. Não contente em suscitar essas metamorfoses morais sem as quais nao pode haver revolução, revelou-se também um estrategista seguro na condução das manifestações surgidas na luta dos negros no decorrer desses anos, desde a boicotagem dos autocarros de Montgomery, em 1955, ou a marcha sobre Washington, em 1957, até à grande concentração de Chicago, em 1966. O assassino profissional (ou os seus patrões, ainda não identificados) que abateu Martin Luther King, em Abril de 1968, em Memphis, não visava apenas suprimir um orador e um animador anti-racista, mas toda uma concepção política.

Esta apoiava-se numa análise coerente: se os negros, pensava King, pretendem alcançar a integração na igualdade, não devem começar por destruir as instituições e violar os princípios constitucionais cujos benefícios integrais reclamam para si próprios. Pelo contrario, têm de colocar constantemente os brancos perante dilemas em que lhes seja impossível iludir a lei, e que os colocam na obrigação de escolher entre a ilegalidade e a igualdade.

(...)

Este tipo de acção pressupõe duas condições: um forte consensus constitucional e mass media livres. As «marchas da liberdade», os discursos e as reuniões públicas não teriam sido suficientes sem a televisão, que os difundia atraves de nove milhões de quilómetros quadrados. Quando King, certo dia, condenado injustamente a uma pena ligeira, recusou-se de propósito a pagar as custas, para ser preso, foi o próprio presidente do tribunal quem, francamente aborrecido, decidiu liquidá-las, pois todas as cadeias de TV aguardavam a saída do líder à porta do palácio de justiça.

(...)

Quanto mais democrática é uma sociedade, mais fácil se torna à violência manifestar-se, mas mais difícil é atribuir-se-lhe eficácia revolucionária. Do mesmo modo é um nível de tolerância elevado, isto é, se a lei prevê e autoriza formas de oposição, reduz o rendimento político da violência ilegal. O melhor rendimento obtém-se por uma utilização dura dos meios legais, à qual se junta um acréscimo de violência que se detém no ponto onde provocaria uma reacção mais violenta que a acção. Mas se é verdade que é nas sociedades democráticas que a dosagem entre legalidade e violência se torna mais delicada, e aí também, e só aí, que os resultados dessas acções se mantêm quando a dosagem é óptima.

O que não significa que as transformações revolucionárias possam alcançar-se unicamente por via parlamentar, no sentido vasto do termo, por negociações e acordos entre vencidos e vencedores. Esta imagem idílica é um alvo muito fácil para os críticos do «reformismo» e do «liberalismo», se por estas palavras se entender simplesmente que é preciso esperar da boa vontade dos beneficiados o abandono dos seus privilégios. lmagem esta tão grosseira quanto a da sua antítese, a do «grande dia» em que seria suprimido, dum só golpe, o capitalismo. Este nunca foi abolido duma só vez, a não ser nos países onde nao existia...

Não, as relações entre grupos sociais são, efectivamente, violentas, de maneira latente ou activa, tanto por parte dos dominadores contra os dominados como do lado destes na sua luta contra a dominação. Mas é falso dizer-se que toda a conquista parcial é uma aceitação do princípio da dominação. Se assim fosse, nós viveríamos ainda em escravidão. O erro comete-se nos dois sentidos: aquilo que distingue a direita da extrema-direita e os conservadores dos ultras é que os segundos vêem na mais pequena concessão a derrocada imediata de todo o sistema reinante. Do ponto de vista esquerdista, não existe a menor diferença entre Blum e um nazi; na opinião de Charles Maurras, Blum e Trotski são iguais. Para um nazi, Roosevelt é um comunista; para um comunista, é uma versão sorridente de Hitler.

É igualmente falso dizer-se que a única forma de violência é o terrorismo, a revolta ou a guerrilha. Em muitos casos, estes métodos podem ter mais efeitos negativos que positivos. O que é exacto é que a dominação só recua quando a tal é obrigada. Quanto às maneiras de consegui-lo, sao inúmeras e variam conforme as circunstâncias.

(...)

A validade de um método revolucionário não deve ser medida apenas em função da grandeza da injustiça que se combate, mas também pela probabilidade do resultado que se conta obter.

Enfim, e sobretudo, uma revolução só em pequena escala é produto de minorias activas; ela é, e deve ser, para produzir frutos duradouros, o ponto de junção de transformações múltiplas na própria massa duma sociedade. O retrato da revolução feita por um punhado de conspiradores faz-se do precedente russo, o qual está longe de ser comprovativo, mas somente lisonjeiro para com o narcisismo dalguns «revolucionários», que se crêem peritos, satisfazendo assim o seu gosto do monopólio e do vedetismo. Os «chefes» falam gostosamente da espontaneidade das massas, mas condenam, ou aprovam, a orientação dessa espontaneidade segundo critérios exclusivamente pessoais. Assim, reprovam o povo quando ele parece desejar reformas que não merecem a honra da sua aquiescência e os trabalhadores são considerados como alienados logo que se afastam dos esquemas impostos. Esta reintrodução do poder das elites na revolução é, na Europa, uma das principais causas do esgotamento da inspiração revolucionária. (...) Ora, o destino da revolução não é agradar aos doutores da lei nem realizar profecias. Quem diz revolução diz, por definição, acontecimento novo que ainda não ocorreu, surgido por outras vias que não os canais históricos conhecidos. Quem diz revolução refere-se ao que não pode pensar-se, nem sequer ver-se, utilizando conceitos antigos. A matéria-prima é o primeiro triunfo do espírito de revolução, é a capacidade de inovar, é a palavra dada à imaginação colectiva contra as sentenças autoritárias e é também a mobilidade em relação ao passado e à rapidez na criação. Neste sentido, existe hoje mais espírito de revolução nos Estados Unidos, mesmo entre as direitas, do que em qualquer outra parte, até no seio das esquerdas.

Excertos do capítulo com o mesmo título da obra Ni Marx Ni Jésus: De La Seconde Révolution Américaine à La Seconde Révolution Mondiale (1970), do filósofo francês Jean-François Revel, na edição portuguesa da Livraria Bertrand (Nem Marx, Nem Jesus: A Revolução Imediata, 1977), com tradução de Maria Emília Mauhin.

Seleção de excertos: Pedro Almeida Jorge.

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