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2021-04-07

Por Derek Lowe, Instituto +Liberdade

Os Mitos da Produção de Vacinas

Não há “dúzias de empresas prontas” para produzir vacinas e “acabar com esta pandemia”.

Nos últimos dias, surgiu a pergunta sobre o porquê da não inclusão de mais empresas farmacêuticas na produção de vacinas. A controvérsia deveu-se principalmente a este Tweet:

A escassez de vacinas não precisa de existir. A Pfizer e a Moderna podiam partilhar a sua fórmula com as dúzias de outras empresas farmacêuticas que se encontram prontas para produzir as suas vacinas e acabar com a pandemia.

— James Hamblin (@jameshamblin) 2 de fevereiro de 2021

O problema é que, a meu ver, isso é simplesmente falso. Não há “dúzias de outras empresas farmacêuticas” que “se encontram prontas” para produzir estas vacinas mRNA. Para mim, tal afirmação revela uma falta de conhecimento sobre estas vacinas e sobre a forma como são produzidas. Apesar de eu não ser um profissional do fabrico de fármacos, estou ligado à investigação farmacêutica em geral. Por isso, gostaria de dar a minha ajuda para a eliminação deste erro, e adiante incluo as razões porque não é possível, de repente, lançar dúzias de empresas na produção das vacinas da Pfizer/BioNTech e da Moderna.

A primeira coisa que é preciso perceber é que não se trata de vacinas tradicionais. E essa é a razão porque elas foram desenvolvidas tão rapidamente. A tecnologia de produção das vacinas mRNA foi desenvolvida ao logo dos últimos 20 ou 25 anos, e, pelo que vejo (e como nunca me canso de referir), tivemos bastante sorte em que muitos dos seus problemas tenham sido (muito recentemente) ultrapassados, mesmo antes do aparecimento deste surto pandémico. Há cinco anos atrás não nos teria simplesmente sido possível a nós percorrer o caminho desde o sequenciamento à produção da vacina em menos de um ano. E com este “nós” quero dizer tanto o “nós na indústria bio-farmacêutica” como o “nós humanos”.

(...)

 

OK, vejamos as actuais cadeias de fornecimento. A peça mais informativa que já vi sobre isto é de Jonas Neubert – já a recomendei antes, e este é absolutamente o momento de recomendá-la de novo. Devo também recomendar este detalhado artigo do Washington Post, que se foca na vacina da Pfizer/BioNTech, e este outro na KHN, sobre os engarrafamentos de produção em geral. Adicionalmente, o leitor deveria também ler esta sequência de tweets de Rajeev Venkayya, que sabe do que fala quando se trata do fabrico de vacinas. Todos estes abordarão detalhes sobre os quais nem sequer me vou pronunciar hoje.

Não é da minha natureza, uma vez que eu próprio sou um investigador focado nos estágios iniciais da investigação de medicamentos, mas vou colocar totalmente de lado todas as questões de I&D por detrás dos vários componentes e tratar isto simplesmente como um processo produtivo que caiu do céu na sua forma final. Resumindo um enorme conjunto de informação e detalhes, temos os seguintes passos de produção simplificados:

Passo 1: Produzir a cadeia apropriada do ADN, contendo a sequência necessária para transcrever para o mRNA. Isto é geralmente realizado em culturas bacterianas.

Passo 2: Produzir esse mRNA a partir do nosso modelo de ADN, utilizando enzimas num bio-reactor.

Passo 3: Produzir os lípidos necessários para a formulação química. Alguns são absolutamente comuns (como o colesterol), mas os essenciais não o são de todo (como veremos adiante).

Passo 4: Juntar o mRNA e os lípidos em nano-partículas de lípidos (LNPs). Acabei de despachar o maior obstáculo tecnológico em todo o processo, e adiante perceberão como isto é tão importante.

Passo 5: Misturar os LNPs com todos os demais componentes da formulação química (tampões de fosfato, solução salina, sacarose, etc. ...) e enchê-los em frascos.

Passo 6: Colocar esses frascos em tabuleiros, que se colocam em embalagens, que se colocam em caixas, arrumadas em caixotes, e se carregam em camiões que as transportam para aviões.

(...)A produção do ADN no Passo 1 não é muito difícil. (...)isto é o que as empresas de bio-farmacêutica são especializadas em fazer, e há uma quantidade de pessoas que o sabem fazer. Dito isto, um bom número dessas pessoas já está ocupada a fazer precisamente isso somente para as vacinas, mas se for necessário produzir mais deste ADN, certamente podemos produzir mais.  

Mas na realidade não precisamos. Não é este o passo que empata o processo. Tal como o Passo 2, a transcrição para o mRNA, não o é. A Pfizer e a BioNTech fazem isto em Andover, no Massachusetts, e nas instalações da BioNTech na Alemanha. Elas têm fábricas em Idar-Oberstein (uma cidade que me lembro de visitar, debaixo da fria chuva de um fim-de-semana de 1988, durante o meu pós-doutoramento!), e no outono passado compraram outra fábrica em Marburg, que está agora a ser renovada para esta produção. O passo de produção de mRNA da Moderna também é tratado na Suíça, pela Lonza.   Ora, isto não é, de todo, tão comum como um qualquer processo industrial, porque só há relativamente pouco tempo é que se começaram a tratar as espécies de RNA como substâncias medicamentosas propriamente ditas, merecedoras de uma produção em escala. Se tivesse de pedir a alguém para me produzir mais uns sacos de RNA à medida, poderia recorrer à Alnylam (que tem uma fábrica em Norton, no Massachusetts, embora de certeza a sua capacidade produtiva esteja a ser usada para os seus próprios fármacos!), mas fazê-lo não aumentaria a quantidade de unidades de vacina a sair no outro extremo do processo. A produção de RNA está de facto mais próxima do que o primeiro passo de ser quem empata o processo, mas não é nada quando comparada com os verdadeiros estrangulamentos que se seguem.

Passemos então aos lípidos do Passo 3. Estes não têm de ser produzidos em sequência como no caso da etapa do DNA/RNA – os lípidos necessários para a formulação vêm de um processo produtivo  totalmente diferente. Como o artigo do Neubert lhe mostrará, a Pfizer e a BioNTech estão a obter todos esses lípidos de uma empresa britânica, a Croda, com produção provavelmente em Alabaster, no Alabama, que (ao contrário de Idar-Oberstein) tenho a certeza de não ter visitado. Ora, cada uma destas vacinas carece de uns lípidos peculiares, com grupos de carga eléctrica positiva; esta é uma componente crucial da formulação. Não são certamente componentes triviais de produzir em escala, mas ainda assim são pequenas moléculas de estrutura relativamente simples. Tenho a certeza que barris destas coisas não estão empilhados nas fábricas por falta de procura, mas também não acredito que sejam o reagente limitador da produção. Se tivesse necessidade, poderia certamente envolver alguns outros fabricantes neste processo.

Vou saltar para os Passos 5 e 6. Estes estão, sem dúvida, a avançar a boa velocidade, mas são funções tradicionais de uma empresa farmacêutica (ou de qualquer fabricante). É certo que o enchimento e acabamento de embalagens farmacêuticas, a esta escala, reduz o número de players capazes de se envolver no processo, quando comparado p. ex. com o enchimento de latas de atum. E esses players já estão envolvidos. A Pfizer está a fazê-lo em Kalamazoo e em Puurs, na Bélgica, e a BioNTech está a fazê-lo em vários locais na Alemanha e na Suíça, tanto em instalações próprias como através de pelo menos duas empresas sub-contratadas. A Moderna, entretanto, subcontrata estes processos a alguns dos maiores fornecedores  nos EUA e na Europa: Catalent, Rovi e Recipharm. Todos nesta componente do negócio sabem, há meses, que um Grande Esforço de Vacinação estava a chegar, e têm vindo a aumentar a produção de embalagens, a acelerar todas as linhas de produção disponíveis, e a assinar acordos por todo o lado com quem quer que disponha de qualquer tipo de esforço de vacinação avançado.

Ah! Mas agora voltamos ao Passo 4. Como diz Neubert, “Bem vindos ao engarrafamento!” Transformar uma mistura de mRNA e um conjunto de lípidos numa mistura bem definida de nano-partículas sólidas com encapsulamento consistente de  mRNA, bom, essa é a parte difícil. A Moderna parece estar a fazer internamente este passo, embora os detalhes sejam escassos, e a Pfizer/BioNTech parece estar a fazê-lo em Kalamazoo, no Michigan, e provavelmente também na Europa. É quase certo que todos terão de usar algum tipo de dispositivo microfluídico especialmente construído para o efeito – ficaria bastante surpreendido se o resultado final pudesse ser obtido sem recurso a esta tecnologia. Os microfluidos (uma área de investigação bastante activa há já alguns anos) envolvem um fluxo de líquidos que passam através de canais muito pequenos, permitindo misturas e timings precisos numa escala muito pequena. A essa escala os líquidos comportam-se de maneira bastante diferente do que quando se despejam em tambores ou são bombeados para reactores (o que normalmente ocorre na indústria farmacêutica mais tradicional). É essa a ideia geral. O meu palpite pessoal quanto ao que tal “Máquina de Vacinas” envolve é um extenso número de câmaras de reacção muito pequenas, a trabalhar em paralelo, e que recebem fluxos igualmente pequenos e rigorosamente controlados de mRNA e dos vários componentes lipídicos. Terão de se controlar as velocidades dos fluxos, as concentrações, as temperaturas, e quem sabe o que mais, e o leitor pode ter a certeza que também serão críticas a dimensão e forma das câmaras, bem como a dimensão dos canais.

Estas serão máquinas desenhadas para fins especiais, e se se perguntar a outras empresas farmacêuticas se por acaso têm uma mesmo à espera, a resposta será “Claro que não.” Isto não se assemelha de todo a um processo tradicional de produção de medicamentos. E esta é a razão fundamental porque não se pode simplesmente chamar aquelas “dúzias” de outras empresas e pedir-lhes que parem a sua própria produção para produzir as vacinas de mRNA. Não há dúzias de empresas que fabriquem modelos de ADN à escala necessária. Não há definitivamente dúzias de empresas que possam produzir o RNA em quantidades suficientes. Mas, mais importante, acredito que se possa contar com uma mão o número instalações  capazes de produzir as nano-partículas lipídicas que são essenciais. Isso não significa que não se possam produzir mais máquinas, mas eu apostaria que a Pfizer, a BioNTech, a Moderna (e também a CureVac) terão já largamente reservado a capacidade de produção para esse tipo de expansão.

E não nos esqueçamos: o resto da indústria farmacêutica também já se está a mobilizar. A Sanofi, um dos grandes intervenientes no mercado das vacinas (e com interesse próprio no mRNA), já anunciou que vai auxiliar a Pfizer e a BioNTech. Mas olhem para os prazos: esta é uma das maiores e mais bem preparadas empresas que se poderia juntar ao esforço de produção de vacinas, e mesmo assim não terá demonstrará impacto até Agosto. Não está claro em que fases a Sanofi estará envolvida, mas o enchimento e o embalamento estarão certamente abrangidos (não há detalhes sobre se a produção das LNP estará ou não). E a Novartis anunciou também um contrato para usar uma das suas instalações na Suíça para enchimento e acabamento, com produção pronta em meados deste ano. A Bayer está a colaborar com a candidata da CureVac.

Tudo isto são boas notícias, mas estão muito longe do tweet que gerou toda esta análise. Não há “dúzias de empresas que se encontram prontas” para produzir vacinas e “acabar com esta pandemia”. São os mesmos (poucos) big players que já todos conhecemos, e estes também não estão propriamente sentados à espera. Afirmar o contrário é uma fantasia; é melhor ficarmo-nos pelos factos.

[Análise originalmente publicada na ScienceMag. Tradução de Manuel Moreira da Cunha.]

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