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As Origens Intelectuais e Morais do Socialismo

Jean-François Revel

História, Filosofia Política, Direito e Instituições, Socialismo e Comunismo, Autoritarismo e Totalitarismo, Excertos e Ensaios

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Se o nazismo e comunismo cometeram quer um, quer o outro genocídios comparáveis na sua amplitude, senão mesmo nos seus pressupostos ideológicos, tal não se fica a dever a uma qualquer convergência contranatura ou coincidência fortuita devidas a comportamentos aberrantes. Antes pelo contrário, ocorre a partir de princípios idênticos, profundamente enraizados nas suas respectivas convicções e no seu modo de actuar. O socialismo não é mais nem menos «de esquerda» que o nazismo. Se o ignoramos com frequência, é, como diz Rémy de Gourmont, porque quando «um erro cai no domínio público nunca mais daí sai. As opiniões transmitem-se hereditariamente; o que acaba por fazer a História.»

Se toda uma tradição socialista que data do século XIX preconizou os métodos que mais tarde serão tanto os de Hitler como os de Lenine, Estaline ou Mao, o inverso é verdadeiro: Hitler sempre se considerou como um socialista. Ele explica a Otto Wagener que os seus desacordos com os comunistas «são menos ideológicos que tácticos»[1]. O problema dos políticos de Weimar, declara ele ao mesmo Wagener, «é nunca terem lido Marx». Aos desenxabidos reformistas da social-democracia, ele prefere os comunistas. E sabemos que estes Ihe pagaram com fartos juros ao votarem nele em 1933. O que o opõe aos bolcheviques, acrescenta ele ainda, é sobretudo a questão racial. No que se enganava: a União Soviética sempre foi anti-semita. Digamos que a «questão judaica» (apesar do panfleto de Marx publicado sob este título contra os judeus) para os soviéticos não se encontrava, como para Hitler, no primeiro patamar das prioridades. Em tudo o mais, a «cruzada antibolchevique» de Hitler foi uma ampla fachada que mascarava uma conivência com Estaline que já remontava, sabêmo-lo hoje, anteriormente ao Pacto Germano-Soviético de 1939.

Portanto, não o esqueçamos, tal como, noutras paragens, o fascismo italiano, o nacional-socialismo alemão via-se e pensava-se, à semelhança do bolchevismo, como uma revolução, uma revolução antiburguesa. «Nazi» é abreviatura de «Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães». No seu Omnipotent Government, Ludwig von Mises, um dos grandes economistas vienenses emigrados em virtude do nazismo, diverte-se a cotejar as dez medidas urgentes preconizadas por Marx no Manifesto Comunista (1847) com o programa económico de Hitler. «Oito destes dez pontos, nota ironicamente Von Mises, foram postos em execução pelos nazis com um radicalismo que teria encantado Marx.»

Igualmente em 1944, Friedrich Hayek, na sua Road to Serfdom, consagra um capítulo às «raízes socialistas do nazismo», observando que os nazis «não se opunham aos elementos socialistas do marxismo, mas aos seus elementos liberais, ao internacionalismo e à democracia». Com justa intuição, os nazis compreenderam que não existe socialismo de parte inteira sem totalitarismo político.

(…)

Os nacionais-bolchevistas, dos quais o representante mais ilustre foi Ernst Jünger, contribuíram para alimentar a ideologia hitleriana propriamente dita ao se apoiarem no modelo leninista. «Com Lenine», escreve um dos intelectuais desta corrente, Friedrich Lenz, «surgiu um chefe de Estado que, certamente, nega a ideia de Estado, mas que a concretiza na prática com uma frieza e perseverança inauditas, conforme qualquer observador se pode dar conta. Ele ligou o marxismo russo ao destino do seu Estado.» Um outro «pensador» nacional-bolchevique, Ernst Niekisch, aprovou, juntamente com todos os seus amigos desse grupo, a colectivização forçada levada a cabo pelos bolcheviques russos, dado ter compreendido que a colectivização é o meio mais rápido de construir o «Estado total» que estes filósofos alemães julgavam indispensável à reorganização do seu país. Niekisch acrescenta:

«O bolchevismo russo é até agora a revolta mais radical contra as ideias de 1789. A Rússia não é individualista. Ela não é liberal. Coloca a política acima da economia. Não é parlamentar, nem democrática, nem "civilizadora". O bolchevismo recusou o humanismo e os valores "civilizacionais". As formas exteriores dessa desordem, por vezes pintadas de ocidentalismo, não podem enganar quanto ao conteúdo "bárbaro e asiático".»

Como no comunismo, o «Estado total» pretende apoiar-se sobre a liquidação do capitalismo privado. No ponto décimo primeiro do Programa Nacional-Socialista de 1920, Hitler anuncia «a abolição dos lucros obtidos sem trabalho e sem esforço». Acreditaríamos estar a ouvir Mitterrand colocando o ferrete «naqueles que enriquecem a dormir».

(…)

Nada se compreende da querela sobre a afinidade entre nazismo e comunismo se perdermos de vista que eles se assemelham não somente nas suas consequências criminosas, mas também nas suas origens ideológicas. São primos germânicos intelectuais.

Portanto, todos os regimes totalitários têm em comum ser ideocracias: as ditaduras da ideia. O comunismo assenta sobre o marxismo-leninismo e o «pensamento de Mao». O nacional-socialismo assenta sobre o critério da raça. A distinção que estabeleci anteriormente entre totalitarismo directo, que anuncia de imediato e abertamente o que pretende alcançar, como no caso do nazismo, e o totalitarismo mediatizado pela utopia, que anuncia o contrário daquilo que fará, como o comunismo, torna-se então secundária, pois o resultado, para aqueles que lhes estiveram sujeitos, é nos dois casos o mesmo. A nota fundamental, nos dois sistemas, é que os seus dirigentes, convencidos de serem os detentores da verdade absoluta e de comandarem o desenrolar da História, se sentem no direito de destruir os dissidentes, reais ou potenciais, raças, classes, categorias profissionais ou culturais, que lhes pareça entravar, ou que um dia poderão vir a entravar, a execução do seu desígnio supremo. Esta é razão por que querer distinguir entre totalitarismos, conferir-lhes diferentes atributos em função dos desvarios das suas respectivas superstruturas ideológicas em lugar de constatar a identidade dos seus verdadeiros comportamentos, é bem estranho, por parte dos «socialistas» que deviam ter lido Marx com mais atenção. Diz-se que não se julga uma sociedade segundo a ideologia que lhe serve de pretexto, da mesma forma que também não se julga uma pessoa de acordo com a opinião que ela tem de si mesma.

Adolf Hitler, como bom conhecedor, foi dos primeiros a perceber as afinidades entre comunismo e nacional-socialismo. Portanto, ele não ignorava que uma política deve ser julgada pelos seus actos e pelos seus métodos, não segundo os berloques oratórios ou os pompons filosóficos que a rodeiam. Ele afirma a Hermann Rauschning, que o relata em Gespräche mit Hitler (Conversas com Hitler):

«Não sou apenas o vencedor do marxismo... sou o seu realizador. Aprendi muito com o marxismo, e não procuro escondê-lo, (…) O que me interessou e me instruiu nos marxistas são os seus métodos. Agarrei muito boamente e a sério aquilo que timidamente essas almas de pequenos lojistas e dactilógrafas tinham pensado. Todo o nacional-socialismo está aí contido. Olhai-o de perto: as associações operárias de ginástica, as células de empresa, os desfiles maciços, as brochuras de propaganda redigidas especialmente para a compreensão das massas. Todos estes novos métodos da luta política foram quase inteiramente inventados pelos comunistas. Só tive que deles me apossar e desenvolvê-los e assim encontrei o instrumento de que tínhamos necessidade...»

A ideocracia extravasa amplamente a censura exercida pelas ditaduras comuns. Estas exercem uma censura principalmente política ou sobre o que pode ter incidências políticas. Acontece, no entanto, as democracias fazerem o mesmo, como aconteceu em França durante a Guerra da Argélia, tanto na Quarta República como na Quinta. A ideocracia visa muito mais longe, visa suprimir, e disso tem necessidade para sobreviver, todo o pensamento oposto ou exterior ao pensamento oficial, não somente político e económico, mas em todos os domínios: filosófico, artístico, literário e mesmo científico. A filosofia, evidentemente, não pode ser para um totalitário outra coisa que não seja o marxismo-leninismo, o «pensamento maoísta» ou a doutrina de Mein Kampf. A arte nazi substitui-se à arte «degenerada» e, paralelamente, o «realismo socialista» dos comunistas entende torcer o pescoço à arte «burguesa». A aposta mais arriscada da ideocracia, e que é bem demonstrativa do contra-senso, recai apesar de tudo sobre a ciência, à qual é recusada qualquer autonomia. Recordemos o caso de Lyssenko na União Soviética. Este charlatão aniquilou, de 1953 a 1964, a biologia no seu país, despediu toda a ciência moderna de Mendel a Morgan, acusando-a de «desvio fascista da genética», ou ainda «trotskista-bukahrinista da genética». A biologia contemporânea cometia, com efeito, a seus olhos, o pecado de contraditar o materialismo dialéctico, de ser incompatível com a dialéctica da natureza segundo Engels, que, conforme vimos, afirmava ainda, no Anti-Dühring, vinte anos depois da publicação de A Origem das Espécies, de Darwin, a sua crença na hereditariedade dos caracteres adquiridos. Sustentado, ou melhor dizendo, fabricado pelos dirigentes soviéticos, Lyssenko tornou-se presidente da Academia das Ciências da URSS. Aí fez expulsar os autênticos biólogos, quando não os fez deportar ou fuzilar. Todos os manuais escolares, todas as enciclopédias, todos os cursos universitários foram expurgados em benefício do lyssenkismo, o que, além disso, teve consequências catastróficas para a agricultura, já bastante mal de saúde após a colectivização estalinista das terras. A burocracia impunha efectivamente em todos os kolkhozes a «agrobiologia» lyssenkista, proscrevendo os adubos, adoptando o «trigo fendido» dos faraós, o que fez cair para metade o rendimento. Foram proscritos os híbridos, pois, perorava Lyssenko, era notório que uma espécie se transformava espontaneamente noutra e que não havia necessidade de cruzamentos. Estas tolas elucubrações deram o golpe de misericórdia a uma produção já esterilizada pelo absurdo do socialismo agrário. Tornaram irreversível a fome crónica, ou a «penúria controlada» (no dizer de Michel Heller), que acompanhou a União Soviética até à sua queda.

No entanto, o essencial a reter do lyssenkismo, é que a ideocracia se suicida se não subordina toda a vida do espírito, compreendendo-se nela a ciência, à política.

(…)

O critério extracientífico da verdade científica para os nazis decorre do mesmo esquema mental, com a pequena diferença de que para eles esse critério é a raça em lugar da classe. Mas as duas abordagens são intelectualmente idênticas na medida em que ambas negam a especificidade do conhecimento enquanto tal, em benefício da supremacia da ideologia.

Em Hitler m'a dit, livro surgido em 1939, Hermann Rauschning relata a propósito deste assunto as seguintes considerações do chanceler alemão:

«A verdade não existe, seja no domínio da moral seja no da ciência. A ideia de uma ciência despojada de toda a ideia preconcebida só pode ter nascido na época liberal: ela é absurda. A ciência é um fenómeno social. (...) O refrão da "objectividade da ciência" não é mais do que um argumento inventado pelos queridos professores. (...)»

Notaremos, uma vez mais, a diferença, mais fenomenológica do que ontológica, entre totalitarismo utópico e totalitarismo directo. Enquanto os comunistas, querendo eles também subjugar o conhecimento ao poder, o fazem em nome de uma pretensa verdadeira ciência da qual só eles têm a chave, o ditador nacional-socialista, pelo contrário, decreta sem fingimentos supérfluos que a verdade não existe e, portanto, pertence ao poder defini-la, ou, pelo menos fazer com que ela se lhe subordine. Ele prossegue:

«Aquilo a que chamam a crise do saber, é simplesmente o facto de esses senhores começarem eles mesmos a darem-se conta de que a sua "objectividade" e a sua "independência" os conduziram a um beco sem saída. A questão elementar que é necessário colocar antes de encetar a mais pequena das actividades científicas é: quem quer saber alguma coisa, quem se quer orientar no mundo que o rodeia? A resposta é então evidente: não pode aí existir ciência a não ser em relação a um tipo humano preciso, a uma época determinada. Existe na realidade uma ciência nórdica e uma ciência nacional-socialista, e elas devem opor-se à ciência judaico-liberal, que, aliás, não cumpre já a sua função e está em vias de se destruir a si mesma.»

De passagem, salientaremos que esta explicação da pretensa «verdade» científica pelas origens sociais ou geográficas e essa recusa de lhe reconhecer uma «objectividade» que lhe seria própria, corresponde exactamente à tese de vários filósofos ditos «pós-modernos» do fim século XX. É assim que Bruno Latour escreve a propósito de Einstein: «A teoria da relatividade é social de parte a parte.» Melhor ainda: a verificação experimental das leis depende do sexo do experimentador, segundo Luce Irigaray no seu livro Le sujet de la science est-il sexué?

O Estado totalitário, ao querer-se como o único produtor cultural, tem, por este facto, um inimigo pessoal que os seus porta-vozes não cessam de denunciar: o indivíduo. Na sua célebre conferência, Da Liberdade dos Antigos Comparada com a dos Modernos, Benjamin Constant acreditava poder saudar, em 1819, a entrada do animal político na era da independência privada, e definir a cidadania moderna como sendo a garantia da liberdade individual. Ora, muito pelo contrário, no mesmo momento, a humanidade penetrava num ciclo de crescimento ininterrupto do Estado, nele compreendidas as democracias. Quanto aos regimes totalitários, cujos precursores intelectuais mais recentes se repartem ao longo do século XIX, eles terão por primeira obsessão o aniquilamento completo do indivíduo.

Desde 1840, Pierre-Joseph Proudhon, o farol do socialismo «libertário», proclama que «fomentar o individualismo, é preparar a dissolução da comunidade». Em Qu'est-ce que la propriété?, Proudhon sublinha, todavia bastante bem, a interdependência da propriedade privada, do liberalismo e do individualismo, mas propondo-se esmagá-los de uma assentada. Curioso libertário... Benito Mussolini, formado, como se sabe, no socialismo, durante toda a primeira parte da sua vida política, e mesmo dentro da ala esquerda do Partido Socialista Italiano, estabeleceu com lucidez a mesma conexão entre o liberalismo e o individualismo. Em O Fascismo, em 1929, ele exprime-se sem embaraços sobre esta questão: «O princípio segundo o qual a sociedade não existe a não ser para o bem-estar e a liberdade dos indivíduos que a compõem não parece estar de acordo aos planos da natureza. Se o século XIX foi o do indivíduo (liberalismo significa individualismo), pode pensar-se que o actual é o século colectivo.»

Ninguém ignora que Karl Marx, como o fará, no século seguinte, o seu discípulo Lenine, preconizava a supressão do Estado como forma de emancipação do indivíduo. Ninguém ignora também, e esta variante já nos é, portanto, familiar, que o propósito do totalitarismo utópico, diferentemente do totalitarismo directo, é realizar o contrário do seu programa em nome desse mesmo programa, e nomeadamente instaurar a tirania em nome da liberdade. Se foi possível descrever a sociedade liberal como sendo «o direito sem o Estado» (Cohen-Tanugi, 1985), a sociedade socialista é em mais alto grau o Estado sem o direito. Também Marx é coerente consigo mesmo quando, em 1843, em A Questão Judaica, fulmina os direitos do homem: «Nenhum dos pretensos direitos do homem vai além do homem egoísta, do homem tal como é membro da sociedade burguesa, o que significa um indivíduo separado da comunidade, unicamente preocupado com o seu interesse pessoal e obedecendo ao seu arbítrio privado.»

Encontraremos sem surpresa a mesma coerência filosófica em Adolf Hitler, para quem a ingratidão dos pensadores socialistas actuais é das mais chocantes. Hitler confia a Otto Wagener, no livro de entrevistas atrás mencionado: «Agora que a idade do individualismo terminou, a nossa tarefa é encontrar o caminho que conduza do individualismo ao socialismo sem revolução.» Marx e Lenine, acrescenta o chanceler, perceberam bem qual era o objectivo a atingir, mas escolheram o caminho errado. Um nacional-socialista eminente, Richard Walther Darré, prolonga esta meditação ao insistir na ideia de que a «teoria política judaica» esteve sempre «orientada para o interesse individual, enquanto o socialismo de Adolf Hlitler se encontra ao serviço do conjunto da sociedade.»

Esta associação delirante entre judaísmo, individualismo e capitalismo motiva os arrotos anti-semitas de Karl Marx, no seu ensaio A Questão judaica (1843). Ensaio muito pouco conhecido, mas que Hitler tinha lido com atenção. Ele quase que literalmente plagiou as passagens de Marx onde este vomita contra os judeus invectivas furibundas, tais como esta: «Qual é o fundo profano do judaísmo? A necessidade prática, a cupidez (Eigennutz). Qual é o culto profano do judeu? O negócio. Qual é o seu deus? O dinheiro.» E Marx prossegue incitando a ver no comunismo «a organização da sociedade que fará desaparecer as condições para o negócio e tornará impossível o judeu». Dentro do género de fazer apelo à morte, é difícil ser mais empolgante.

Judeu ou não, o indivíduo, não importa qual seja o totalitarismo, deve ser aniquilado. O «homem novo» soviético deve ser idêntico a todos os outros homens soviéticos, é uma peça da grande engrenagem soviética. O «homem-peça», tão querido a Estaline, bem merece uma saúde, que o «paizinho dos povos» não hesita em fazer-lhe: «Bebo», exclama ele, «à saúde dessas gentes simples, comuns, modestas, a essas engrenagens que mantêm em funcionamento a nossa grande máquina do Estado.» Para ele, tornar o indivíduo em coisa e uniformizá-lo, reduzi-lo ao papel de utensílio à disposição do partido impõe-se em lugar da liberdade, do pensamento e da moral. «Na nossa sociedade é moral tudo o que serve os interesses do comunismo», segundo ainda Leonid Brejnev. Esta aniquilação do indivíduo é a do próprio ser humano, que não pode ser visto de outra maneira que não seja sob a forma individual. Ainda sobre este ponto, a semelhança do comunismo e do nazismo impressionou todos os visitantes, pelo menos aqueles que não foram embrutecidos pela propaganda ou educados pelo seu partido na mentira profissional. Em 1936, ao visitar a União Soviética, da qual era anteriormente um admirador à distância, André Gide regressou desiludido. Num livro que foi como uma martelada na cabeça da esquerda francesa, ele confia a sua desilusão: «Duvido de que hoje em dia em algum outro país, mesmo na Alemanha de Hitler, o espírito seja menos livre, mais humilhado, mais receoso, aterrorizado [que na URSS].»[2] Gide é aqui atrozmente injusto para com Hitler, que, nessa época, só estava no poder há três anos e ainda não tinha tido tempo para aplicar adequadamente o seu modelo, ao contrário dos comunistas, que já tinham tido quase vinte anos para aplicar o seu e assim destruir o homem normal, metamorfoseado em homo sovieticus.

Daí a concepção de Estado que é comum a Lenine e Hitler. Em A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky, Lenine escreve: «O Estado está nas mãos da classe dominante, uma máquina destinada a esmagar a resistência dos seus adversários de classe. Nessa questão, a ditadura do proletariado em nada se distingue, quanto ao fundo, da ditadura de qualquer outra classe.» E indo mais longe ainda no mesmo livro: «A ditadura é um poder que se apoia directamente na violência e não se encontra sujeita a nenhuma lei. A ditadura revolucionária do proletariado é um poder conquistado e mantido pela violência, que o proletariado exerce sobre a burguesia, poder este que não está sujeito a nenhuma lei.» Se nos quisermos reportar ao segundo volume de Mein Kampf, aí veremos que, no capítulo consagrado ao Estado, Hitler exprime-se quanto a esta matéria em termos praticamente idênticos. A «ditadura do povo alemão» substitui ali a ditadura do proletariado. Mas, se tivermos em conta as múltiplas diatribes anticapitalistas do führer, as duas concepções não se encontram muito longe uma da outra. Todo o sistema político totalitário estabelece invariavelmente um mecanismo repressivo, visando a eliminação não só da dissidência política, mas também toda a diferença entre os comportamentos individuais. A sociedade totalitária, bem se sabe, é irreconciliável com a verdade.


[1] Otto Wagener, Hitler aus nächster nähe: Aufzeichnungen eines Vertrauten, 1929-1939, Frankfurt, 1978.

[2] André Gide, Retour d’URSS, Gallimard, 1936, sublinhados meus.

Excertos do capítulo VII da obra La Grande Parade (2000), do filósofo francês Jean-François Revel, na edição portuguesa da Editorial Notícias (A Grande Parada, 2001), com tradução de António Cruz Belo.

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