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Do Poder Legislativo

John Locke

Clássicos, Filosofia Política, Direito e Instituições, Direitos Civis e Privacidade, Governo, Finanças Públicas e Tributação, Excertos e Ensaios

Português

 

 

§. 134. O grande objectivo da integração dos homens em sociedade é o usufruto das suas propriedades, em paz e em segurança, e os principais meios e instrumentos utilizados para o conseguir são as leis estabelecidas nessa mesma sociedade. Assim sendo, a primeira e mais fundamental de todas as leis positivas de qualquer comunidade política trata do estabelecimento do poder legislativo. De igual modo, a primeira e mais fundamental de todas as leis naturais, que deve nortear até mesmo o próprio legislativo, prende-secom a preservação da sociedade e, tanto quanto o bem público o permitir, de cada uma das pessoas que a integram. Este legislativo, não só é o poder supremo da comunidade política, como também é sagrado e inalterável, sempre que se encontrar nas mãos em que a comunidade o depositou. De igual modo, nenhum decreto, venha de quem vier, e independentemente da forma como for concebido ou do poder que o sustentar, poderá alguma vez possuir a força e o carácter vinculativo de uma lei, caso não obtenha a aprovação do legislador que tiver sido escolhido e nomeado pelo povo. Sem este requisito, a lei jamais poderá contar com algo que é absolutamente necessário para que seja uma lei, isto é, o consentimento da sociedade. Aliás, ninguém poderá deter uma capacidade de legislar sobre uma sociedade, a não ser através do consentimento dessa mesma sociedade e da autoridade que dela receber. Por isso, o dever de obediência a que estamos obrigados pelos vínculos mais solenes desemboca por inteiro, em última instância, neste poder supremo, e rege-se pelas leis que promulga. De igual modo, nenhum juramento que se possa prestar a uma potência estrangeira, ou a um poder interno subordinado, poderá alguma vez desobrigar um membro da sociedade do dever de obediência que tem para com o legislativo que actue no âmbito do mandato que lhe foi concedido. Nada poderá obrigar alguém a obedecer a quaisquer comandos contrários às leis devidamente promulgadas, ou que ultrapassem aquilo que elas permitem. Aliás, seria ridículo imaginar alguém vinculado a obedecer, em última instância, a qualquer poder na sociedade que não seja o poder supremo.

§. 135. Quer se encontre atribuído a uma só pessoa, ou a mais, quer esteja em sessão permanente, ou apenas se reúna periodicamente, o legislativo constitui sempre o poder supremo em qualquer comunidade política. Porém, há-de ter-se em conta o seguinte:
Primeiro. Não é, nem pode ser, um poder arbitrário e absoluto sobre as vidas e os bens do povo. Não representandomais do que o conjunto dos poderes que cada umdos membros da sociedade entregou à pessoa ou à assembleiaque constitui o legislativo, um tal poder jamais se poderá apresentar como algo superior àquilo que essas mesmas pessoas possuíam enquanto viviam num estado de natureza, antes de aderirem a uma sociedade, e que transferiram para a comunidade. Nenhum homem pode transferir para outro mais poder do que aquele que ele próprio detém, e ninguém possui um poder absoluto e arbitrário sobre si mesmo, ou sobre quem quer que seja, para destruir a sua própria vida, ou para se apropriar da vida ou dos bens de outro. Tal como se demonstrou, um homem não podesubmeter-se ao poder arbitrário de outro. No estado de natureza, nenhum homem dispõe de um poder arbitrário sobre a vida, a liberdade ou os bens de outro, mas apenas do poder que lhe é concedido pela lei da natureza, para a sua preservação e para a preservação do resto da humanidade. Isto é tudo o que um homem cede, ou pode ceder, a uma comunidade política, e, por seu intermédio, ao poder legislativo. De tal modo que o legislativo de modo algum poderá deter um poder superior a este. Na sua acepção mais alargada, o poder do legislativo está limitado ao bem público da sociedade. Trata-se de um poder que não tem qualquer outra finalidade que não seja a preservação. Portanto, jamais poderá deter o direito de destruir, escravizar, ou de empobrecer deliberadamente os seus súbditos. As obrigações que nos são impostas pela lei da natureza não terminam com a constituição das sociedades. Pelo contrário, em muitos casos, são trazidas para perto de nós pelas leis humanas que adicionam sanções, devidamente conhecidas, à lei da natureza para assegurar o seu cumprimento. Assim, a lei da natureza permanece como regra eterna para todos os homens, para aqueles que são legisladores, e para todos os demais. A exemplo das suas próprias acções e das dos outros, as regras que os legisladores estabelecem para a regulamentação do comportamento dos outros homens têm de ser conformes à lei da natureza, isto é, à vontade de Deus, da qual é uma manifestação. E uma vez que a lei fundamental da natureza nãoprescreve mais do que a preservação da humanidade, nenhuma sanção humana que se erga contra ela pode ser útil ou válida.

§. 136. Segundo. O legislativo, ou autoridade suprema, não pode arrogar-se um poder de governar por meio de decretos arbitrários improvisados. Pelo contrário, tem a obrigação de prestar justiça e de decidir sobre os direitos dos súbditos, de acordo com as leis vigentes promulgadas e através de juízes devidamente conhecidos e autorizados. A lei da natureza não está escrita, pelo que apenas a conseguimos encontrar na mente dos homens. É por isso que, na ausência deum juiz estabelecido, não será fácil convencer do seu erro todo aquele que, através das suas paixões ou dos seus interesses, a interpretar incorrectamente ou a aplicar de forma indevida. Deste modo, a lei da natureza não serve, como deveria, para determinar os direitos, nem para defender as propriedades daqueles que vivem sob a sua alçada, particularmente quando cada um é chamado a agir como juiz, intérprete e executor em causa própria. E, quem tiver a razão pelo seu lado, não será capaz de se defender das ofensas e dos prejuízos que sofrer nem de punir os delinquentes, na medida em que apenas possa contar com a sua própria força. Para evitar estes inconvenientes que perturbam os bens de um homem no estado de natureza, os homens uniram-se em sociedades, de modo a poderem contar com a força colectiva de toda a sociedade para a salvaguarda e para a defesa das suas propriedades, e, bem assim, para poderem dispor de leis permanentes que as delimitem, através das quais cada um possa saber o que lhe pertence. É com este objectivo que os homens entregam todo o seu poder natural à sociedade a que aderem, e a comunidade coloca o poder legislativo nas mãos de quem considerar mais capaz de o receber, com o encargo de ser governada por leis declaradas. Caso contrário, a sua paz, o seu sossego e as suas propriedades permaneceriam tão inseguras como quando os seus membros se encontravam no estado de natureza.

§. 137. Exercer um poder absoluto e arbitrário, ou governar sem leis permanentes, não é compatível com os fins da sociedade e do governo. Os homens jamais abandonariam a liberdade do estado de natureza, nem aceitariam ficar amarrados dentro de uma sociedade, se não fosse para a preservação das suas vidas, das suas liberdades e dos seus bens, e para a garantia da sua paz e do seu sossego, através de regras permanentes capazes de fixar o direito e a propriedade. Não se poderá supor que, mesmo sendo possível fazê-lo, os homens alguma vez pretenderam colocar nas mãos de outro, ou de vários, um poder arbitrário e absoluto sobre as suas pessoas e sobre os seus bens, ou que alguma vez atribuíram a um magistrado uma força que lhe permitisse exercer a sua vontade sobre eles, de forma ilimitada e arbitrária. A agirem assim, ter-se-iam colocado numa situação pior do que aquela em que se encontravam no estado de natureza, onde possuíam a liberdade de defender os seus direitos contra as agressões dos outros, e contavam todos com igual poder para se defenderem uns dos outros, quer fossem atacados por um só homem, ou por vários em conjunto. Supor que os homens se entregaram à vontade e ao poder arbitrário e absoluto de um legislador, é admitir que se desarmaram a si próprios e o armaram a ele, para que os atacasse e os devorasse quando entendesse. Aquele que se encontrar exposto ao poder arbitrário de um homem que comande cem mil homens encontra-se numa condição manifestamente pior do que quem se encontrar exposto ao poder arbitrário de cem mil homens isolados. E ninguém pode estar seguro de que a vontade de um tal homem, que comande cem mil, seja superior à dos seus semelhantes, apesar de ser cem mil vezes mais forte. Por isso, qualquer que seja a forma que a comunidade política adoptar, o poder deve ser exercido através de leis promulgadas e aceites, e não por ditames improvisados e resoluções imprecisas. De outro modo, os homens ficariam numa condição muito pior do que aquela em que se encontravam no estado de natureza, se, por acaso, armassem um só de entre eles, ou um pequeno grupo, com o poder conjunto de toda a comunidade, apenas para que esse homem, ou esse pequeno grupo, os forçassem a todos a obedecer a seu bel- -prazer aos decretos exorbitantes e ilimitados, quer dos seus pensamentos repentinos, quer das suas vontades desenfreadas e até então desconhecidas, sem que tivessem ficado estabelecidas quaisquer medidas orientadoras e justificativas das suas acções. Ora, todo o poder que o governo possui destina-se, exclusivamente, para o bem da sociedade, por isso, assim como não deve ser arbitrário nem discricionário, também deve ser exercido segundo leis estabelecidas e promulgadas. As pessoas devem conhecer os seus deveres e encontrar segurança e tranquilidade dentrodos limites da lei. Ao mesmo tempo, os governantes devemmanter-se dentro dos seus limites. Não se devem deixartentar pelo poder que detêm, muito menos utilizá-lo pormeios e para fins desconhecidos daqueles que lho concederam,ou que nunca teriam aprovado, caso os viessem a conhecer.

§. 138. Terceiro. O poder supremo não pode deitar a mão a qualquer parcela da propriedade de um homem sem o seu próprio consentimento. A preservação da propriedade constitui a finalidade do governo e a razão pela qual os homens se integram em sociedade, o que necessariamente pressupõe e exige que tenham propriedade. De outro modo, ter-se-ia de supor que, no momento em que se unem em sociedade, perdem exactamente aquilo cuja preservação os levou a aderir a ela, o que seria um absurdo grande demais para ser aceite por quem quer que seja. Por isso, uma vez que se reúnem em sociedade com as suas propriedades, os homens adquirem um direito sobre os seus bens, tal como definido pelas leis da comunidade. Um direito que ninguém lhes poderá retirar, ainda que parcialmente, sem o seu consentimento. Aliás, se tal não fosse o caso, não teriam propriedade alguma. Em boa verdade, nunca posso considerar como sendo meu aquilo que alguém tiver o direito de tomar, quando entender, mesmo contra a minha vontade. Daí ser um erro pensar que o poder legislativo ou supremo de uma comunidade política pode fazer o que entender, dispor dos bens dos seus súbditos de forma arbitrária, ou apropriar-se de qualquer parte deles a seu bel-prazer. Ora, não é muito de temer que isto venha a acontecer em governos nos quais o poder legislativo está situado, no todo ou em parte, em assembleias, cuja composição varia com o tempo e que, quando são dissolvidas, os seus membros cessam funções e regressam à condição de súbditos iguais a todos os outros perante a lei comum do seu país. Pelo contrário, no caso de governos onde o poder legislativo se encontra atribuído a uma assembleia composta sempre pelos mesmos membros, ou a um só homem, como nas monarquias absolutas, por exemplo, persiste o perigo real de que os membros permanentes dessa assembleia, ou o homem singular que comandar um tal poder, venham a considerar que possuem interesses privativos, distintos daqueles que o resto da comunidade apresenta, circunstância em que se sentirão inclinados a aumentar as suas fortunas e o seu poder, a expensas do povo, extorquindo-lhe o que entenderem. Com efeito, a propriedade de um homem jamais estará assegurada, mesmo naquelas comunidades que contarem com leis boas e equitativas para a sua delimitação se, por acaso, aquele que as governar detiver o poder de se apoderar das parcelas que entender da propriedade de qualquer súbito, e de dispor delas como lhe aprouver.

§. 139. Todavia, tal como ficou demonstrado, esteja em que mãos estiver, o governo foi constituído com esta condição e com esta finalidade, designadamente, para que os homens pudessem ter as suas propriedades e usufruir delas em segurança. Por isso, apesar de deterem o poder legislativo, de adoptarem leis para a regulamentação da propriedade dos seus súbditos nas suas inter-relações mútuas, o príncipe ou o senado jamais poderão deter o poder de tomar para si, no todo ou em parte, a propriedade de qualquer um deles sem o seu consentimento. Defender o contrário seria equivalente a destituí-los de toda a propriedade e a deixá-los sem nada. E, para vermos que até mesmo o poder absoluto, onde quer que se torne necessário, não é arbitrário, uma vez que permanece delimitado por aquelas razões e confinado àqueles objectivos que por vezes exigem que tenha este carácter, não precisamos de olhar para além da prática comum da disciplina marcial. A preservação de um exército, e, nele, de toda a comunidade política, exige uma obediência absoluta às instruções de cada oficial superior; de tal modo que desobedecer ou questionar até mesmo a mais perigosa ou a mais irracional destas instruções acarreta com plena justiça a pena de morte. Acontece, porém, que o sargento, que poderia mandar um soldado marchar até à boca de um canhão, ou permanecer no coração duma luta encarniçada, onde seguramente acabaria por morrer, de modo algum o pode obrigar a dar-lhe um vintém do seu dinheiro. Tão pouco o general, que pode condenar à morte o soldado que desertar do seu posto, ou que não obedecer às suas ordens mais arriscadas, apesar de todo o seu poder absoluto de vida e de morte, de modo algum poderá dispor da menor parcela dos bens desse soldado, nem apoderar-se da mais pequena parte das suas propriedades. O general pode mandar o soldado fazer o que entender, e mandá-lo enforcar pela mais pequena desobediência, pois esta obediência cega é necessária para que o comandante possa cumprir a finalidade para cujo cumprimento o poder lhe foi confiado, ou seja, a preservação do conjunto da sociedade. Contudo, dispor dos bens dos subordinados nada tem a ver com o cumprimento desta tarefa.

§. 140. É certo que nenhum governo se pode sustentar sem grandes encargos, por isso, é justo que todos aqueles que gozam da protecção que oferece participem também na sua manutenção, pagando cada um a sua parte a partir dos bens que possui. Para isso, contudo, exige-se sempre o seu consentimento, isto é, o consentimento da maioria, dado pelos próprios, ou pelos representantes que vierem a eleger. Todo aquele que se arrogar o poder de impor e de cobrar impostos ao povo, exclusivamente por autoridade própria e sem contar com um tal consentimento popular, estará a violar a lei fundamental da propriedade e a subverter o objectivo do governo. Pois, que propriedade tenho eu sobre aquilo que outro pode tirar para si quando entender?

§. 141.  Quarto. O poder legislativo não pode transferir para mãos de outros o poder de legislar que detém. Tratando-se de um poder delegado pelo povo, aqueles que o detiverem não o podem repassar a outros. O povo é o único com capacidade para determinar a forma da comunidade política, tarefa que desempenha quando constitui o poder legislativo e decide quem o deverá deter. Então dirá: submeter-nos-emos às regras e seremos governados pelas leis que estes homens fizerem, de tal modo que mais ninguém possa legislar para nós. Assim sendo, de modo algum o povo poderá ser sujeito a quaisquer leis, a não ser aquelas que forem promulgadas por quem ele próprio tiver escolhido e autorizado a legislar para si.  O poder do legislativo provém do povo. É-lhe outorgado mediante uma concessão positiva e voluntária. Por esta razão, de modo algum poderá deter mais poder do que aquele que lhe foi transmitido pela concessão positiva que o constituiu. Deste modo, uma vez que apenas lhe foi concedido o poder de legislar, e não o de nomear legisladores, não é permitido ao poder legislativo transferir para outros a autoridade que lhe foi atribuída para fazer leis.

§. 142. Em todas as comunidades políticas e em qualquer forma de governo são estes os limites do poder legislativo, decorrentes da missão que lhe foi confiada pela sociedade e pelas leis de Deus e da natureza.
Em primeiro lugar, governar segundo leis votadas e promulgadas, que não poderão ser alteradas em função dos casos particulares, mas, antes, constituir uma só regra, parao rico e para o pobre, para o favorito da corte e para o camponês no arado.
Em segundo lugar, estas leis não podem ser adoptadas para qualquer outra finalidade que não seja, emúltima instância, o bem do povo.
Em terceiro lugar, não deve lançar impostos sobre a propriedade do povo sem o consentimento desse mesmo povo, expresso directamente pelos membros da comunidade política, ou indirectamente pelos seus representantes. E, em sentido estrito, este é um limite que se aplica apenas aos governos em que o legislativo é um poder permanente, encontrando-se sempre em funções, ou, pelo menos, àqueles em que o povo não reservou uma parcela deste poder para deputados eleitos periodicamente.
E, em quarto lugar, o legislativo não deve, nem pode, transferir para quem quer que seja o poder de legislar que possui, ou depositá-lo em quaisquer outras mãos que não sejam aquelas que o povo elegeu para lho entregar.

Capítulo XI do clássico Ensaio Sobre a Verdadeira Origem, Alcance e Finalidade do Governo Civil (1689), do filósofo inglês John Locke (1632-1704), considerado por muitos um dos textos fundacionais da tradição liberal.

A presente tradução, publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian e acessível através da nossa biblioteca, esteve a cargo de Carlos Pacheco Amaral.

Ver também os restantes excertos disponíveis.

Narração: Mário Redondo.

Colaboração na edição: Diana Mendes.

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