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Capitalismo

Walter Eucken

Excertos e Ensaios, Liberalismo e Capitalismo, Economia, História, Ordoliberalismo

Português

A economia euro-americana do último século [i.e. séc. XIX] é substancialmente diferente de todas as economias do passado. Tornou-se necessário exprimir peremptoriamente este facto, incluindo em termos de conceitos. Para isso recorreu-se ao conceito de «capitalismo», uma noção largamente aceite pela opinião pública e de uso generalizado. Numerosos autores procuraram determinar as características e os limites deste conceito. – Para nós surge assim a questão: pode-se restituir esta nova realidade económica através da palavra «capitalismo» com o sentido que ela habitualmente assume?

Estamos perante um facto histórico de grande importância que é a industrialização. Ela começou há aproximadamente século e meio na Inglaterra e continua hoje com todo o vigor. O seu périplo do planeta está longe de terminado. No começo do séc. XIX ela atingia os países da Europa ocidental e central – Alemanha, França, Bélgica, Suíça... – e a costa oriental dos Estados Unidos. No fim do século assentou pé no Japão. A partir de 1928 é a Rússia que sob a direção do novo poder se lança num processo de industrialização de grande envergadura. Actualmente, o ritmo acelera-se: a China, a Índia, o Brasil, a Turquia, vários Estados balcânicos e a Espanha querem industrializar-se e estão a industrializar-se. A Inglaterra por volta de 1850, a Europa e os Estados Unidos ainda no começo deste século imaginaram poder ser indefinidamente a oficina industrial do mundo; hoje vemos que o mundo inteiro, desde que as condições naturais o permitam, começa a transformar-se em oficina industrial. Esta revolução industrial, sem paralelo na história universal, não só salta de país para país, mas continua a desenvolver-se em toda a parte e – mesmo nos países de velha industrialização como a Inglaterra e a Alemanha – aparecendo continuamente, à medida que ela se desenrola, novas formas económicas. Se a ciência quiser perceber como é que este enorme processo, no decurso do qual a vida dos indivíduos sofreu imensas transformações, se desenrolou e desenrola, tem de encará-lo do ponto de vista da história universal. Isto é: na sua articulação geral com a totalidade histórica das nações e da humanidade. O seu surgimento na situação intelectual, política, económica particular da Europa, a destruição das velhas formas da produção industrial e agrícola, a transformação social das nações, os fenómenos de massificação, a sua influência sobre a formação dos Estados, a condução da guerra e a vida religioso-espiritual dos povos, tudo isso exige uma perspectiva universal de abordagem deste prodigioso processo histórico. Poder-se-á então compreender porque é que a industrialização se desenrolou de maneira diferente na Inglaterra e no Japão ou na Rússia, porque é que ela ora se desenvolveu dentro das velhas formas, transformando-as lentamente, ora as destruiu completamente. – E ainda um segundo ponto: a ciência tem de precisar no quadro de que ordem económica começou a industrialização de um país ou de um continente e como é que ela por seu turno transformou a ordem económica. As ordens económicas em que ela teve origem foram muito diversas: na Inglaterra, Alemanha e outros países europeus predominava a economia mercantil. Noutros países como a Rússia e a Turquia foi directamente o Estado que com medidas administrativas interveio centralmente pondo em marcha o processo de industrialização. «A civilização é uma enorme vaga, dizia Kemal Pacha [Atatürk], e quem não se prepara para nadar com ela afoga-se ou é arrastado.» A partir de baixo é provável que nestes países a industrialização não tivesse sido tão rápida. Faltavam para tal forças endógenas e além disso o peso da tradição era demasiado grande. Então, foi o Estado que de maneira centralizada a pôs em marcha, o que lhe conferiu um carácter totalmente diferente. Diferente foi também o seu efeito sobre o modo de vida destes povos. – Perspectiva histórico-universal e reflexão em termos de ordem económica têm igualmente de se conjugar se se quer explicar o fenómeno histórico que hoje se designa por «crise do capitalismo»: a enorme transformação das formas económicas em que vivemos que não se pode de modo algum perceber em termos exclusivamente económicos.

Tudo o que se opõe ao ponto de vista histórico-universal e ao pensamento em termos de ordens económicas dificulta a compreensão da natureza e da evolução da economia moderna. Ambas as coisas se produzem porém com a utilização do conceito de «capitalismo» e em particular com o uso que dele é feito.

O que o conceito de «capitalismo» devia produzir era muito; mais ainda do que os outros «cortes transversais». Não se pretendia com ele representar simplesmente a «essência» do fenómeno que estaria por detrás dos fenómenos históricos concretos e que constituiria o objecto principal da economia política. Isso era o que se pretendia também com os outros cortes transversais, como economia urbana ou economia doméstica. Antes se via e vê no capitalismo a substância actuante da economia moderna. Os fenómenos concretos, como por exemplo a destruição das velhas actividades artesanais, a formação de cartéis, a expansão do comércio mundial, a transformação da estrutura social das nações, são vistos como acções de um ser real, o capitalismo justamente, e a sua crise como uma decadência deste ser. Marx e os seus discípulos contribuíram em grande medida para difundir esta maneira de pensar. Em muitos discípulos de Marx e noutros autores o capitalismo aparece mesmo como substância personificada ou como pessoa. Relata-se o que o capitalismo provocou na Europa e no resto do mundo, que ele há-de continuar a sua obra de destruição em todo o planeta, que o capitalismo maduro se tem caracterizado por um ritmo particular de ascensão e queda e que se tornou mais calmo, ponderado, sensato como convém à sua idade avançada, que ainda destrói porém massas de mercadorias e explora os trabalhadores. Por vezes tratar-se-á simplesmente de peculiaridades de expressão, mas na maioria dos casos é mais do que isso: tornou-se corrente conceber o capitalismo como substância criadora ou como um ser real, actuante. A massa dos indivíduos gosta de resto de pensar em termos de tais categorias e de lhes conferir ainda por cima uma certa coloração sentimental.

A este propósito seria de observar primeiramente que se comete um erro lógico grave, ou seja o erro de hipóstase. Coisifica-se, objectiva-se ou personifica-se uma ideia geral. A fuga para a ideia geral personificada «capitalismo» substitui-se à verdadeira investigação da realidade. – Alguém pergunta porque é que se procedeu no Canadá, Brasil e outros países à destruição de trigo, café e outros géneros alimentícios. E explica que é precisamente desta maneira que o capitalismo actua, considerando que com isso respondeu à pergunta. É muito cómodo; mas na verdade nada ficou explicado. Porque é que esta entidade singular, o «capitalismo», destrói massas de bens neste ponto e noutros não? – O observador devia estudar as formas de mercado concretas e descobriria então como e porquê, em certas formas de mercado monopolísticas, acontece destruírem-se massas de mercadorias e porque é que noutras formas de mercado isso não acontece. Devia pois penetrar na realidade e não se confiar a esquemas conceptuais.

Crê-se com tais descrições dos actos do «capitalismo» ser-se moderno e na verdade recai-se no pensamento mágico. Reencontramos aqui o velho erro do realismo filosófico. – O uso do conceito de «capitalismo» causou ainda danos em duas outras direcções.

Ele dificulta ou torna impossível a compreensão histórica. Esta é uma das consequências. Porque é fácil, por um lado, explicar o nascimento da entidade «capitalismo» a partir da história geral e por outro separar a sua ulterior vida, actos e morte do devir histórico geral. Aos olhos destes observadores, o capitalismo após o seu nascimento tem uma existência própria. Não se vê que a economia – e com ela a industrialização – é, sempre e em cada momento, parte do curso geral da história, com o qual ela está em interacção permanente, nem em que medida ela está em relação contínua com todas as manifestações concretas da vida das nações. A figura do capitalismo, com a sua evolução desde o capitalismo primitivo até ao capitalismo maduro, torna-se um deus ex machina com o qual se solucionam aparentemente os problemas económicos concretos. Ignoram-se relações históricas manifestas, essenciais: é fácil constatar que a revolução francesa e as transformações na política externa e na estrutura interna dos Estados que ela provocou também modificaram a estrutura económica da Europa, que a guerra de 1914-1918, os tratados de paz e as revoluções que se lhe seguiram, e a guerra de 1939-1945 foram determinantes para a vida económica, incluindo no futuro próximo. Porém, quem vê no capitalismo a personificação da economia moderna e reduz os acontecimentos económicos a manifestações desta entidade, fica cego perante tais relações com a história geral e pode chegar à conclusão «que, em geral, os acontecimentos políticos não são determinantes para a evolução económica e que, em particular, a evolução do capitalismo foi praticamente independente das grandes revoluções políticas do século passado» (Sombart). Toda a discussão a propósito da «crise do capitalismo» sofre igualmente da falta de uma perspectiva histórica geral. Só partindo do movimento histórico geral da actualidade, do vigoroso processo de formação de Estados – que começou com a idade moderna e tomou nos últimos decénios uma configuração particular, fazendo sentir a sua influência em todos os domínios –, do avanço do nacionalismo e de outras ideias que se tornaram dominantes, e conjugando tudo isso com o estudo dos factos económicos, se pode compreender a transformação das ordens económicas e do quotidiano económico. Em termos de história universal tem pois de se perguntar: como é que a evolução histórica geral, espiritual, religiosa, política, social e económica, levou a uma tão profunda transformação da realidade económica? Quem coloca a questão em termos de «essência» do capitalismo e procura ali a resposta, está já a abordar o problema de maneira a-histórica, errónea e demasiado estreita. O pensamento ainda é mais anti-histórico quando se acredita numa evolução determinista desta essência.

A segunda consequência é que, dado o conceito de capitalismo não nos dizer nada sobre a estrutura da ordem económica, não é apropriado para uma descrição da realidade económica. Cada um lhe introduz a concepção de ordem económica que lhe convém: anarquia da produção, economia concorrencial, laissez faire, domínio da economia por forças monopolistas ou direcção da economia por um Estado económico dominado por forças anónimas. Pior ainda: desde o começo da revolução industrial há aproximadamente 150 anos, a humanidade viveu, numa sucessão relativamente rápida, as múltiplas alterações e a justaposição característica das ordens económicas concretas. Trata-se de uma multiplicidade também de grande importância do ponto de vista histórico geral. Era missão da ciência, e continua a sê-lo hoje, estudá-la em profundidade. Mas a palavra «capitalismo» devora essa multiplicidade. Como é que se pode compreender a profunda transformação da ordem económica euro-americana desde 1920 se se coloca o problema em termos de «crise do capitalismo»? Ou seja um conceito que não exprime a estrutura da ordem económica do mundo moderno? – Na sua busca da essência da realidade económica, escapou a estes observadores a intuição dessa realidade.

Exactamente no que parece ser o seu ponto forte reside uma fraqueza fatal do método de construção de cortes transversais. Nesta escola pensava-se e pensa-se ter o sentido da realidade histórica. Porém, não só se criaram séries evolutivas anti-históricas, mas também entidades conceptuais que isolam indevidamente os acontecimentos económicos do curso geral da história, impedem a compreensão histórica e dificultam ainda o conhecimento das ordens económicas.

Excerto da obra Fundamentos da Economia Política (1939), do economista alemão Walter Eucken (1891-1950).

Eucken é considerado um dos principais pensadores da chamada "economia social de mercado" (ou, talvez mais corretamente, "economia de mercado social"), bem como do "milagre económico alemão" no pós-Segunda Guerra Mundial. Este seu conceito de ordem económica está também na base da corrente política do "ordoliberalismo".

A presente tradução, publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian em 1998 e acessível através da nossa biblioteca, esteve a cargo de M. L. Gameiro dos Santos, com revisão e coordenação de Eduardo de Sousa Ferreira.

Colaboração na edição: Carlota Pignatelli Garcia.

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