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Do Poder Paternal

John Locke

Excertos e Ensaios, Clássicos, Direitos Civis e Privacidade, Filosofia Política, Direito e Instituições, Filosofia, Ética e Moral, Liberalismo e Capitalismo

Português

 

 

§. 54. Apesar de termos afirmado no capítulo II que todos os homens são iguais por natureza, certamente que se compreenderá que não nos reportávamos a todos os tipos de igualdade. A idade ou a virtude podem legitimamente dar a um homem precedência sobre os demais. Aqueles que apresentarem uma excelência de qualidades ou um mérito superior merecem um lugar acima do nível médio da sociedade. Pelas condições peculiares em que nasceram, pelas alianças que celebraram ou pelos benefícios que receberam, alguns homens podem ser levados a prestar um especial tributo àqueles a quem a natureza, a gratidão, ou qualquer outra consideração, os tornou devedores. E, todavia, tudo isto é compatível com a condição de igualdade em que todos os homens se encontram relativamente à jurisdição ou ao domínio mútuo. Era a esta igualdade que me referi como sendo específica da matéria que agora nos ocupa, e que se reporta ao igual direito que cada homem tem à sua liberdade natural, em virtude da qual ninguém se encontra sujeito à vontade ou à autoridade de qualquer outro homem.

§. 55. As crianças, devo confessar, não nascem num tal estado de igualdade perfeita, apesar de nascerem para ela. Daí que os seus pais possuam uma espécie de poder e de jurisdição sobre elas, desde o primeiro momento em que vêm ao mundo, e durante algum tempo. Trata-se, contudo, de uma jurisdição e de um poder estritamente delimitados no tempo. Os laços desta sujeição dos filhos aos pais são como as fraldas e os cueiros com que os envolvemos e os amparamos na fragilidade da sua infância. À medida que vão crescendo e que a idade e a razão vão aumentando, esses mesmos laços vão-se desapertando, até que, com o tempo, desaparecem por completo, deixando um homem inteiramente livre e senhor de si mesmo.

(...)

§. 57. A lei que governou Adão foi a mesma que governou toda a sua posteridade, a lei da razão. A sua descendência, porém, veio ao mundo de forma muito diferente da dele, por nascimento natural, e, por isso mesmo, sem qualquer conhecimento e sem o uso da razão. Por esse motivo, enquanto que Adão teve a lei da razão para o guiar, desde que foi criado, quando nascemos e durante toda a infância encontramo-nos temporariamente fora do âmbito dessa lei. Ninguém pode ser vinculado por uma lei a que não tem acesso. Ora, dado que a lei em causa apenas é promulgada e apenas se dá a conhecer através da razão, aquele que não se encontrar no seu uso, de modo algum se pode encontrar sob a sua alçada. E posto que após o seu nascimento, e durante algum tempo, os filhos de Adão não se encontram sob a alçada desta lei da razão, tão pouco são livres quando nascem e até que atinjam a idade da razão. Na sua acepção mais pura, a lei não é tanto um instrumento de limitação, mas de direcção de um agente livre e inteligente para o seu interesse próprio, e nada prescreve que não seja para o bem geral daqueles que lhe estão sujeitos. Se, por acaso, pudessem ser mais felizes sem ela, a própria lei se extinguiria, como coisa inútil. E de modo algum se pode dar o nome de limitação àquilo que nos protege de atoleiros e de precipícios. De maneira que, por mais que possa ser mal entendida, a lei não tem por objectivo abolir, nem restringir, mas preservar e aumentar a liberdade. Em todas as sociedades de seres capazes de se organizarem juridicamente, onde não existir direito, tão pouco existirá liberdade, já que ser livre é não estar sujeito à coacção ou à violência de outros, o que não se pode verificar onde não existir lei. Porém, a liberdade não é, como por vezes nos querem fazer crer, uma licença para cada homem agir como entender. Se assim fosse, quem poderia ser livre, caso se pudesse encontrar sujeito aos caprichos de qualquer outro homem? Pelo contrário, a liberdade reside na capacidade de dispor e ordenar como entender a sua pessoa, as suas acções, os seus haveres e toda a sua propriedade, dentro dos limites que forem estabelecidos pelas leis a que estiver sujeito, e, neste contexto, não estar subordinado à vontade arbitrária de outros, mas seguir apenas a sua, sem quaisquer constrangimentos.

§. 58. Deste modo, o poder que os pais têm sobre os filhos deriva deste dever de que são incumbidos, de cuidarem deles enquanto permanecem no estado imperfeito da infância. Até que cheguem à idade da razão, os filhos menores, e por isso mesmo ainda ignorantes, necessitam que se lhes esclareça o entendimento e dirija o comportamento. É ao que os pais estão obrigados, até serem libertados destas tarefas. Porquanto ao mesmo tempo que Deus atribuiu ao homem o entendimento para dirigir as suas acções, concedeu-lhe igualmente uma vontade livre, e a possibilidade de a exercer, dentro dos limites prescritos pela lei a que estiver sujeito. Porém, enquanto não usufruir de um entendimento próprio capaz de dirigir a sua vontade, de modo algum deve possuir uma vontade própria que possa exercer. Aquele que entender por ele, deve igualmente querer e decidir por ele. Deve ditar-lhe o que fazer e regular as suas acções. Mas, quando atingir a idade que fez do seu pai um homem livre, o filho terá de ser um homem livre também.

§. 59. Isto aplica-se em relação a todas as leis a que um homem estiver sujeito, sejam elas naturais ou civis. Está um homem submetido à lei natural? O que o libertou dessa lei? O que lhe permitiu dispor livremente da sua propriedade, segundo a sua vontade própria, e dentro dos limites dessa mesma lei? Respondo apontando para o estado de maioridade, no qual se supõe que o homem é capaz de conhecer esta lei, de modo a manter as suas acções dentro dos limites por ela prescritos. Ao atingir aquela idade, presume-se que saiba até que ponto se deve guiar por aquela lei e até que ponto poderá fazer uso da sua liberdade, sendo certo que é deste modo que a poderá adquirir. Até lá, necessita de alguém que o guie, alguém que se presume conheça a justa medida em que a lei permite a liberdade. Se atingir uma tal idade da razão e do discernimento emancipa um homem, tornando-o livre, também o pai emancipará o seu filho, logo que a ela aceder. Quando é que um homem se encontra sujeito à lei da Inglaterra? O que o torna livre perante essa lei? Quero dizer, o que lhe concede o direito de dispor das suas acções e dos seus haveres, de acordo com a sua vontade e dentro daquilo que a lei lhe permite? Nada mais, nada menos, do que a capacidade de conhecer essa mesma lei; o que, nos termos por ela prescritos, surge aos vinte e um anos de idade, e nalguns casos antes ainda. Ora, isto que fez do pai um homem livre, fará do filho um homem livre também. Até lá, vemos que a lei não permite ao filho qualquer vontade, devendo ser guiado pela vontade do seu pai ou do seu guardião, a quem incumbe entender e decidir por ele. E se o pai morrer sem indicar um substituto para esta sua tarefa, caso não tenha providenciado um tutor para guiar o filho durante a sua menoridade, então, enquanto carecer de entendimento, a própria lei assumirá essa tarefa e indicará alguém para o governar, para lhe dirigir a vontade, até que atinja a idade de liberdade, e o seu entendimento se encontre apto para assumir o governo da sua vontade. Depois disso, contudo, pai e filho serão igualmente livres, tanto quanto o são o tutor e o pupilo depois da menoridade. Um e outro serão igualmente súbditos da mesma lei, não restando ao pai qualquer domínio sobre a vida, a liberdade ou a propriedade do seu filho, quer se encontrem apenas sob a alçada da lei da natureza, quer se encontrem sujeitos ao direito positivo de um governo estabelecido.

§. 60. Certas pessoas, porém, sofrem de deficiências graves que as atiram para fora do curso ordinário da natureza. Aqueles que padecerem de uma de tais moléstias, não conseguem atingir o nível da razão que os torne capazes de conhecer a lei e, por isso, de viverem dentro do conjunto de regras que a mesma prescreve. Por isso mesmo, jamais serão capazes de ser livres. Nunca se lhes permitirá que disponham livremente da sua vontade, na medida em que não lhe reconhecem limites, nem dispõem do entendimento competente para a guiar devidamente. E, pelo contrário, enquanto o seu entendimento não for capaz de desempenhar aquela tarefa, deverão continuar sob a tutela e o governo de outros.

(...)

§. 61. Nascemos livres, portanto, na medida em que nascemos racionais. Não que tenhamos de imediato acesso a qualquer uma destas condições. A idade que traz uma, desencadeia a outra também. Assim vemos como é que a liberdade natural e a submissão aos pais são perfeitamente compatíveis, decorrendo de um príncipio único. Uma criança é livre na medida em que o seu pai támbem o for, e é pelo entendimento do pai que se deverá reger até que desenvolva aquele que lhe é próprio. A liberdade de um homem de idade adulta, e a submissão de uma criança aos seus pais enquanto for de menoridade, são dois princípios simultaneamente tão compatíveis e tão distintos que nem os mais cegos defensores da monarquia, por direito de paternidade, se podem negar a reconhecê-lo.

(...)

§. 64. Os cuidados que os pais têm obrigação de prestar aos seus filhos, de modo algum podem assumir proporções tais que lhes confiram um domínio absoluto e arbitrário sobre eles. Pelo contrário, o poder de que os pais dispõem sobre os seus filhos não se estende para além do dever de lhes impor a disciplina que for considerada mais conveniente para que possam desenvolver, seja a robustez e a saúde físicas, seja o vigor e a rectidão intelectuais necessários para serem úteis, para si próprios e para os outros. Para além disso, os pais têm ainda a obrigação de pôr os filhos a trabalhar, logo que forem capazes de procurar o seu próprio sustento. Ora, este é um poder que o pai partilha com a mãe.

§. 65. Mais do que isso, este poder não pertence ao pai por um qualquer direito de natureza peculiar, mas apenas na medida em que é o guardião dos seus filhos. Deste modo, a partir do momento em que deixar de cuidar deles perde igualmente todo o poder que sobre eles detinha, o qual se encontra directamente associado ao dever de os alimentar e de os educar. O poder de um pai adoptivo sobre uma criança enjeitada não é inferior àquele que um pai natural possui. Por si só, o acto estrito de concepção atribui a um homem um poder manifestamente reduzido. Se todos os seus cuidados terminarem aqui, e se este for o único título que possui para a reivindicar, não será grande a sua autoridade paterna.

Excertos do capítulo VI do clássico Ensaio Sobre a Verdadeira Origem, Alcance e Finalidade do Governo Civil (1689), do filósofo inglês John Locke (1632-1704), considerado por muitos um dos textos fundacionais da tradição liberal.

A presente tradução, publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian e acessível através da nossa biblioteca, esteve a cargo de Carlos Pacheco Amaral.

Ver também os restantes excertos disponíveis.

Seleção de excertos e narração: Pedro Almeida Jorge.

Colaboração na edição: Nuno Quintão.

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